Não deixa de ser intrigante que o narrador de Paris não tem fim, o mais recente livro de Enrique Vila-Matas a sair no Brasil, tenha uma obsessão de natureza doentia por Ernest Hemingway. É difícil imaginar dois escritores mais diferentes do que Vila-Matas e Hemingway, já que eles, de certa forma, se encaixam em vertentes completamente opostas da literatura. Hemingway personaliza o autor como aquilo que vive. A experiência pessoal é a base de sua obra. Suas paixões são masculinas: boxe, touradas, pescarias, caçadas, guerras. Ele apenas troca um ou outro nome de fatos ocorridos em sua vida e, bingo, tinha um novo conto. Vila-Matas é o contrário: é o escritor que parece não sair de sua biblioteca sequer para ir ao banheiro. Que passa o dia inteiro sentado na escrivaninha com pilhas de livros em volta, coletando citações e empilhando-as nos romances — todos eles versando sobre a própria literatura. Um é físico e intuitivo, o outro é cerebral e técnico.
E eis que esse narrador, um escritor consagrado fazendo uma conferência de três dias, relembra seus dias de prosador novato, de jovem rapaz de Barcelona que se muda para Paris em busca de inspiração para o seu primeiro romance. Paris, a cidade que, como eternizou Hemingway, é uma festa, uma festa móvel. A cidade em que ele — e de certa forma toda a chamada Geração Perdida da década de 1920 — foi “muito pobre e muito feliz”. Macaquear Hemingway é o caminho escolhido pelo narrador em busca não apenas do êxito editorial, mas da romântica vida literária daquela Paris repleta de gênios debatendo nos cafés, escrevendo contos e romances que entrariam para a história, gastando o dinheiro que mesmo pouco parecia render, graças à prosperidade pré-Crack de 1929. Escrever é a coisa menos importante para o narrador; ele quer viver como Hemingway, sonha em ser parecido fisicamente com o americano, em viver as aventuras que pudessem render no futuro obras-primas como O sol também se levanta e Adeus às armas. É essa experiência paralela e ao mesmo tempo distanciada pela diferença dos estilos físico e cerebral que recheia Paris não tem fim.
Verdades e mentiras
Como nos outros livros de Enrique Vila-Matas, há muito da vida do autor espanhol em seu personagem, a ponto de não sabermos diferenciar bem o que é verdade do que não é. Vila-Matas viveu sim em Paris nesses período, realmente se hospedou em uma água-furtada alugada pela escritora Marguerite Duras (de O amante), seu romance de estréia tem o mesmo nome do livro que o jovem narrador tenta terminar — A assassina ilustrada. Em entrevista publicada na revista EntreLivros, ele admite que Paris não tem fim é sua obra mais autobiográfica, porém avisa que seus biógrafos vão cometer muitos erros para separar o real do ficcional em sua carreira. Tolice, portanto, tomar o livro como um mero roman à clef. Bem mais proveitoso é encará-lo como um ensaio sobre a literatura e o fazer literário. Exatamente como em Bartleby e companhia e O mal de Montano, outras pérolas do catalão já lançadas por aqui.
Para usar, aliás, uma expressão de O mal de Montano, é possível dizer que o narrador de Paris não tem fim é um doente de literatura. Seu texto/conferência é um pastiche de referências sobre a vida de outros, entremeados com a sua própria. Pode parecer falta de estilo, mas é daí que Vila-Matas tira a sua força — enquanto o leitor se diverte aprendendo com a história do pobretão espanhol na França, aprende e reflete sobre a história da literatura. Vários personagens reais aparecem nas páginas, cafés, praças e bulevares. A começar por Marguerite Duras, claro, e também Jorge Luis Borges, Georges Perec, Samuel Beckett, William Burroughs, Julio Ramón Ribeyro. Fora os que aparecem apenas no texto, não “pessoalmente”.
O narrador, como se disse, espera encontrar na mítica capital francesa o segredo para alavancar sua ficção. Pede a Duras que lhe ensine a escrever um romance. Ela (que funciona para ele quase como Gertrude Stein para Hemingway) lhe entrega uma apostila contendo tópicos como “unidade e harmonia”, “estilo”, “trama e história”, “personagens” e “registro lingüístico”. Ele, é evidente, não consegue tirar muita coisa de uma cartilha tão impessoal — sobretudo numa arte tão subjetiva como é a literatura. O personagem parece mais aflito por uma bobagem “filosófica”: como ele deve ser como escritor? Como todo jovem, acredita que deve sofrer, portanto tenta viver assolado pelo desespero. O conflito entre o autor que vive e o autor que trabalha surge no embate entre Hemingway e Thomas Mann — este o modelo ideal do escritor burguês, “insuportavelmente sério e sedentário, sempre dependente de que tudo tivesse uma ordem precisa”. O que há de romântico, afinal, em viver sentado à escrivaninha, se comparado a uma caçada? Hemingway e Mann, sim, e também Mallarmé (“sem abandonar jamais seu escritório”) ou Rimbaud (“abandonando Paris para extraviar-se numa vida africana de aventura”), como questiona, venenosa, Marguerite Duras.
Dúvidas
Com seu estilo irônico e autodepreciativo (embora bem-humorado, nunca rancoroso), Vila-Matas não permite que o leitor saiba com clareza se o seu narrador quer ser um escritor ou apenas deseja viver as glórias literárias. A ponto de, em certo momento, desejar chegar a seu quarto e encontrar lá o seu romance pronto e escrito por Duras. Seria uma maneira fácil e rápida de virar um “succés d’estime”; por outro lado, ele reflete, “esse pretensioso sonho no qual se mesclavam a preguiça, o terror e certa idéia de sucesso não podia ser mais miserável”. O narrador parece ainda preocupado em descobrir o que faz de alguém um “escritor de verdade”. Em sua opinião são aqueles com quem não aprendemos nada, mas “que têm a rara coragem de se expor literalmente nos seus escritos”.
Alguém pensou em Ernest Hemingway? Exatamente. Hemingway serve de ponto de equilíbrio nesse sonho do personagem de ser um herói das letras — uma compensação por sua personalidade que, na verdade, é oposta, a de uma pessoa burocrática e sedentária como o temido burguês Thomas Mann. Adorar platonicamente um aventureiro romântico é sua válvula de escape, uma forma de se aceitar como é. Até porque, como disse Borges, citado em Paris não tem fim, Hemingway sofreu muito no fim da vida pelos caminhos que seguiu. “Doía-lhe ter dedicado sua vida às aventuras físicas e não somente ao puro exercício da inteligência”.