Durante uma conversa casual com a irmã por telefone, um catarinense que vive há décadas em Berlim descobre, por acaso, que seu pai havia morrido. A notícia, que abala as estribeiras do solitário Claus, é o estopim de Uma fuga perfeita é sem volta, de Marcia Tiburi.
No romance de 600 páginas, a autora, que além de escritora, é filósofa, dá voz a um protagonista questionador e amargurado, que começa a contar a própria história partindo do momento em que descobre a morte do pai. Perdido e confuso, o narrador corre da infância à fase adulta e repensa toda a sua vida, os recursos que lhe foram dados, sua condição social e biológica e as suas escolhas.
Tudo isso se desenrola por meio de capítulos curtos e imprecisos, mas suficientes para nos contagiar com o benefício da dúvida. Embora o narrador comece a se apresentar logo no início, grande parte das peças que compõem a figura de Claus vai surgindo sob um ritmo lento — bem mais lento do que a nossa curiosidade de saber ao certo quem é aquela pessoa que nos fala. E o leitor só tem a ganhar com esse enigma.
Página a página, surge um Claus gago, inseguro, apaixonado e com uma doença atípica da qual muitas vezes se diz envergonhado. Por possuir um problema que afeta a forma do seu corpo, o protagonista encontra obstáculos para lidar com sua sexualidade e também por isso mantém com Irene, sua namorada, um relacionamento complexo.
Quando fala da relação com a irmã, o narrador se lembra a todo tempo da superficialidade das conversas que mantém com ela por telefone. De personalidade ácida, Agnes é uma mulher pragmática, que sempre refuta reflexões profundas ou assuntos que escapam à esfera da vida prática. Ao contrário de Claus, que, analítico e sensível, se sente diante de uma relação frágil, sempre faltando algo.
O ápice dessa lacuna se dá quando o protagonista percebe que nem mesmo a morte do pai a irmã foi capaz de lhe comunicar. E é também para trazer à luz as palavras nunca ditas, que ele escreve um livro para ela — uma narrativa intensa que não poderia ser afetada nem por um surto desesperado de gagueira, nem por interrupções evasivas de Agnes. Como se, pela primeira vez, Claus pudesse fugir da prisão que é o silêncio e se apresentar a quem nunca o conhecera de verdade.
Fade-in
Não é apenas Claus quem vai dando as caras aos poucos, surgindo de maneira gradual. Toda a narrativa parece sempre à mercê da descrição dos personagens — feita sob um ritmo lento e instigante. Ninguém ali é apresentado de maneira plana, a exemplo de Irene, que conhece Claus pelo telefone, quando trabalha transferindo chamadas internacionais em uma época em que as ligações ainda não são feitas diretamente. A namorada do narrador já entra na trama pela porta do mistério. O mesmo ocorre com seu amigo Thomás, seu pai, sua mãe e o intragável Alfred Ploetz, a quem Claus sequer nomeia a princípio por considerá-lo medíocre.
Em parte, esse arranjo que amarra a descrição à narração ocorre porque os capítulos, repletos de digressões íntimas, seguem a condição psicológica do narrador, que busca, por meio da história, atingir um desfecho que comporte a despedida de uma vida que já não faz mais sentido para ele.
Reflexões
A história de Claus é narrada nos dias atuais, mas atravessa ao menos quatro décadas. Nesse intervalo, a sociedade vai das ligações telefônicas indiretas à euforia dos compartilhamentos nas redes sociais. Tamanhas transformações afetam significativamente o rumo e a forma das relações humanas e, entre observações sensatas e muitas vezes ranzinzas, o narrador tece críticas a esse panorama.
Trabalhando como chapeleiro de um museu na Alemanha, o narrador observa o fluxo de quem passa por ali e não apenas julga os visitantes, como também cria classificações para eles, com base na maneira como se relacionam e na forma como vivenciam o museu. Há, por exemplo, quem chega apenas para se fotografar ao lado de uma obra em meio aos poucos que realmente compreendem a magnitude da arte. Entre estas reflexões, também aparecem ponderações sociopolíticas como as questões históricas que diferenciam o europeu, do imigrante, do turista.
Opressão em pirâmide
Na condição de latino-americano em solo europeu, Claus também questiona sua condição subalterna em um contexto geopolítico que marginaliza seu povo. Na Alemanha, o personagem é visto como inferior, mesmo sendo, ironicamente, descendente de alemães. Mesmo sabendo que o seu país acolheu germânicos durante um longo período da história.
Mas o narrador não observa a opressão apenas sob a perspectiva da colonização. Também faz um recorte de classe e gênero, reconhecendo sua condição de latino e trabalhador precarizado, em um contexto em que a dominação pode sempre se acentuar um pouco mais, conforme os estratos da cadeia social vigente.
O melhor exemplo dessa abordagem é quando Alfred Ploetz, também funcionário do museu em que Claus trabalha, na posição de atendente muitas vezes insultado e ignorado por visitantes, cospe no chão e pede para uma faxineira limpar. A cena, que pode servir como alegoria de uma sociedade na qual a opressão não raro se faz por meio de conflitos entre os próprios grupos marginalizados sob uma lógica discriminatória cega que só beneficia o topo desta pirâmide, também mostra que o domínio se faz em camadas, como a da faxineira, mal paga e desvalorizada, que está um degrau abaixo do homem que trabalha no mesmo lugar. “E por que eu escreveria sobre o homem do guarda-roupa e seu ponto de vista, e não sobre a mulher do guarda-roupa, é porque as mulheres ainda são preferidas para outros postos que eu nunca precisei ocupar como mulher”, diz Claus.
Arte e filosofia
A leitura de Uma fuga perfeita é sem volta é uma tarefa não muito leve. Claus é um personagem inquieto e inconformado e tem uma narrativa corajosa — o que é sempre de se admirar em qualquer romance. Sobretudo no que tange a conflitos familiares. Olhando para trás, o personagem não tem medo de encarar o pobre pai pescador com seus sonhos e limitações, a condição psíquica e social da mãe, vista como louca, a frieza da irmã, que parecia sempre anestesiada e alheia a todo o contexto conturbado que a cercava, e as feridas que esse conglomerado de circunstâncias acabou deixando em seu destino.
Por meio desse enfrentamento, Claus vai margeando seus fracassos e pequenas vitórias para se conhecer, se justificar por qualquer coisa e deixar o caminho limpo para dar início a seu projeto de fuga, uma fuga, que é na verdade um retorno. Um retorno a quem ele sempre foi e não conseguia enxergar ao certo.
A filosofia e a arte são caminhos importantes que o narrador encontra para desenhar o mapa deste recomeço. Membro assíduo da chamada Sociedade da Falsa Alegria, grupo de estudos de filosofia mediado por Irene, o protagonista questiona desde os padrões de consumo e civilidade da sociedade capitalista até aspectos imateriais como a morte e o peso de muitas vezes não se encontrar sentido para viver.
Todas essas explanações densas e, quase sempre, perturbadoras, a princípio podem parecer meros ensaios soltos em meio a um romance. Mas, aos poucos, começam a desaguar em uma infinidade de conflitos íntimos do protagonista, diluindo em boa porção de liberdade a dor e a angústia que se arrastam por todos os quase 300 capítulos.