O lugar dos intelectuais

Ángel Rama discute como a escrita e a leitura se impõem no jogo de forças sociais nos países latino-americanos
Ángel Rama, autor de “A cidade das letras”
26/11/2015

“Os intelectuais são culpados?” Sartre fez a pergunta. Depende. Quem entende que devem ficar calados quando se manifestam, na certa os condenarão. Por outro lado, aqueles que esperam que se manifestem quando se calam, sem dúvida os culparão.

Sempre bom lembrar que vivemos na “pátria educadora”, onde intelectuais ou são párias ou, geralmente, seres perigosos. Mesmo assim nos restam sérios intelectuais.

Mas como agir frente a uma “cidade letrada”? A cidade letrada, segundo Ángel Rama.

[…] cidade letrada que compunha o anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais.Todos os que manejavam a pena estavam estreitamente associados às funções do poder e compunham o que Georg Friederici entendeu como um país modelo de funcionalismo e de burocracia.

Naturalmente a casta recebia a recompensa por tamanha devoção.

A cidade das letras pode ser lido como um estudo sobre “Escrita e Sociedade na América Latina”, obviamente repleto de ideologia. E quando digo ideologia, apressado leitor, não estou a condenar tampouco a louvar a presença da mesma. Mas isenção, se não na hora da escrita, pelo menos na hora da leitura, se faz importante.

Ángel Rama estabelece uma série de abordagens, todas repletas de referências acerca da presença e ações dos intelectuais latino-americanos. Tal espécie tem como seu habitat preferencial os salões e assembleias do poder.

Quando afastados desse território, não medem esforços e sepultam escrúpulos no objetivo único de para lá se transferirem e imaginam a fundação de uma nova sociedade.

O poder, chegar ao poder, este é o mote. Pouco importando a viabilidade, pensava-se, desenhava-se a cidade, no papel ela estava pronta.

A palavra chave de todo esse sistema é a palavra ordem, ambígua com um deus Jano (o/a), ativamente desenvolvida pelas três maiores estruturas institucionalizadas (a Igreja, o Exército, a Administração) e de utilização obrigatória em qualquer dos sistemas classificatórios (história natural, arquitetura, geometria) de acordo com as definições recebidas do termo: “Colocação das coisas no lugar que lhes corresponde. Conserto, boa disposição das coisas entre si. Regra ou modo que se observa para fazer as coisas”.

Um aspecto é inquestionável: os grupos dominantes da América Latina tinham uma queda pelo estabelecimento de normas.

E os intelectuais?

Os próprios se entendiam como os responsáveis pela educação da população.

Tradução: educá-los de modo a permitir usá-los. No começo, seus objetivos tinham o caráter predominantemente religioso, mais tarde se transformaria em cívico. Chegar às universidades e a órgãos do poder compunha o objetivo dessa casta e acentuava o distanciamento para com o povo.

Essa hierarquização obrigava a proliferação de jargões, e desse modo certos grupos profissionais faziam uso de uma retórica, de um rebuscamento linguístico, que os distinguiam dos demais e naturalmente do povo pouco ou nada letrado.

Ángel Rama estabelece uma série de abordagens, todas repletas de referências acerca da presença e ações dos intelectuais latino-americanos.

Domínio pelas letras
Aqui um aspecto extremamente forte ocorre na América Latina, imagine então, atento leitor, que o mesmo deve se repetir por este mundo, vasto mundo. É o que diz respeito à dominação, à opressão através das letras. Rama providencialmente abordou ao se referir a época distante mas a prática perpetuou-se.

É óbvio que o número de analfabetos diminuiu significativamente, mas esse não é, infelizmente, o requisito indispensável a permitir a dominação. Importante se faz a intimidade com as ferramentas da retórica.

Importante destacar a presença de um sonho europeu a flutuar sobre a América Latina, o que diz respeito à cidade ideal. A cidade idealizada, a cidade no/de papel.

Junto com esse sonho europeu cresceu a obsessão por uma cidade, um estado, um país hierarquizado. À nobreza ou à suposta nobreza caberia ocupar o topo da pirâmide social. Das armas convencionais às armas letradas, a nobreza não poupou esforços no sentido de subjugar.

Este livro de Rama é extremamente rico e permite variadas abordagens, mas a construção das cidades da América Latina é o aspecto deflagrador das análises, permite refletirmos sobre nossa índole, essa que nos faz eternos subservientes. Cidades construídas no sentido de servir ao poder, enquanto na Europa as cidades eram criadas sem essa infame característica. Isso não agradava e a cidade ideal foi planejada para o nosso continente.

E o custo foi alto e coube ao povo, passou a conhecer a nefasta burocracia, entre outros males. Entre eles a negação do real em prol de um ideal. É nesse instante que o poder da escrita passa a ser valorizado. De forma deplorável, é inegável. Isso tudo para se tentar reproduzir por aqui a realidade e os valores europeus. No comando o ser letrado.

E o ser letrado ignora qualquer tipo de cultura que não seja a sua e busca impor seu modelo ideal, seja de cidade, de disposição no espaço, seja de costumes e sempre sob a égide da violência. Entenda-se por violência não apenas o ato físico, o material, mas a violência oportunizada pelo combate frente a um adversário “desarmado” culturalmente. Um adversário inocente. Tão alienado que é capaz de agradecer e reverenciar seu algoz.

O poder (o opressor) legitimou-se utilizando a letra, a escrita, ferramenta que permitiu a criação de novas cidades, cidades ordenadas. Cidades sob a égide daqueles que tinham intimidade com a escrita. A busca pela materialização do modelo ideal de cidade. Tudo isso, no entanto, pode ser visto por outra lente. Aquela que permite visualizar as razões mais íntimas do poder, as mais cruéis: a criação/manutenção de um espaço ideal. Um ambiente onde possam se multiplicar e urdir seus planos mais pérfidos. Aqueles que não consideram o ser humano e suas necessidades, aqueles que sabem “usar” o povo.

A forma com que Ángel Rama analisou, desnudou, a América Latina não é de envergonhar os povos latino-americanos. De jeito nenhum. Ocoreu/ocorre aqui, mas é prerrogativa do ser humano. Pode apostar, está ocorrendo nesse instante mundo afora. Lamentavelmente. Mas sem surpresas. Somos capazes de feitos muito mais deploráveis.

Os intelectuais são culpados? No que se refere ao relatado por Rama, não. Mas alguém deve ser ao menos responsabilizado. Sim. Nossa eterna capacidade de ajoelhar frente ao estrangeiro, mesmo sendo ele um semialfabetizado. Em terra de cego…

A cidade das letras
Ángel Rama
Trad.: Emir Sader
Boitempo
159 págs.
Ángel Rama
Escritor, acadêmico e crítico uruguaio. Nasceu em Montevidéu em 1926. Depois de estudar na Universidade de Paris, foi nos anos 60 diretor do Departamento de Literatura Hispano-Americana da Universidade de Montevidéu. Na época, também fundou a Editorial Arca, foi conselheiro da Biblioteca Ayacucho (em Caracas) e contribuiu com o semanário Marcha, uma revista literária de esquerda. Com o golpe uruguaio de 1974, seguiu para os EUA, onde ensinou em Princeton na University of Maryland. Morreu em 1983 num acidente aéreo.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho