O lugar da memória

"A secura dos ossos", de Sandra Godinho, ficcionaliza episódio real do massacre indígena de 1993 em território Yanomami
Sandra Godinho, autora de “A secura dos ossos”
01/06/2024

Sobre a recorrência de episódios violentos na cultura brasileira, o escritor Daniel Munduruku, em seu blog, afirma que somos uma nação parida à força, referindo-se a uma dor que deveria morar dentro de todos os brasileiros:

Foi assim com os primeiros indígenas forçados a receber uma gente que se impôs pela crueldade e pela ambição; uma gente que tinha olhares lascivos contra os corpos nus — e sagrados — das mulheres nativas. […] O Brasil precisa se reconciliar com sua história; aceitar que foi “construído” sobre um cemitério.

Reconciliar, aceitar, reconstruir — ações nada banais para iniciar a leitura do romance A secura dos ossos, cuja base está na conexão funesta entre nossa história e o genocídio dos povos originários.

Há algum tempo o Brasil, e por extensão a literatura brasileira, vem reescrevendo sua memória a partir da perspectiva de sujeitos colocados à margem, entre eles os povos indígenas, os escravizados e também as mulheres. O livro de Sandra Godinho acessa a subjetividade dos primeiros, aqueles que nos deveriam ser familiares, mas que por força da violência da colonização foram tornados estrangeiros na própria terra.

Em seu projeto literário, Godinho confronta visões oficiais da história brasileira, como em Tocaia do norte (2020), romance que narra a chegada de um padre italiano à Amazônia brasileira dos anos 1960 para liderar uma expedição do governo até um território dos Waimiri-Atroari. O objetivo era explorar a região, mas o resultado foi a matança daquela população nos anos da ditadura militar.

Em A secura dos ossos, seu sétimo romance, a escritora retoma o fio da reescrita do passado recente e ficcionaliza o terrível massacre de Haximu ocorrido em 1993 em território Yanomami, na fronteira entre Roraima e Venezuela, em que foram assassinados a tiros e golpes de facão cerca de dezesseis indígenas — dentre eles idosos, mulheres, crianças e um bebê. Pela chacina, foram indiciados 23 garimpeiros, sendo apenas cinco deles julgados e dois efetivamente presos, de acordo com o depoimento do xamã Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert em A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Genocídio, contrabando, ocultação de cadáver e crime de dano foram citados nos autos do processo de 1996.

A relação entre pertencimento e extermínio é apresentada a partir da narradora-protagonista Tainá Terra, que vive na fictícia Encantado das Almas, “encravada entre os garimpeiros e os Yanomami”, vilarejo de gente hostil à sua condição mestiça. Dali parte a jovem, ao lado do aventureiro Tião Rocha, em busca de pistas sobre a mãe desaparecida. Sua jornada culmina na chegada ao território sagrado dos Yanomami, cujas espiritualidade e organização social a princípio lhe causam estranheza e repulsa. No entanto, após alguns meses vivendo ali, Tainá termina por aderir ao modo de viver indígena, ao contrário de Tião, que integra o garimpo de ouro da região. A falta de limite do homem branco, personificada no garimpeiro, é a tônica do grupo determinado a “bamburrar”, expressão local para designar o enriquecimento decorrente da descoberta de ouro e pedras preciosas.

Odor de morte
Tainá vivia com o avô cego após o desaparecimento de seus pais e se caracteriza pelo olfato apurado, capaz de pressentir a desgraça, como quando sente o odor de morte do avô, “um cheiro de hibernação tão insuportável que logo se impregnou em meus poros, atravessou a pele, navegou pela garganta até atingir o estômago”. Ou o cheiro nauseante de sangue metálico em Tião, antecipando seu inimigo no futuro. Esse regime de sentidos se opõe (e posteriormente, complementa) àquele dos indígenas, capazes de exercitar a escuta que ainda lhe soa tão estranha: ao chegar à aldeia, a narradora os considera selvagens, desumanos e embrutecidos.

