O livro e o pão

Caminhos e exemplos para fortalecer a leitura no cotidiano brasileiro
Affonso Romano de Sant’Anna por Robson Vilalba
01/11/2011

Affonso Romano de Sant’Anna é um caso singular na história da intelectualidade brasileira. Isso se deve ao fato relevante de ter conseguido conciliar sua vida de escritor, poeta, cronista, crítico literário e professor de literatura com o engajamento a uma política eficaz de leitura, especialmente quando dirigiu a Biblioteca Nacional (1990-1996) e implantou o Proler.

Em seu Ler o mundo, temos uma coletânea de textos que tocam de perto as questões relativas à importância da leitura como condição primeira para a criação de uma sociedade desenvolvida, em que o livro é concebido como “a arma mais importante no combate à marginalidade e à violência”. A antologia percorre temas percucientes da história da leitura, da formação do leitor, da realidade das bibliotecas, por meio dos relatos colhidos na experiência do próprio autor, seja na forma magistral de suas crônicas, que ele define a partir do viés do “cotidiano transfigurado pela leitura”, seja em seus requintados ensaios de teor acadêmico. Ou ainda nos depoimentos voltados à práxis da leitura, numa perspectiva ampla de compreensão da história de nossa cultura.

Em meio aos estudos, sempre mais instigantes, ao redor da chamada teoria da leitura e suas variantes, tratados atualmente em obras como as de Alberto Manguel, Stanley Fish, Umberto Eco, Jean-Claude Carrière, Roger Chartier, o nome de Affonso Romano de Sant’Anna se distingue pela originalidade de suas precisas investigações, especialmente quando se volta à nossa realidade.

Tudo é texto
Num primeiro momento, ele assevera a necessidade de ampliação do conceito de leitura, já que nascemos leitores, pois o mundo se nos apresenta para que o apreendamos, decifremos e interpretemos, em uma gama infinita de formas e pontos de vista:

O astrônomo lê o céu, lê a epopéia das estrelas. Ora, direis, ouvir & ler estrelas. Que estórias sublimes, suculentas na Via Láctea. O físico lê o caos. Que epopéias o geógrafo lê nas camadas acumuladas num simples terreno. Um desfile de carnaval, por exemplo, é um texto. Por isso se fala de “samba-enredo”. Enredo além da história pátria referida. A disposição das alas, as fantasias, a bateria, a comissão de frente são formas narrativas.

Uma partida de futebol é uma forma narrativa […].

Não é só Sherazade que conta histórias. Um espetáculo de dança é narração. Uma exposição de artes plásticas é narração. Tudo é narração.

Mas é fundamental que se reitere também que não só as sociedades em que há o predomínio de leitores é que detêm o privilégio do desenvolvimento. Conforme bem lembra Sant’Anna, Lévi-Strauss em Tristes trópicos já apontava para o fato de que “as sociedades não letradas também têm cultura e as sociedades da escrita não são necessariamente ética e humanamente melhores que a dos analfabetos”. Além de citar o famoso antropólogo francês, ele recupera a genial percepção de João Guimarães Rosa como sendo a do autor brasileiro que melhor soube lidar com a sabedoria popular e a erudita.

Estratégias de leitura
Indo além e partindo da premissa de que “não é só quem lê um livro que lê”, o autor se volta a uma das questões cruciais da contemporaneidade, buscando elucidar estratégias que colaborem para uma política eficaz de leitura, denunciando a falta de precisão que este termo vem assumindo, em meio à banalidade de informações que nos chegam por todos os canais, deixando-nos com a sensação de que acessamos o mundo, mas paradoxalmente fazendo com que nos sintamos perdidos:

Há um refrão que sempre digo e uma vez mais o repito, e que se encaixa no que estou configurando: quando falamos de leitura não estamos falando de leitura, e, sim, de “leitura”. O trabalho por uma sociedade leitora consiste antes de tudo em desautomatizar a noção trivial de leitura, porque o que se comprova na sociedade do excesso de letras & sinais é que os que lêem não lêem.

Daí a urgência em investir em estratégias — do que ele denomina — “leitura do mundo”.

Esse leitmotiv remete ao que Bernardo Soares, o semi-heterônimo de Fernando Pessoa, ensina no Livro do desassossego, ao tratar da “erudição da sensibilidade”, traduzida como verdadeira experiência que “consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim, a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que procuremos e saibamos procurar”.

Nesse sentido, em busca de tal erudição, há uma série infinita de agentes, educadores, contadores de histórias, formadores, professores, leigos e também movimentos, feiras, programas que vêm se dedicando à empreitada de difusão do livro e da literatura no Brasil. Numa verdadeira profissão de fé, “com e pela leitura”, o autor rastreia os mais variados exemplos, demonstrando que “o livro na mão” faz toda a diferença num país “desastrado” como o nosso, “em que a vida não vale nada”.

Do evento ao projeto
Um dos casos citados mais interessantes é o dos “agentes de leitura” do Ceará:

Treinados para contar histórias, cada um deles atende 24 famílias nas periferias das cidades. São uma espécie de “agentes de saúde”. Cuidam da saúde do imaginário que repercute na saúde física das pessoas. Conto-lhes isto e não consigo deixar de acrescentar que há quinze anos, desde os tempos da Biblioteca Nacional, desde os tempos em que o Proler disseminou pelo país os “contadores de história”, desde então, venho insistindo com prefeitos, governadores e ministros da Cultura e da Saúde, para que transformem os “agentes de saúde” em algo mais completo. Treinados devidamente também como “agentes de leitura”, poderiam desempenhar o papel transformador de “agentes da cultura”.

O elogio feito ao que ocorreu na terra de Iracema tem a ver com o que o autor percebe como feliz exemplo da transformação de um evento em projeto, já que a Secretaria de Cultura do Ceará saiu da idéia e partiu para a ação, dividindo os 184 municípios em regiões socioculturais, monitorando treinamentos do pessoal em todo o Estado.

Calor ancestral
Ao investir na premissa de que a leitura pode e deve se nutrir também da contação de histórias, vincula-se a decifração das letras e dos signos à sua dimensão de oralidade e os “causos”, ao serem narrados, acabam por reprocessar a vida em todas as suas faces. O ouvinte/leitor então, sensivelmente, abre-se à erudição da leitura do mundo, identificando-se e reconhecendo-se nele, da mesma forma com que, ao redor do calor da fogueira ancestral, os homens reunidos se aqueciam com histórias:

O mundo continua prenhe de histórias.
Há que contá-las.
Há que ouvi-las.
Uma história pode modificar uma vida.
Um povo sem histórias, definha.

A função terapêutica e regeneradora do contar/ouvir/ler histórias é recorrente em várias obras literárias. Apenas a título ilustrativo, voltemos a Guimarães Rosa, a seu primoroso Miguilim, em que este, para atenuar o sofrimento que a febre causava ao irmãozinho moribundo Dito, passa a lhe contar histórias, de modo compulsivo, como se o poder de narrar pudesse afastar a morte. Ou ainda a Italo Calvino, em O barão nas árvores, quando conta as aventuras do terrível bandido João do Mato que teria se regenerado, abandonando o crime, a partir do momento em que o protagonista Cosme vicia-o com livros.

Narrativa terapêutica
Sant’Anna também lembra episódios reais semelhantes aos que inspiraram aqueles autores. Conta o que se deu com o amigo médico, dr. Ronaldo de Juiz de Fora, que, para livrar do tédio os pacientes do hospital em que trabalhava, emprestava-lhes livros, a fim de que pudessem viajar imaginariamente. Um dia, surpreendera-se com um deles que, recebendo alta, pedia-lhe que adiasse a sua saída, porque precisava saber o fim de uma história que havia começado a ler ali. O que se segue é muito curioso:

O médico achou interessante o pedido, mas seu assistente chamou sua atenção comentando que aquilo não era bem assim, pois o referido doente era analfabeto. O dr. Ronaldo, então, vai ao paciente e pergunta-lhe se é analfabeto. Meio encabulado, mas firme, o doente então lhe diz uma frase capaz de matar de inveja Guimarães Rosa:

“É, doutor, não sei ler mesmo não. Mas o paciente do leito 12 está lendo para mim, e eu leio a leitura dele”.

Ler a leitura do outro, às vezes, é a saída para tornar viável a cura por meio dos livros, já que a ficção é poderoso agente para combater as doenças que a realidade nos inflige.

Curitiba e os Leitores Tortos
Outro caso interessante, em que um evento acabou por se transformar em projeto de cultura é o da Sociedade dos Leitores Tortos de Curitiba. Começou por acaso e modestamente com a reunião de alguns amigos, que sentiram necessidade de comentar os livros que estavam lendo. Aos poucos cresceu e, para a surpresa do autor, o tipo de gente que ali se aglutinava não eram escritores, mas engenheiros, advogados, psicólogos, etc.:

Pensei: eis um modelo de atividade de leitura que pode ser repetido em qualquer comunidade. Não precisa de patrocinador, não carece de ser aprovado pela lei Rouanet. Basta querer, basta gostar e basta ter alguém com certa liderança, que as coisas começam a acontecer. […] Juntaram as duas pontas do fenômeno leitura: o pessoal e o subjetivo com o social e comunicativo. […] Está aí a redistribuição de leituras.

Pão espiritual
Lembrando, com ternura, os primeiros passos da trajetória de alfabetização de seu pai — que aprendera a ler sozinho — o autor nos conta do momento epifânico que se deu, quando ele conseguiu ler, pela primeira vez, a palavra “padaria”. E observa que, no fundo descobrira, na simplicidade daquela revelação, o sentido da leitura como alimento: o verdadeiro “pão espiritual”.

Haveria ainda outros interessantes exemplos, enunciados ao longo deste Ler o mundo, que procuram elucidar o quanto certas estratégias podem fazer toda a diferença na concretização da esperança de que o livro e a literatura sejam, de fato, importantes instrumentos de transformação cultural.

Um dos mais sérios embates que aqui se enfrenta é o de acreditar na tarefa de dar também o pão espiritual a quem não tem, sequer, o pão de cada dia. Quem sabe, se conseguirmos saciar as duas fomes, poderemos, como afirma Affonso Romano Sant’Anna, colaborar efetivamente, para que o Brasil não seja só violência e miséria.

Ler o mundo
Affonso Romano de Sant’Anna
Global
245 págs.
Sísifo desce a montanha
Affonso Romano de Sant’Anna
Rocco
131 págs.
Affonso Romano de Sant’Anna
Nasceu em Belo Horizonte, em março de 1937. Nas décadas de 1950 e 60, participou de movimentos de vanguarda poética. Em 1962, diplomou-se em Letras e três anos depois publicou seu primeiro livro de poesia: Canto e palavra. Foi cronista do Jornal do Brasil e d’O Globo. Atualmente escreve para o Estado de Minas, Correio Brasiliense e Rascunho. Foi diretor da Biblioteca Nacional e um dos líderes na implantação do projeto Proler. É autor, entre outros, de Que país é este? e O enigma do vazio. Acaba de lançar o livro de poesias Sísifo desce a montanha.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho