O lirismo para a morte

Em “As duas águas do mar”, o português Francisco José Viegas utiliza a poesia e afasta-se do romance policial tradicional
Francisco José Viegas: subjetividade aliada à leveza.
01/03/2006

De um modo geral, os romances policiais possuem uma forma que, de um lado, os críticos usam para acusar sua fragilidade narrativa e, de outro, os leitores se deleitam para encontrar ali os elementos que tanto fazem com que eles leiam, avidamente, cada palavra como se essas fossem escapar do livro. É uma sensação corriqueira na longa trajetória crítica do romance policial. E, grosso modo, o debate sempre caminha nessa direção. Nesse ponto, tanto a crítica especializada como os leitores têm notado uma sutil mudança em algumas narrativas que aparecem sob a chancela de romance policial. Essa nova safra, à qual pertence o autor norte-americano Dennis Lehane, conta com a obra do português Francisco José Viegas, autor de As duas águas do mar.

No que esse romance policial é diferente?, pode questionar o leitor. Pelas primeiras páginas, já é possível notar uma subjetividade aliada à leveza que não são em nada características nesse gênero literário. Obviamente, é sempre possível encontrar lirismo na narrativa de Georges Simenon ou riqueza estilística nas descrições das jornadas de Sam Spade, personagem principal de Dashiell Hammett. Ocorre que, no texto de Francisco Viegas, isso não se dá a partir da descrição de um ambiente sufocante, mas pela sugestão de um cenário paradisíaco, repleto de pequenezas e detalhes que passariam despercebidos se o enfoque fosse puramente sobre uma investigação. Do mesmo modo, é correto afirmar que se essa narrativa é poética e delicada, o autor não fez isso por acaso. E o leitor tem a resposta disso quando menos espera. Não perca de vista essa pista!

Um dos primeiros elementos que se destacam na narrativa de Francisco Viegas é a maneira como o autor demarca os acontecimentos. Os capítulos são assinalados por notas iniciais que sugerem que o livro foi escrito a partir de notas para um diário. E nesse diário nem todos os relatos são sobre a investigação do mistério em curso; o que se lê inicialmente parece mais uma série de impressões sentimentais e até certo ponto frívolas acerca da geografia, do ambiente, do clima e do mundo que envolve o cotidiano das personagens principais: os investigadores Jaime Ramos e Filipe Castanheira.

Para dar conta desse cenário, o autor constrói um verdadeiro perfil em paralelo da vida dos investigadores. Descobre-se, assim, a aversão que Jaime Ramos possui a telefonemas em geral, assim como da insônia de Filipe Castanheira. Esses detalhes, de fato, possuem um quê de frivolidade, uma vez que de nada acrescentam, a partir de um olhar mais objetivo, à narrativa e aos crimes; entretanto, o leitor nota, à medida que o livro avança, que este é um dos recursos do autor: inflar o cenário com muitos elementos para distrair e então emendar o suspense — ou a ação policial — a seguir. Parece muito simples, escrito assim em uma linha, mas é preciso muito cuidado para não perder a mão da estrutura do romance.

E Viegas, muitas vezes, dá a sensação de que vai se perder, em meio a tantas digressões e subterfúgios narrativos, e é até possível se esquecer de que o romance é policial, e não memorialístico ou sentimental. Nesse sentido, nas primeiras páginas, em apenas duas ocasiões, são percebidas referências aos crimes que conferem ao livro o status de romance policial. As cenas, não por acaso, chocam muito mais por seu lirismo do que pela violência, às vezes corriqueira, que chancela a trincheira desse gênero. Assim, o leitor não vai encontrar mortes e cadáveres explícitos e degradados, mas, sim, trechos em que a sugestão é a evidência mais certa de alguns acontecimentos.

Caminhos cruzados
Rui Pedro Martim da Luz e Rita Calado Gomes são vítimas de assassinatos que, aparentemente, não estão diretamente relacionados. Os indícios da investigação, no entanto, vão levar os investigadores Jaime Ramos e Filipe Castanheira ao encontro das águas que ensaiam a explicação dos motivos dos respectivos crimes. No entanto, a única busca de As duas águas do mar não é o tema central do livro. É correto afirmar, de fato, que os dois investigadores também tentam, em paralelo, encontrar quais são as raízes de suas atuais inquietações particulares, já que a todo o momento elas são trazidas à tona, seja em conversas com outras personagens, seja a partir de lembranças desencadeadas por objetos, lugares, odores e sensações em comum. Nesse ponto, nota-se que uma investigação acaba por ser extensão da outra, intercalando sua importância ao longo do livro.

Um ótimo exemplo disso está no trecho em que Filipe Castanheira prepara um jantar para sua namorada, Isabel. Aos temperos e condimentos para o prato principal da noite, são adicionadas lembranças de momentos juntos e sensações ora reencontradas, ora vividas pela primeira vez, como quando ele pressente, perto da hora marcada, que Isabel não virá. O motivo ele não sabe e essa será uma de suas investigações particulares. Assim também ocorre com Jaime Ramos, este um pouco mais obscuro e fechado do que o colega, mas nem por isso menos perspicaz na observação daquilo que o cerca. Seu modo de conversa é mais seco, porém com um alcance impressionante nas respostas de seus interlocutores.

Não poderiam faltar aqui, como de praxe, os elementos que constituem uma narrativa policial: todo o livro é repleto de dicas e pontas soltas que proporcionam aos leitores mais experientes a tentativa de elucidação do mistério sobre os assassinatos. Mas nem por esse motivo a obra deve ser tomada como prosaica, sobretudo porque o livro se enquadra nessa perspectiva de romance policial. Na verdade, é um aspecto a ser ressaltado: é um romance policial que explora a vertente lírica, e não policialesca, da narrativa. Ponto para Viegas.

A narrativa de As duas águas do mar, nesse aspecto, não está tão próxima assim da literatura policial que se produz, e se copia com relativo sucesso, atualmente. É evidente que há, aqui e ali, os mesmos modelos de um romance policial clássico, mas o que aparece com mais força é poética, o que também deixa de ser coincidência a partir do momento em que se repara que Francisco José Viegas é um poeta antes de ser um romancista — muito embora seus livros em prosa tenham obtido bastante reconhecimento no universo das letras.

Francisco Viegas, assim, empresta ao seu romance policial a lírica que é comum à poesia, sem que isso se torne excessivamente hermético, tampouco muito “leve” para um romance desse gênero. Pois a poética, nesse caso, não está na rima, nem na sonoridade das palavras (muito embora o português de Portugal, cuja ortografia foi mantida, faça com que o leitor absorva a história com um sabor especial). A poesia está nos detalhes e nas vozes de duas figuras improváveis: os investigadores Jaime Ramos e Filipe Castanheira — outra característica incomum.

Se a leitura de romance policial parece, para muitos, esquemática, está cada vez mais claro que há algo de novo e rico nesse gênero. Mesmo que para isso, como acontece nessas águas que caminham para o mar, a prosa esteja mais perto da poesia.

As duas águas do mar
Francisco José Viegas
Record
382 págs.
Francisco José Viegas
Nasceu em Portugal, em 1962. Licenciado em Letras, lecionou na Universidade de Évora de 1983 a 1987, dedicando-se também à crítica literário e ao jornalismo. Publicou oito volumes de poesia, um de teatro, além dos romances Regresso por um rio (1987), Crime em Ponta Delgada (1989), Morte no estádio (1991), Um crime na exposição (1998), Um crime capital (2001) e Um céu demasiado azul, lançado no Brasil em 2005.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho