O livro do ano

Em Suíte em quatro movimentos, Ali Smith subverte expectativas e questiona lugares-comuns
Ali Smith
Ali Smith. Foto: Divulgação
02/04/2015

“Por tudo quanto tenho lido ou das lendas e histórias escutado, em tempo algum teve tranquilo curso” a escrita de uma dissertação. Peço perdão pelo mau uso de Shakespeare, mas essa parece uma verdade universal: antes do texto final, há muita distração e muitas mudanças de ideia a serem enfrentadas. Num mundo ideal, por exemplo, eu não teria lido nada além dos dez romances de Bernardo Carvalho (e dos livros teóricos que corroboravam minha visão sobre eles) em 2014; no final das contas, li 155 — não se assuste, que o número abarca ficção literária, não ficção, infantis, YA e histórias em quadrinhos.

Duas das grandes “distrações” do ano são romances que o Rascunho me incumbiu de resenhar: o do mês anterior — escrevi sobre Por escrito, de Elvira Vigna — e o deste — Suíte em quatro movimentos. As aspas são necessárias porque romances poderosos assim não se contentam em nos acompanhar na mesa do almoço, no ônibus, na bicicleta ergométrica. Eles nos fazem mudar de ideia e se infiltram em lugares inesperados — dissertações, por exemplo. Mas me adianto.

LÁ estava um homem que, entre o prato principal e a sobremesa de um jantar, subiu as escadas e se trancou num dos quartos da casa das pessoas que estavam dando o jantar.

Suíte é como se chama o conjunto de movimentos instrumentais (no caso, quatro) dispostos com algum elemento de unidade para serem tocados sem interrupções. Suíte também se refere a um cômodo com um banheiro contíguo. O acerto da tradução — primorosa — do romance começa no título — e não apenas porque um romance intitulado “Lá mas pra o” (There But For The, à moda literal) seria ignorado na livraria.

A citação dois parágrafos acima é o mote do livro: Miles é o protagonista — invisível, pois se trancou no quarto — do romance; é o elemento de unidade de nossa suíte. As quatro partes (movimentos) em que a obra se divide se iniciam com uma das palavras da tradução literal do título, cada seção protagonizada por um personagem distinto que o conheceu em uma época diferente, cada um representando uma fase da vida.

Em está Anna, que o conheceu numa viagem quando eram adolescentes. Mas tem Mark, o rapaz que leva Miles ao jantar interrompido pela prisão domiciliar autoinfligida. Pra nos apresenta à mente de May, uma senhora idosa acamada, próxima da morte (“PRA falar a verdade não havia mais palavras ditas em voz alta, agora, nem haveria, por dinheiro nenhum, por ninguém.”). Finalmente, em O revemos Brooke, criança inteligente que é a única a entrar em contato com Miles desde que se trancou.

MAS o que quer um homem quando se fecha/ pedir o que termina ou o que começa?

Exuberância é uma boa palavra para descrever a escrita de Smith. Ela não tem medo das referências literárias — irresistível a ideia de ler tudo, de Shakespeare a J. K. Rowling, passando por Tolstói, ao terminar a leitura — tampouco do que se pode fazer com a linguagem: em , temos flashbacks misturados ao presente de Anna; em Mas, a falecida mãe de Mark conversa com ele em rimas; em Pra, vemos de perto uma mente que se deteriora — e se esforça para lembrar; e em O, o contrário — mal acompanhamos o pensamento de Brooke. Pode não ser uma leitura das mais fáceis — algumas pessoas a quem recomendei comentaram isso; para mim, não poderia ter fluído melhor — mas certamente é prazerosa. E recompensadora.

O fato é que Londres pode não estar aqui pra sempre! Houve momentos na história de Londres em que Londres praticamente deixou de existir!

Mas voltemos ao que eu dizia sobre romances poderosos que nos fazem mudar de ideia. Há algo na prosa de Ali Smith — e Elvira Vigna — pedindo ao leitor que por elas fique obcecado e dedique os próximos meses subsequentes exclusivamente à leitura de suas obras completas. Infelizmente, isso não foi possível.

Não cheguei a querer “dizer agora o oposto do que disse antes” — tampouco seria viável reescrever o trabalho, comentando romances diferentes, de outros escritores — mas ambos os livros se imiscuíram em minhas notas sobre Bernardo Carvalho. Se em Elvira Vigna busquei o comentário sobre a importância do contemporâneo, Ali Smith me deu a oportunidade de citar brevemente temas relacionados que não poderia aprofundar em meu texto.

Série de incômodos
No romance da premiada escritora escocesa, há a cena do jantar supracitado que perdura por um quarto de suas páginas. Uma série de incômodos — melhor dizendo, preconceitos — é retratada: da anfitriã, pelo vegetarianismo de Miles; de um dos homens, com as considerações sobre o sexismo de suas piadas — “Ou será que isso é sexista, Miles, e por acaso é ofensivo, e será que alguma das mulheres aqui da mesa ficou ofendida, ou é só você que não sabe lidar com uma piadinha?”; de alguns dos que estão à mesa, que comentam a homossexualidade de Mark, quando este se ausenta para ir ao banheiro — “Não, ele é ótimo, quer dizer, é o gay estereotípico, Caroline está dizendo. O gay operário padrão, quer dizer.” — ou dão um tom ligeiramente racista ao que falam — “Você nunca conversou com um ou alguns negros na vida ou é só que você vive num universo diferente?, a criança diz”.

Brooke, a criança da última citação, inclusive, é quem — mais adiante — discute consigo mesma a respeito de como se assume que um personagem é branco se a sua cor não é citada, de como seria necessário apontar que um personagem é negro para que ele assim seja considerado — Smith não o faz isso quando nos apresenta à personagem. Em sendo negra, Brooke pensa em Harry Potter — série de livros infantojuvenis, escrita por J. K. Rowling — e outras narrativas semelhantes quando decide que não será limitada pelo status quo:

O fato é que eu posso ser Hermione se eu quiser. Eu posso até ser uns personagens antiquados tipo o George de Os cinco. Eu não ia querer tanto assim ser aquela Anne. Eu posso ser a Bobbie do livro Os meninos e o trem de ferro, se bem que eles foram embora de Londres e eu vim pra cá, mas eu posso ser ela se quiser, e achar um jeito de evitar que o acidente de trem aconteça. Eu posso ser a Cinderela. Tem mais que uma árvore no Morro de Uma Árvore! A menina corria pelo parque. Menina Corre Por Parque! A menina é Brooke Bayoude, Experta. A Brooke Bayoude. Eu posso ser a Branca de Neve se eu quiser e dã óbvio que eu nunca ia ser idiota de comer aquela maçã, ninguém ia. Eu posso ser Anne de Green Gables. O cabelo dela pode ser da cor do meu se eu quiser.

Smith subverte expectativas, questiona lugares-comuns e faz o que quer — como Brooke. Finda a leitura, tive consciência do que ela queria mesmo: escrever o livro do ano. E conseguiu. Infelizmente, num mundo movido a propaganda e razze dazzle, cheio de som e fúria, pouca gente soube disso.

Suíte em quatro movimentos
Ali Smith
Trad.: Caetano Waldrigues Galindo
Companhia das Letras
288 págs.
Ali Smith
Ali Smith
Nasceu em 1962, em Inverness, na Escócia, e vive em Cambridge. Frequentadora assídua de premiações literárias, é autora de romances como Hotel Mundo, finalista do Booker Prize e do Orange Prize, e Por acaso, vencedor do Whitbread Novel Award, além dos contos de A primeira pessoa e da novela Garota encontra garoto.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

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