Ao longo da narrativa, várias passagens descrevem espaços de convivência, costumes e toda uma ética própria daquela tribo, o que confere ao texto um caráter quase documental. Além da escrita de inclinação historiográfica, Godinho se coloca em diálogo com parte de nossa tradição literária. A figura de Tainá, filha de mãe branca e pai indígena, miscigenada e sem lugar, remete ao clássico Iracema (1865), de José de Alencar, sobretudo se pensarmos em Moacir, filho da personagem alencariana. Não somente a geografia roraimense citada, mas também o majestoso Uraricoera, rio que banha a aldeia da protagonista, coincidem com o cenário amazônico de Macunaíma (1928), de Mario de Andrade. A autora vincula seus escritos à trágica heroína romântica e ao malandro do romance modernista, mas o romance propõe outra dobra, ao mirar na experiência da mulher indígena contemporânea: futura xamã, Tainá tem contas a acertar no território que há muito absorve o sangue derramado dos nativos.

Em seus questionamentos, ela busca entender as práticas do xamanismo, e para tanto aspira o pó alucinógeno da yãkoana, e só então ouve os espíritos dos mortos, chamados de xapiri. Em um dos mais belos fragmentos do romance surgem também as palavras de uma árvore sagrada da floresta. O expediente de instituir narradores não-humanos traz a possibilidade de dialogar com outros modos de percepção, desconstruindo hierarquias e retirando o ser humano do lugar da medida de todas as coisas. A natureza não só nos olha, como sente e fala:

Sou a dona das pausas e dos silêncios. Mas será na ausência que minha importância se fará conhecer aos homens “civilizados”, os brancos. Eu, Amoa hi, vejo e ouço tudo.

A troca entre humanos, animais, vegetais e seres da floresta caracteriza o texto, que se notabiliza por construir de forma hábil o devir indígena da narradora — algo existente, mas ignorado por ela: “O sangue do meu povo já corria em minhas veias. Sempre correu, ainda que eu o negasse”. A metamorfose final da personagem se constitui pelo processo de desnascer, mistério alcançado para o assentamento da nova vida. Nela, a compreensão da cerimônia fúnebre local, em que a incineração do corpo do morto ocorre em paralelo à queima dos objetos tocados por aquela pessoa, para a correta passagem entre o mundo dos vivos e os mundo dos mortos. De acordo com a crença Yanomami, somente dessa forma o céu não desabaria sobre eles.

Por isso é dolorosa a descrição do massacre e também o fato de os corpos dos indígenas serem enterrados pelos garimpeiros, violando sua fé. Também por isso tão arrebatador o ritual funerário final, em que a comunidade dignifica os mortos ateando fogo aos corpos e recolhendo suas cinzas para que possam, enfim, se juntar aos antepassados. Integrada ao grupo, Tainá toma para si a missão de denunciar as atrocidades de Haximu, honrando os que se foram e buscando não a vingança, mas justiça.

Ossos, chamas e terra se encontram no romance para construir a recusa da profanação, ritualizando, em palavras, aquilo que não deveria nunca ser repetido ou esquecido. No momento em que indígenas marcham sobre Brasília para cobrar do governo políticas de demarcação de terras e em que a tese do marco temporal ainda segue em discussão, A secura dos ossos surge como obra incontornável para atualizar nosso olhar sobre as diversas formas de vida e os modos de ocupar (e respeitar) o chão que pisamos.

A secura dos ossos
Sandra Godinho
Patuá
178 págs.
Sandra Godinho
Nascida em 1960, em São Paulo (SP), é pós-graduada em Letras pela UFAM e vive desde 2003 em Manaus (AM). Publicou vários livros de contos e romances como Tocaia do norte, Prêmio Cidade de Manaus em 2020 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2021. A secura dos ossos foi finalista do prêmio LeYa de 2022.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho