Até o final do ano de 2005, os leitores brasileiros que conheciam a obra do escritor e jornalista George Orwell diriam, sem pestanejar, que seus principais livros eram A revolução dos bichos e 1984. Arrisco ir um pouco mais além: mesmo entre aqueles que não partilham o gosto pela literatura ou pelos livros, é possível extrair frases, temas e conceitos desses dois livros. O leitor está desconfiado? Ora, em meio a tantos escândalos políticos é provável que você já tenha ouvido algo parecido a “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Ou também, e esse exemplo é inescapável nos últimos anos, quantas não foram as menções ao Big Brother (e a sensação de estarmos sob vigilância 24 horas por dia, para além do programa da tevê). E por último, mas não menos importante, o leitor mais atento há de ter notado uma tentativa esdrúxula dos defensores do politicamente correto em transformar algumas palavras e expressões que eram consideradas preconceituosas para com as minorias: de volta ao escândalo político, foi com espanto que há alguns meses se ouviu dizer que crime havia se transformado em “erro”, e desvio de dinheiro em verba não-contabilizada. É a Novilíngua, afinal, que Orwell tanto previa.
Os leitores podem considerar estranha a longa introdução para tratar da coletânea Dentro da baleia e outros ensaios, de George Orwell, sob a organização de Daniel Piza. Estranha, principalmente, porque se falou muito de política e de dois livros que, aparentemente, não possuem qualquer outra relação com os ensaios que ora são lançados. À primeira vista, essa conexão de fato não existe, mas uma análise cuidadosa na obra de George Orwell mostra que, apesar do sucesso com os dois romances citados no primeiro parágrafo, pode-se afirmar, também sem pestanejar, que, antes de ser um autor de obras de ficção, Orwell foi ensaísta. Na verdade, é o ensaísta quem escreve os romances, a ponto de as obras de ficção ficarem marcadas muito mais por seus conceitos, suas idéias e, em último caso, suas análises do que pela estória (com e mesmo) em si. O ensaísta inventou o romancista, muito embora estivesse desconhecido do público brasileiro até o ano passado.
Nesse sentido, a seleção feita pelo jornalista e também escritor Daniel Piza apresenta alguns dos highlights dessa fatia da obra de Orwell. A essa altura, porém, alguém pode perguntar: mas, afinal, o que é ensaio? De fato, não se trata de um texto muito comum por aqui, onde os principais autores da imprensa preferem se esbaldar no lamaçal das crônicas em vez de partir para o caminho estreito dos textos longos que não são tão específicos como as teses acadêmicas — e por isso devemos agradecer — nem tampouco frívolas demais para ser as crônicas rasas e curtas dos segundos cadernos dos jornais. O ensaio, tal qual se vê no livro de Orwell, é um texto abrangente e, sobretudo, sedutor, que pega o leitor pelas mãos e o guia rumo ao intrépido caminho do saber, das letras e das humanidades.
No caso de Dentro da baleia, o livro se divide em três partes. Na primeira, após a introdução de Piza, estão os relatos de Orwell. Há um quê de reportagem e depoimento nos quatro textos dessa primeira seção. O autor explica por que escreve; passa pelas memórias — saborosas, mas irônicas — de quando foi livreiro; traz, ainda, uma espécie de diário de bordo na vida de um resenhista e teoriza sobre os bons livros ruins. Se há algo de comum nesses textos, é a maneira informal com que o autor apresenta suas idéias e suas convicções para os leitores. Nota-se que mesmo quando ele trata de sua experiência como escritor ele procura fazer com que o leitor o acompanhe em seu raciocínio. É um traço que vai persistir e ficar ainda mais forte à medida que o livro avançar.
Na parte seguinte, “Memória da política”, há um aprofundamento tanto na abordagem como na extensão dos textos. Pelo nome, no entanto, o leitor imagina que seja algo relacionado a relatos memorialísticos, o que em parte é verdade. Contudo, Orwell não escreve somente sobre o período em que viveu e as coisas que presenciou, mas analisa o significado de cada gesto e ação vividos em outros tempos. Desse modo, se por um lado Orwell prima pela descrição das minúcias e pela ambientação que dá ao leitor, por outro, nota-se uma interpretação das causas, dos efeitos e das personagens envolvidas. Exemplo disso é o texto Como morrem os pobres, no qual o sistema médico francês é desmistificado, apontando os defeitos e os problemas do atendimento desumano junto a pacientes muitas vezes terminais (ele até conta que, tão logo se recuperou, fugiu do Hôpital X, em Paris).
Nessa mesma linha, as Reflexões sobre Ghandi relativizam o consenso em torno do mártir indiano:
Nos últimos anos, tem sido moda falar de Ghandi como se ele fosse não só solidário com o movimento esquerdista ocidental como também até parte dele. Anarquistas e pacifistas, em especial, reivindicam-no para si, observando apenas que ele resistia ao centralismo e à violência do Estado, porém ignorando a tendência espiritual e anti-humanista de suas doutrinas.
A análise de Orwell, como se vê no desenvolvimento dessas reflexões, conseguem divisar o mito do homem político.
Jonas e Henry Miller
O principal ensaio da coletânea é, com efeito, aquele que dá título ao livro: Dentro da baleia. E o autor desenvolve esse artigo a partir do romance de Henry Miller, Trópico de Câncer. Em vez de partir para uma resenha, o que seria mais habitual, Orwell toma o livro de Miller como base para dissertar sobre literatura, política e o estado das coisas na Europa da primeira metade do século passado, quando o Velho Mundo experimentava os dissabores das Grandes Guerras. A bem da verdade, é nesse artigo que o leitor pode ter o real significado não só do termo ensaio, mas, principalmente, dos conceitos e valores que Orwell tinha a respeito da literatura e da política.
E por que assuntos tão distintos? Para ele, naquele momento, não havia mais como o escritor se distanciar das questões políticas. Entretanto, o jornalista não acreditava no engajamento automático dos escritores de seu tempo, especialmente porque esses mesmos escritores se alinhavam justamente às bandeiras de esquerda, sendo extensões do comunismo e do pensamento, em tese, progressista. Aqui, cabe um comentário: Daniel Piza, no prefácio, escreve que Orwell provavelmente se desencantaria com o premiê inglês Tony Blair, uma vez que o político do Partido Trabalhista britânico se alinhou com George W. Bush na invasão do Iraque. Ora, pelo que se vê no texto Dentro da baleia, assim como nos demais ensaios, o autor de A revolução dos bichos era cético demais para ser ingênuo a ponto de se desiludir com a chamada realpolitik. Ademais, as próprias palavras de Orwell mostram um certo desconforto com o que hoje poderia ser chamado de “responsabilidade social” dos escritores-celebridades: uns sendo condenados à morte no Oriente Médio e por isso alcançando a fama literária; outros escrevendo cartinhas-manifesto contra o presidente dos EUA por este ter iniciado uma “guerra suja” no Oriente Médio. Como esses autores podem ser tão ingênuos e tão matutos ao mesmo tempo? Eis um verdadeiro enigma literário de nosso tempo.
De volta à baleia, o que Orwell enfatiza é justamente essa questão: os autores não podem, como no passado, se abster de pensar a política em suas obras, uma vez que se trata de uma condição que está implícita na temática. Ainda assim, determinados escritores, como T. S. Eliot e Henry Miller conseguem muito bem escrever poemas e romances à margem dessa perspectiva, mas sem que isso seja abjeto. Em outras palavras, a política está presente justamente quando os autores se negam a debater esses temas — a sociedade, a própria política, a história, a guerra — em suas obras. São escritores que não experimentaram a ideologia de nenhuma filiação política, muito menos se engajaram em uma campanha pelo pacifismo. E o que fizeram? Escreveram, tão-somente. E se mantiveram passivos diante da brutalidade dos fatos. É esse estado de irresponsabilidade que dá forma à tese de Orwell: “Com a exceção da morte, é o estágio sem igual, definitivo […] não resta dúvida de que o próprio Miller está dentro da baleia. [Pois] Todos os melhores e mais característicos trechos [de Trópico de Câncer] foram escritos do ponto de vista de Jonas, um Jonas de bom grado.”
Na última parte, o autor prossegue na correlação entre literatura e política, agora de maneira mais pontual — analisando os autores e suas motivações. Novamente, não se trata de crítica literária formal, muito embora os textos possam ser entendidos dessa forma. Antes, o que Orwell propõe é a discussão política — sem a referência acadêmica da sociologia — tendo como base a literatura. E, portanto, Jonathan Swift, H. G. Wells e Tolstói emprestam exemplos para as teorias do ensaísta.
Os ensaios de Dentro da baleia foram publicados, em sua maioria, antes de A revolução dos bichos e de 1984. E é natural, como se viu na abertura desse texto, que os leitores estejam mais ligados à leitura dessas obras do que com os textos de não-ficção de George Orwell. Entretanto, a partir dessa coletânea de ensaios, fica claro como os romances desse escritor alcançaram tamanha aceitação e permanecem, até hoje, como peças representativas do século 20. Nos dois casos, o autor busca a compreensão dos seus leitores usando como estratégia de convencimento os seus argumentos e as suas idéias, não apenas pela forma, ainda que ele não descuide da palavra exata. Razão pela qual, ao fim e ao cabo, estes ensaios, mesmo escondidos dentro da baleia, possuem o que há de melhor em Orwell.