O mago de Morais

Fernando Morais foi atrás de Paulo Coelho — o homem obcecado com a idéia de se tornar um escritor das multidões
Paulo Coelho por Ramon Muniz
01/08/2008

Talvez o escritor Paulo Coelho seja um dos nomes que, de certa forma, sintetizam esse poço de contradições que é o Brasil. Afinal de contas, trata-se de um dos principais autores do mundo, posto que seus livros já alcançaram a marca de 100 milhões de exemplares vendidos em todo o planeta, com direito a traduções em muitos idiomas, para além do francês, italiano, alemão, inglês e espanhol. A importância de Coelho, inclusive, ultrapassa a barreira da literatura. Há alguns anos, ele participa do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, sem mencionar suas palavras em outubro do ano passado durante o anúncio do país sede para a Copa do Mundo de 2014. Para que se tenha uma idéia: no dia em questão, aquele que foi considerado o atleta do século, Edson Arantes do Nascimento (Pelé), não esteve presente. Paulo Coelho estava. E o que dizer da comenda da Legião de Honra, concedida pelo então presidente francês Jacques Chirac em 1998? Não, não há dúvidas de que Paulo Coelho é, sim, célebre.

Tal condição, no entanto, não o libera de suas contradições: em seu próprio país, o escritor está longe de ser uma unanimidade. Muito ao contrário: o leitor assíduo deste Rascunho sabe muito bem que dentro do código existente entre os leitores experimentados e os leitores comuns, há, evidentemente, um consenso, para não dizer pré-conceito, para com a obra de Paulo Coelho. Em depoimento ao Paiol Literário em 2006, o bibliófilo José Mindlin resumiu bem esse sentimento: “Paulo Coelho está para a literatura assim como Edir Macedo está para a religião”. Se para bom entendedor meia palavra basta, a analogia de Mindlin é definitiva. Ainda assim, se a respeito da obra de Coelho parece existir uma resposta que não explica seu êxito, poucos se deram ao trabalho de buscar as raízes de seu sucesso, bem como de suas contradições, na sua trajetória. Faltava um escritor para contar a vida de outro escritor. Em O mago, o jornalista Fernando Morais foi atrás do homem obcecado com a idéia de se tornar um escritor das multidões. E o resultado está num catatau de pouco mais de 600 páginas.

Ao contrário do que se possa imaginar, Fernando Morais, autor experimentado por outras narrativas do gênero (como Olga e Chatô), não teve problemas ao retratar Paulo Coelho. Encontrou, sim, consentimento por parte do ex-parceiro de Raul Seixas. Há quem se lembre, logo no início de 2007, quando Paulo Coelho assinou um texto que rechaçava o comportamento do cantor Roberto Carlos, que, sentindo-se invadido por uma biografia não-autorizada, decidiu recolher os exemplares da obra assinada por Paulo César Araújo. Estratégia de marketing ou não, já naquela época era sabido que Fernando Morais trabalhava em um projeto de biografia de Paulo Coelho. O que não se tinha notícia, e revelou-se logo no lançamento deste livro, era a natureza do que havia sido exposto: em linhas gerais, para não estragar a surpresa de quem quiser atravessar as 610 páginas de texto, Fernando Morais teve acesso aos arquivos pessoais de Coelho, uma espécie de baú do Mago, para além das dezenas de entrevistados que aparecem ao longo do livro. Todos esses componentes, não há dúvida disso, constroem um edifício invejável no que se refere à apuração dos fatos acontecidos com o personagem, sobretudo nos casos mais polêmicos, como as internações em hospitais psiquiátricos, os casamentos frustrados, sua infância e juventude em um Rio de Janeiro de certa forma inocente se comparado com a cidade partida de hoje. Sem medo de polêmica — Morais, muitas vezes, parece procurar os casos mais, como dizer?, ácidos —, o jornalista descortina o passado ultraliberal de um Paulo Coelho que viveu o sexo, as drogas e o rock’n’roll como ninguém em sua geração. E o mérito dessa biografia é não deixar nenhum tema por baixo do pano.

Paulo Coelho por Ramon Muniz

Vaidade excessiva
Para tanto, Fernando Morais faz uso de uma narrativa aparentemente fora de moda, uma vez que opta por obedecer a cronologia dos fatos, a não ser pelo primeiro capítulo, quando traça um longo perfil de Paulo Coelho como celebridade planetária. Aqui, as palavras que resumem essa breve saga poderiam ser: incrível, fantástico, extraordinário. Nada parece o bastante quando se trata de Paulo Coelho, a começar pelos recordes de venda de seus livros e de público quando são abordadas as tardes de autógrafo e de suas palestras. Por outro lado, o jornalista evidencia a vaidade excessiva do autor de Brida e O Zahir, duas de suas obras que alcançaram o status de livros conhecidos tanto por leitores como por não-leitores. Eis uma das dádivas do mago: ele consegue ser best-seller de gente que não necessariamente se considera leitor — e aqui, ao contrário do que se pode imaginar, não vai qualquer juízo a respeito de sua obra. O assunto é a biografia, e não a obra de Paulo Coelho.

A propósito, um adendo se faz necessário neste texto, algo como uma digressão: recentemente, a revista Piauí publicou um longo ensaio que analisava com requinte a obra do escritor das multidões. Assinado pelo diplomata e escritor Marcelo Dantas, o texto passa um pente fino e traz uma interpretação essencial sobre Paulo Coelho: “Paulo Coelho não quer fazer literatura. Sua prioridade é vender livros. Movido pelas estatísticas da moderna indústria editorial, ele convenceu-se de que o grande público gosta mesmo é de seu ocultismo açucarado, com tramas banais e finais miraculosos. Tal como o Dr. Igor de Verônica decide morrer, que manipula seus pacientes com furor demiúrgico, assim o mago contenta-se em iludir seus leitores, vendendo-lhes gato por lebre”. O trecho acima citado não consta da biografia assinada por Fernando Morais. Entretanto, é um texto que deveria servir de rodapé. Em nenhum momento, o jornalista envereda pela subjetiva área da crítica literária. No entanto, a biografia mostra a história de um personagem abnegado pela embriaguez do sucesso: em todos os 30 capítulos, está marcada a saga de alguém que sempre quis ser um escritor famoso. Nesse caso, muito se explica acerca de sua receptividade junto ao público e junto à crítica.

Projeto de escritor
Para o público, Paulo Coelho é mesmo um mago. Sua capacidade de conquistar leitores é inegável, e isso tem a ver com seu propósito de ser um escritor famoso, isto é, um escritor conhecido e que vende (muitos) livros. Nada disso, e depois da leitura da biografia esse detalhe fica mais evidente, tem a ver com fazer literatura. Em nenhum momento, seja nos seus diários, seja nos seus depoimentos, Paulo Coelho se mostra aterrado com a urgência de um tema, com um estilo ora em voga, ou com uma espécie de projeto literário. Não havia projeto de literatura, mas, sim, projeto de escritor, como se lê no trecho a seguir:

a propaganda será o principal elemento do meu programa literário. E será administrada por mim. Pela propaganda obrigarei o público a ler e julgar o que escrevo. Com isso meus livros terão maior vendagem, mas isso será uma conseqüência secundária. O importante é que excitarei a curiosidade popular a respeito de minhas idéias, de minhas teorias.

De sua parte, os críticos não souberam de cara entender Paulo Coelho como um fenômeno paralelo à literatura, daí a celeuma gerada em torno do autor. Em vez disso, tentaram, inúmeras vezes, invalidar o seu sucesso, como quem dissesse que tudo era passageiro. À medida que os livros de Coelho alcançavam mais e mais leitores, essa crítica acabou por se tornar inócua tendo em vista o universo dos números a favor do escritor. Então, agora, quando Paulo Coelho lançar novo livro, qualquer tentativa da crítica em desconstruir a obra será inoperante. O autor está blindado pelos inúmeros prêmios que recebeu e livros que já vendeu. Ao apresentar o relato desse “duelo”, Fernando Morais não esconde seu fascínio por Paulo Coelho e, de certa forma, toma partido do autor muitas vezes, chegando a dizer que um crítico não leva sequer uma bactéria às livrarias. Nesse caso, o que fica evidente é o magnetismo que o carisma de Paulo Coelho consegue exercer mesmo em jornalistas experientes como Fernando Morais. Não é à toa que o jornalista escolheu como título da biografia o sugestivo O mago.

O mago
Fernando Morais
Planeta
632 págs.
Fernando Morais
Nasceu em Mariana (MG), em 1946. Jornalista desde a década de 1960, escreveu para vários jornais e revistas, como o Jornal da Tarde, Veja e Folha de S. Paulo. Como biógrafo e escritor, assinou, entre outros, os livros Chatô e Olga, ambos publicados pela Companhia das Letras, além de Montenegro e Na toca dos leões, ambos editados pela Planeta. Em 2001, outro de seus livros, Corações sujos, ganhou o Prêmio Jabuti na categoria não-ficção.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho