Leitora fiel desse jovem escritor gaúcho, encontrei certa decepção em Mulher perdigueira, seu terceiro livro de crônicas. Nele, Fabrício Carpinejar repete a estrutura formal, os temas e até a formatação (coisas do editor, talvez) de suas obras anteriores, O amor esquece de começar, de 2007, e Canalha!, de 2008, vencedor do prêmio Jabuti 2009. As grandes questões que movem o “eu” como cronista — amor, o mistério do feminino, família, filhos, e sobretudo a dura adaptação do homem contemporâneo ao mundo doméstico — são abordadas, neste livro, apenas como uma espécie de seguimento biográfico: casamentos acabam, filhos crescem, aparece nova namorada, muda-se de casa e de rotina, antigas memórias de infância retornam vigorosas. Ao leitor de Carpinejar é oferecido então mais do mesmo — o que, se não desmerece esta obra, obriga-nos sem dúvida a compará-la às anteriores, que, por originalidade e anterioridade, trazem mais frescor. (Canalha!, por exemplo, é um volume precioso para se estudarem os níveis da subjetividade do cronista, “macho sensível” — que dissolverá na modernidade de sua prosa este deteriorado paradoxo).
Entretanto, uma das grandes virtudes deste poeta, que se fez cronista para melhor dialogar com o leitor, amadurece em Mulher perdigueira. É o modo como o escritor encara o gênero em que se debruça. Fazer crônica “à Carpinejar” é mais do que diálogo e interpretação de mundo, é buscar um ostensivo enfrentamento de si mesmo, é sucumbir à confissão de todas as suas fragilidades, que servem, por acréscimo e provocação, para mobilizar seu leitor: seja homem ou mulher (se é que isso faz diferença).
Falta-me traquejo para a vida de solteiro. Colocar mais um pires na montanha e embarcar com a consciência limpa ao trabalho. Passar reto e despreocupado pelo amontoado de xícaras e pratos da semana, batendo na boca da torneira. Usar todos os talheres para depois pensar em lavar os encardidos. (Cueca no box)
Carpinejar não se satisfaz em observar o mundo exterior à sua volta, dissecá-lo comentando-o, como fizeram tantos cronistas da tradição. Ele o faz agora com os “olhos míopes de quem enxerga muito bem de perto”, como já disse Gilda de Melo e Souza, na época referindo-se a um tipo de produção literária feminina. Ou seja, vale mais o âmbito interno, o mundo miúdo de todos os dias que o grande mundo lá fora.
Este enfoque expõe-lhe certamente a privacidade (já que um poeta de formação não se esconde ou se revela impunemente por trás da crônica). Numa espécie de big brother de si mesmo, Fabrício usa e moderniza o gênero crônica para abrir a camisa e expor-se de peito nu. Ao leitor não é concedida a ilusão de estar diante de um narrador, mas do próprio autor, que dissecado, se despe:
Escondo a etiqueta do meu corpo. Coloco para dentro da pele. Não permito ninguém reparar meu valor. Há uma ilusão feminina de que viver com um poeta é uma maravilha, que ele é um semideus da sensibilidade, superdotado de gentilezas e afagos. (…) Lamento decepcionar, o sonho acabou. Antes de sua morte, Lennon descobriu que não se leva poeta para casa — no máximo, come-se em motel. (Essa vida de poeta)
Nestas crônicas — e insisto que as melhores talvez estejam em Canalha!, não aqui —, tal pacto com o leitor passa por um traiçoeiro caminho: no momento em que me desvelo e me destruo, ganho forças e desqualifico a tua avaliação sobre mim. Ou seja, se eu digo antes sobre minha impotência e fragilidade, quem haverá de repetir o mesmo, já sem valor?
Sujeira nos dentes me põe em alerta. Reunião-almoço é um momento em que ninguém deixa uma boa impressão. Esqueça. Já estive fechando um negócio com uma casquinha de feijão nos dentes. Não me avisaram. De pé, à cabeceira da mesa, eu escorria palavras higiênicas, fortes, límpidas, enquanto a dentição revelava justamente o contrário. (Com algo nos dentes)
Ainda assim, é possível ao cronista conceber “teorias” e reflexões, passando longe, porém, do duro cacoete professoral de tantos outros cronistas de grandes verdades. Carpinejar as mescla sutilmente à confissão, numa atitude recorrente em seu texto.
Tomo porre e não lembro nada. Depois de toda bebedeira, adoto essa desculpa, mas me lembro de tudo. Sempre lembro (…) A amnésia é uma invenção moral. Para evitar constangimentos, para prevenir explicações, que são a parte cansativa da aventura. (grifos meus, Doideira descartável)
Identidade masculina
Das crônicas de Mulher perdigueira (e isso parece um árduo avanço para o artista), transborda uma maior insistência na questão crucial para o autor: qual é mesmo, hoje, o lugar do homem-macho, do homem-sensível, do tarado-romântico, do canalha-amado, do marido-amante?
Certamente — e isso o autor diz todo o tempo — não é mais o lugar que lhe atribuíra o senso comum de duro passado patriarcal, sobretudo em terras sulinas. A crônica que abre o livro parece exemplar na busca sofrida dessa nova identidade do homem. Em Quero uma mulher perdigueira, Fabrício mostra-se contrário ao consenso, escapa da turma, marca-se como diferente.
Meus amigos reclamam quando suas namoradas os perseguem. (…) Eu me faço de surdo. (…) Quero uma mulher perdigueira, possessiva, que me ligue a cada quinze minutos para contar uma ideia ou uma nova invenção para salvar as finanças, quero uma mulher que ame meus amigos e odeie qualquer amiga que se aproxime. Que arda de ciúme imaginário para prevenir o que nem aconteceu. Que seja escandalosa na briga e me almadiçõe se abandoná-la.
Carpinejar trata de manusear o que há de mais delicado, de mais frágil em si mesmo (a grande pergunta acima), e de colocar essa fragilidade “em confronto com aquela roda-viva da qual não se pode fugir”, como diz Adorno sobre a lírica. Talvez esse seja o nó górdio de seu estilo. Que faz da sua crônica palco de vários momentos puros de lirismo. Por isso, pergunto eu, igualmente leitora do Fabrício poeta: não é hora também de voltar aos versos, onde da mais irrestrita individuação, o poema vai retirar o universal? Mostremos um pouco desse poeta:
(…) Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir.
Atrás da aparência, há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.
Parto em expedição às provas de que vivi.
E escavo boletins, cartas e álbuns
— o retrocesso da minha letra ao garrancho.
O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.
(Segunda elegia, de Terceira sede)