O Leviatã e a monstruosidade do acaso

Peço desculpas adiantado. É que rondei, rondei o computador para encontrar um modo ortodoxo de escrever sobre este Leviatã (Companhia das Letras, 312 págs.), de Paul Auster
Paul Auster: escultor de personagens
01/03/2001

Peço desculpas adiantado. É que rondei, rondei o computador para encontrar um modo ortodoxo de escrever sobre este Leviatã (Companhia das Letras, 312 págs.), de Paul Auster, mas não encontrei as palavras objetivas que me pedem os Manuais de Redação. Desculpem-me, mas Paul Auster vai ganhar aqui uma crítica galgada exatamente no impacto que causou na minha vida e que pode causar na vida de um leitor médio.

Primeiro é preciso apresentá-lo: Paul Auster nasceu em 1947, em Nova York, e já foi um pouco de tudo na vida, até que, na década de 80, decidiu ser escritor. Escreveu umas duas ou três bobagens e em 1990 lançou este Leviatã, que o alçou definitivamente ao patamar de um dos melhores escritores norte-americanos vivos. Contribuiu para o sucesso de Auster também as filmagens de Cortina de Fumaça, produzido a partir de um roteiro seu. O que difere Auster dos demais escritores norte-americanos, como Phillip Roth e Thomas Pynchon, é o trato da linguagem, a fluência como o livro se constrói por meio de diálogos e de personagens esculpidos por Michelângelo.

Comecei a lê-lo com certa descrença, tenho de admitir. Não é qualquer coisa na literatura contemporânea que me agrada. Quando percebi que Paul Auster é figura carimbada na estante de meus amigos, então, achei que era um livro péssimo. Enganei-me tanto que de vergonha deveria ter passado um mês com um saco de pão na cabeça. Apesar do lugar-comum, tenho de confessar ao leitor que Paul Auster, com seu Leviatã, mudou a minha vida.

O livro conta uma história simples na superfície, complexa no estrato logo abaixo desta. O personagem principal é Benjamin Sachs, escritor, casado, sem filhos, amigo do também escritor Pater Aaron, que é quem está escrevendo o livro. Benjamin Sachs é o protótipo do americano médio, intelectualizado, no início dos anos noventas, mas não nos adiantemos.

Os dois amigos se encontram casualmente no que era para ser uma leitura pública de trechos de seus recém-lançados primeiros romances. A partir deste encontro, a rede da vida começa a ficar mais e mais entrelaçada, dando-nos a impressão de inegável determinismo. Foi Houellebecq, autor de Partículas Elementares, quem escreveu, com muita ênfase, que o passado, visto à luz do presente, sempre nos dá esta impressão idiota de determinismo. É para subverter este conceito solidificado pelo tempo e pelos gurus que lemos a saga de Sachs.

Tudo nos leva a crer que Sachs estava fadado a se tornar o que se tornou. Desde o encontro no bar, até a apresentação de sua mulher, Fanny, ao amigo, que mais tarde se tornará amante dela, tudo parece engendrado por um escritor-mor, nova designação para Deus. Maria, personagem-chave neste jogo de quebra-cabeça perfeitamente elucidável, é a encarnação daquilo que costumamos chamar de “reviravolta na vida”, é um personagem-furacão, criado por Auster para realçar esta impressão de previsibilidade. Sachs, contudo, é o homem que descobrirá que a vida é um mistério cuja simples intenção de decifrá-lo acarreta na mais megera das mortes.

Eis então que temos um Sachs, já para o final do livro, que se nos apresenta como a personificação de todas as variáveis possíveis na vida de um homem médio e intelectualizado. Sachs tentou de tudo e tudo falhou para ele. A alternativa que ele seguiu foi sempre em direção ao sucesso, mas a Sachs fora reservado um lugar na ala dos perdidos e, por mais que ele se esforçasse em realizar algo grandioso, como seu grande livro inacabado, tudo escorregaria de suas mãos como num passe de mágica.

Em Leviatã, livro em que abundam as referências judaicas, bem que poderia haver uma epígrafe da famosa frase de Einstein sobre sua Teoria da Relatividade que, para alguns religiosos, colocavam em xeque toda e qualquer crença no divino: “Deus não joga dados com o Universo”.

E eu sentado, lendo Paul Auster sem parar, começo a compreender, de súbito, a infalibilidade, a precisão de como a vida é desenhada, moldada e acabada, antes de nos ser entregue prontinha. Só que temos mãos muito pequenas para segurá-la e, no átimo que antecede o nascimento, deixamos a vida escorregar pelas mãos e espatifar-se no chão asséptico do hospital. Todos os anos vindouros serão marcados pela tentativa inútil de se juntar os cacos, de preencher as lacunas, de moldar novamente nossa vida como ela nos foi entregue. Quando enfim encontramos todos os cacos, percebemos que nossas mãos estão grandes demais, pesadas demais, e que para montar novamente aquela estatueta criada por Deus para ser nossa guia é preciso uma leveza de que já não dispomos.

Eis então o homem, vagando errado pelo Vales das Sombras da Morte, como diz o Salmo. E não há ninguém, ninguém mesmo, que possa tirá-lo das entranhas deste monstro devorador de gente perdida, chamado, muito apropriadamente, de Leviatã.

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho