“Ler não é só um ser de desejos, ler é um desejo de ser.” A amplitude poética dessa afirmativa de Octávio Paz é muito bem-vinda para expressar a experiência imperdível da leitura e a busca de afirmação da subjetividade de alguém no mundo das palavras.
Outras considerações, num leque de lances e conceitos quase infinito, têm lugar de destaque no território das reflexões sobre leitura e são igualmente bem-vindas. Entre elas, uma merece especial atenção: “Ler não é simplesmente decifrar o sentido das palavras, como um jogo de adivinhações. Ler é fazer do texto um espaço legível e ser sensível e capaz de atribuir a ele significação.”[1]
Indiscutível, porém a complexidade, a disponibilidade, a multiplicidade de sentidos, os arranjos sugestivos, as brechas de significação mesmo nos textos referenciais parecem solicitar mais do que uma leitura sob o crivo da razão, e é aí que entra o imaginário do leitor. Isto porque sentir, imaginar e criar são modos de pensar e também componentes praticamente interdependentes nas trilhas da leitura, nos caminhos da criação.
Hoje a filosofia e a psicanálise consideram com propriedade que todos os seres sensíveis vivem e transitam pelo mundo porque são motivados pelo desejo e ninguém é capaz de desejar sem imaginação. Quando abri acima esta breve reflexão sobre a experiência do leitor, de criatura a criador, com o fragmento “… ler é um desejo de ser”, o que busquei colocar em relevo é que a leitura se move, com uma dinâmica muito singular, pelo desejo de entender, imaginar e recriar o mundo traçado pelas palavras e o mundo em que se vive de fato e pode ser revisto, reordenado e reinventado pela sensibilidade do leitor.
É da natureza do ser humano uma expressiva propensão para viver a fantasia e a fabulação, pelo simples fato de viver e desejar transcender a realidade em busca de outros mundos, conhecidos ou imaginados, todos eles motivados e centrados na experiência real. Sendo o ato de ler uma experiência tão intensa e concentrada, como afirma Ricardo Piglia, a leitura se funde e se confunde com o próprio ato de viver.
Assim, o que chamo aqui de leitor criativo é quem lê com a sensibilidade de percepção das pulsações significativas de um texto que se revelam nas suas camadas mais explícitas ou referenciais, mas também e sobretudo é aquele leitor que assimila, atina e desvenda a sua dimensão lúdica e simbólica. Esta, que é a base da literatura enquanto agente motivador da ficção e de tantos outros gêneros que fazem da expressividade um modo de dizer bem e dizer mais, se oferece no jogo de palavras, imagens afetivas, sons e ritmos sugestivos, corte e recorte de frases, achados emotivos e sensoriais, palavras de sentido imprevisível recriadas com palavras de sentido familiar.
É isto: ler é uma experiência essencialmente subjetiva e, quando lemos Shakespeare, Clarice Lispector, Rubem Braga e tantos outros, passamos a ser os livros lidos e, como leitores criativos, guardamos e recriamos as palavras dos escritores e dos personagens no nosso universo íntimo, na construção da nossa possível visão de mundo, no reduto da nossa necessidade vital de fantasias e revelações.
Antonio Candido — em relevante depoimento sobre os sentidos da leitura na Primavera dos Livros de outubro de 2002 — aponta para essa significativa vocação do leitor sensível de fazer da literatura um conhecimento seu. Ele avisa que, quando lemos um livro que nos dá prazer e nos motiva para a releitura, devemos ler tantas vezes, até incorporar o conhecimento do livro como palavra nossa e assim fazer da literatura matéria coletiva, até mesmo sem noção de autoria que, segundo o professor, é propósito humano da arte literária.
Sendo o ato de ler uma experiência tão intensa e concentrada, como afirma Ricardo Piglia, a leitura se funde e se confunde com o próprio ato de viver.
Comunidade
E lembrando Fahrenheit 451, obra-prima literária de Ray Bradbury e clássico filme dirigido magistralmente por François Truffaut, uma extraordinária fábula, registro e denúncia política, real e fictícia, dos perigos da leitura para uma sociedade regida pela ortodoxia pragmática que proíbe e condena a vocação naturalmente criadora instaurada pelo prazer de ler, Antonio Candido dá especial destaque aos personagens que, como ato de resistência, criam uma comunidade em que cada um, lendo e relendo sempre um mesmo livro, “decora” a narrativa e se torna guardião da memória, voz inventiva e recriadora da aventura de narrar uma história. Com visível entusiasmo provocado pelo próprio devaneio sensível e inteligente da fabulação cinematográfica, ele celebra:
Já imaginaram um mundo em que nós fôssemos livros? Aí seria realmente uma realidade extraordinária. Uma pessoa é Dom Casmurro de Machado, outra pessoa Vidas Secas de Graciliano Ramos, uma outra Em busca do tempo perdido de Proust.
E mais:
A literatura é uma espécie de apoteose da fantasia e a prova de que a fantasia é necessária. E, se nós conseguirmos fazer uma civilização em que a fantasia readquira os seus direitos, nós poderemos talvez resolver muitos dos mais graves problemas.
A maioria dos escritores, que com paixão e entusiasmo confessa a sua história de leitura, celebra a sua configuração mágica, não apenas como ato, mas como fonte de descoberta de mundos conhecidos e desconhecidos que, por vezes, não existiam e, pela força sugestiva das palavras, passam a existir. E também aquelas realidades, fantasias e aspirações que pairavam nas camadas mais subjetivas do ser e, pela força emotiva e reflexiva das palavras, acordaram e se tornaram vivências no reduto íntimo e existencial de cada um.
A ideia de um leitor criativo aparece de forma explícita ou insinuada em todas as concepções de escritores e ensaístas que são sensíveis leitores. A título de ilustração, algumas:
“A leitura é um espaço de liberdade e imaginação: é um lugar de aventura.” (Davi Arrigucci)
“Não existe nada simultaneamente mais real e mais ilusório do que o ato de ler.” (Ricardo Piglia)
“É a literatura um modo de transfigurar ou de fazer com que durem mais um pouco, só mais um pouco, na memória do mundo, certos rostos que amamos. Isto para não falar nos seres que não há, que não havia, que Deus, por distração ou por nos dar uma chance, deixou de criar e que passam a existir por força das palavras.” (Osman Lins)
“Na literatura podemos escrever qualquer coisa, desde que seja possível acreditar nela. Por exemplo, se você diz que há elefantes voando no céu, as pessoas não vão acreditar em você. Mas se você disser que há quatrocentos e vinte e cinco elefantes no céu, as pessoas…” (Gabriel García Márquez)
“Às vezes creio que os bons leitores são cisnes mesmo mais negros e singulares que os bons autores.” (Jorge Luis Borges)
Em síntese, todo leitor criativo descobre seu modo de sonhar acordado, de ler e de ser feliz. E de se inquietar e se entusiasmar com a estreita relação, sobretudo na literatura, dos limites da realidade com a ficção.
Sem obrigação
Por tudo isso, agora com especial atenção para Borges que celebra o leitor criativo como “cisne” da aventura única de ler, é bom continuar ouvindo e acolhendo as palavras desse poeta e especialmente leitor como ele se definia, quando alerta com aquela voz grave e iluminadora, que ecoa num tempo que não tem tempo de duração: “A leitura obrigatória é inconcebível, já que nenhuma felicidade é obrigatória”.
Nunca é demais colocar em destaque que o ato de ler, percorrendo um território entre a realidade de fato e o jogo do imaginário, identificando sentidos e recriando outros, casando conhecimento com prazer, é uma experiência única e imperdível — é um lugar de liberdade, de aventura e também de criação.
Em síntese, todo leitor criativo descobre seu modo de sonhar acordado, de ler e de ser feliz. E de se inquietar e se entusiasmar com a estreita relação, sobretudo na literatura, dos limites da realidade com a ficção.
Como essas palavras alinhavadas por mim nesse breve texto também acontecem no reduto da minha subjetividade de leitor, provisoriamente eu encerro aqui esse assunto tão atraente, imaginando um leitor criativo mais ou menos assim:
O leitor que eu imagino
• O leitor que eu imagino sente e sabe que a leitura é um modo de ser feliz.
• Ele sempre termina a leitura de um livro com o sentimento, calmo e inquieto, de recomeço.
• O leitor que eu imagino é como o escritor que faz de cada livro a promessa do livro posterior.
• Ele também nunca lê um livro querendo apenas entender ou decifrar o que o livro quer dizer — ele recria o que o livro é capaz de sugerir.
• O leitor que eu imagino é criativo quando pergunta e criativo quando responde — para ele o livro é uma eterna indagação.
• Ele não tem o menor interesse de saber quantos livros leu na vida porque cada livro são muitos livros dentro de um livro só.
• O leitor que eu imagino quer que o livro seja ele, o próprio leitor, e escreve nas beiradas da página, grifa as palavras, rabisca o livro para poder assim ficar e existir dentro e fora do livro.
• O leitor que eu imagino lê nos livros as situações mais conhecidas ou desconhecidas por ele sempre com olhos de primeira vez — por isso mesmo ele chama o livro de “lugar de revelações”.
• O leitor que eu imagino lê em silêncio e silenciosamente conversa com o mundo, trocando palavras e imagens num diálogo sem fim.
• O leitor que eu imagino sabe que a literatura faz existir o que ainda não existe.
• Ele, o leitor que eu imagino, acolhe e hospeda cada vez mais personagens dentro dele e igualmente se torna cada vez mais solidário com a vida, depois de cada livro que lê.
• Ele interrompe a leitura, mesmo quando ela é inadiável, pelo prazer de fingir que o livro não existe por um momento e, de repente, poder lembrar que o livro é de verdade e voltar a ser feliz.
• O leitor que eu imagino nunca é capaz de saber o momento exato em que abriu e iniciou a leitura de qualquer livro — ele precede e pressupõe os sentidos de um livro antes de começar a ler.
• Ao menos muitas vezes ou quase sempre na vida do leitor que eu imagino, ele pede, compra, empresta e até rouba livros sabendo muito bem que ele não vai ter tempo o bastante para ler todos os livros que tem.
• Este mesmo leitor sabe, porque outro leitor sensível já alertou que, se ler não salva, não ler salva menos ainda, às vezes não salva nunca.
• É preciso saber atribuir sentidos às palavras, criar sentidos ou até mesmo inventar os sentidos de um livro para ser o leitor que eu imagino.
• É destino e missão do leitor que eu imagino aprender a escutar as palavras e as ideias e os silêncios de um livro, sem que ele, o livro, se imponha para ser lido — o livro apenas é.
• O leitor que eu imagino, antes de buscar o conhecimento utilitário ou pragmático dos livros, vive a experiência da leitura como puro devaneio.
• Para cada leitor que eu imagino existe um livro escrito especialmente para ele, igual a um amor predestinado, ainda que este encontro viva somente no imaginário de quem lê como quem ama e de quem ama como quem lê.
NOTA
[1] A ideia da referência acima foi apreendida por mim em um e outro e outros estudos sobre leitura e não lembro no momento as fontes que são tantas. Portanto, é um conhecimento incorporado e recriado na minha subjetividade de leitor, sem sentido de autoria.