Na década de 90, as editoras encontraram uma segura fonte de renda na publicação de biografias. Atualmente, ao entrar em qualquer livraria, nos deparamos com inúmeras obras que abordam a vida de astros da música pop, atletas, políticos, escritores e demais personalidades. Se na ficção a qualidade varia radicalmente, nas obras biográficas o resultado não poderia ser diferente. Algumas experiências nacionais ilustram o quanto é complexo tentar mapear uma trajetória de vida. Um exemplo de parcialidade e superficialidade está nas páginas de Só as Mães São Felizes (Editora Globo, 1997), assinado pela jornalista Regina Echeverria e por Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, que evidentemente super valorizou a figura de seu filho. O jornalista Fernando Morais gastou anos e 694 páginas para provar que o gângster Assis Chateaubriand foi na verdade um herói, e seu livro Chatô — O Rei do Brasil (Companhia das Letras, 1994) dá a (falsa) impressão de ser a versão definitiva sobre o biografado. No entanto, foi Ruy Castro — também jornalista — quem obteve um melhor desempenho com O Anjo Pornográfico (Companhia das Letras, 1992), explorando o universo e a prosa de Nelson Rodrigues.
Parece que o gênero está saturado, seja pelo aparecimento de títulos oportunistas sobre ícones da mídia — como Silvio Santos e Ratinho, ou por livros com o carimbo “não-autorizado”, mas o crime imperdoável acontece quando o biógrafo se deslumbra e mitifica um determinado autor. Precavido contra as armadilhas do ofício, o jornalista inglês Howard Sounes, de 35 anos, surpreendeu toda e qualquer expectativa ao publicar Charles Bukowski — Vida e Loucuras de um Velho Safado (Conrad Editora, 341 págs.). Fruto de entrevistas, de leituras e de interpretações da produção do biografado, o trabalho de Sounes ganha relevância pelo fato que a vida de Bukowski ter sido a principal matéria-prima de sua obra.
Aquele que hoje é considerado o maior escritor norte-americano do século 20 nasceu em Andernach, na Alemanha, no dia 16 de agosto de 1920, batizado de Heinrich Karl Bukowski. Como a economia alemã entrou em colapso no ano de 1923, a família atravessou o oceano em busca de dias melhores. No entanto, eles não encontraram a situação favorável em Los Angeles. A adversidade financeira acabou destruindo a estrutura familiar, e Bukowski teve uma infância atormentada, sendo espancado pelo pai, por quem passou a alimentar ódio, além de desprezar a mãe, que não lhe defendia. O pequeno Hank, apelido que ganhou na infância e que lhe acompanharia por toda a vida, teve uma crise de acne que desfigurou seu rosto, contribuindo para que ele se afastasse do convívio social.
O adolescente, que só encontrava tranqüilidade em seu quarto, descobriu a Biblioteca Pública de Los Angeles, e as primeiras leituras exerceram influência definitiva em sua formação, sobretudo o livro Pergunte ao Pó, de John Fante, por mostrar as tentativas do personagem Arturo Bandini em se tornar escritor. Depois de ter concluído o ensino médio, matriculou-se em um curso de jornalismo, mas o ambiente elitista fez com que ele desistisse. Realizou trabalhos braçais por seis meses, e partiu em viagem pelo território norte-americano com a finalidade de entrar em contato a realidade. Além de escrever, bebia tudo que era capaz, e, justamente nos bares que freqüentava, conheceu pessoas que iriam habitar as páginas de seus livros.
Aos 24 anos, no momento em que pulava de um emprego a outro, exercendo atividades mal remuneradas, publicou um texto na revista Story, tendo recebido 25 dólares pelo serviço. Foi o primeiro que assinou com o nome Charles Bukowski. Naquele mesmo ano, em 1944, teve a sua debutância sexual com uma prostituta da Filadélfia. No entanto, apenas em 1947 ele conheceria Jane Cooney Baker, a primeira mulher com quem manteve uma relação íntima. O comportamento questionável dela, que flertava com outros homens, influenciou no julgamento generalizado que Bukowski fazia das mulheres, como observa o autor da biografia: “O fato é que esse relacionamento fez com que Bukowski tivesse uma opinião muito ruim sobre as mulheres. Ele freqüentemente chamava suas namoradas de ‘prostitutas’ ou ‘putas’, e descrevia o sexo em uma linguagem brutal, muitas vezes usando ‘estupro’ como um sinônimo para ‘relação sexual’.”
Depois de romper com Jane, dedicou-se a publicar textos na mídia, até que conheceu a editora da revista Harlequim, Barbara Frye, com quem casou em 29 de outubro de 1955. Apesar de apresentar um defeito no pescoço, foi o comportamento de Barbara que acabou chateando Bukowski. Ela não admitia que um escritor passasse o dia vadeando e consumindo litros de cerveja em casa, e o divórcio saiu em 1958. Dois anos antes, a mãe de Bukowski havia morrido e, nove meses depois da separação, o pai dele morreu. Ao invés de tristeza, o incidente foi motivo de alegria: “ele está, morto, morto, morto, obrigado, meu Deus!”. No entanto, os 15 mil dólares de herança não foram recusados.
Bukowski estreou na literatura em 1960, com o livro de poemas Flower, Fist and Bestial Wail que, apesar de conter apenas 28 páginas, teve grande significado e causou alegria para o autor. Mas ele entrou em depressão, e quase se suicidou, ao saber que Jane havia morrido no início de 1962. Seu estado de espírito melhoraria um ano depois, quando cruzou com Frances Elizabeth Dean, a FrancEyE. Eles moraram juntos, e foi com ela que Bukowski teve sua única filha, Marina Louise, nascida em sete de setembro de 1964. No ano seguinte, estariam separados.
Um cientista cristão que não bebia nada além de chá gelado, e que atuava como gerente em uma empresa de artigos para escritório, foi o responsável pelo sucesso do escritor. John Martin fundou a editora Black Sparrow Press para publicar obras de Bukowski, e o primeiro livro lançado pela empresa foi At Terror Street and Agony Way. Nesse período, em meados dos anos 60, Bukowski assinava uma coluna sobre sexo, intitulada Notas de um Velho Safado, publicada no jornal Open City. Anos mais tarde, o autor reuniu os principais textos e lançou um livro homônimo. Quando o material foi traduzido para o alemão, inseriu um falso elogio de Henry Miller, com a finalidade de alavancar as vendas. Ele usou o mesmo artifício em um artigo publicado pela revista Rolling Stone, tendo inventado que os intelectuais franceses Jean Paul Sartre e Jean Genet eram admiradores de sua obra.
Em 1969, Charles Bukowski abandona o emprego noturno no Correio, seu ganha-pão nos últimos anos, fazendo um acordo com editor John Martin, que lhe pagaria um salário mensal de 100 dólares. Durante três semanas de reclusão, escreve seu primeiro romance, Cartas na Rua, tendo transformado as experiências com mulheres e a rotina de arquivista de correspondências em um texto ágil e bem-humorado. Bukowski havia se tornado uma personalidade em Los Angeles, e despertou o interesse dos escritores beats. No entanto, ele, que desprezava a contracultura, sentia repugnância dos beatniks por eles serem, na maioria, homossexuais.
Aos 50 anos, conseguiu esquecer Jane, seu primeiro grande amor, ao ter conhecido a escultora Linda King, que costumava dizer-lhe: “Você é um bom escritor. Mas não sabe nada sobre mulheres.” O turbulento relacionamento — com direito a brigas, cenas de ciúme e cartas de amor — serviu de material para Mulheres, publicado em 1978. Se as relações com garotas não eram bem sucedidas, ao menos serviram de assunto para livros, como Scarlet — inspirado exclusivamente em Cupcakes, uma paixão não-correspondida. Apesar de dedicar várias horas do dia ao consumo de álcool, Bukowski escrevia muito, sobretudo poesia. As leituras de poemas, que no início da carreira lhe rendiam 25 dólares, passaram a valer mil dólares. Ele escoava sua produção em praticamente toda a mídia impressa norte-americana, tendo colaborado em revista pornográfica, até na Hustler, de Larry Flynt.
Em agosto de 1980, assinou um contrato de 10 mil dólares para escrever um roteiro de cinema baseado em sua vida, que ganhou o título de Barfly, e que teve o ator Mickey Rourke no papel de Henry Chinaski, alter ego de Bukowski. Finalmente, conseguiu estabilidade financeira. Adquiriu uma casa e um BMW 321i preto, por 16 mil dólares, e, no dia 18 de agosto de 1985, casou-se com Linda Lee, com quem vivia há algum tempo. Em 1988, apesar da saúde debilitada, finalizou o livro Hollywood, baseado em sua experiência junto ao pessoal da indústria cinematográfica.
Apesar de ter escrito grande parte de sua obra em uma máquina de datilografia, não resistiu à tecnologia, e o primeiro livro parido em um Macintosh, da Apple, foi publicado em 1992, com o título The Last Night of Earth Poems. Sua obra derradeira, escrita entre 1991 e 1993, traz pela primeira vez um enredo que não foi inspirado em sua vida, uma vez que Pulp mostra as aventuras de um detetive particular. Os anos de bebedeira, de consumo de cigarro, de brigas em bares e as noites passadas na cadeia, acabaram por minar seu estado de saúde. Ao ser levado até um hospital, os médicos diagnosticaram que Bukowski tinha câncer. Mais especificamente, leucemia. Ele morreu às 11h55 do dia nove de março de 1994.
Comparando com as biografias escritas em nosso país, e até com material estrangeiro, Vida e Loucuras de um Velho Safado é uma obra-prima. Obviamente, Howard Sounes é um fã de Bukowski. No entanto, ele não cometeu o equívoco de endeusar a imagem do escritor, tendo abordado aspectos e incidentes fundamentais da trajetória do artista. Sounes confrontou trechos dos livros com depoimentos de amigos, amantes e conhecidos do autor, com a finalidade de revelar que Bukowski realmente escreveu sobre a própria vida.
A leitura deste livro coloca em xeque a ideologia do pensamento positivo e o blá blá blá da auto-ajuda. Afinal, Charles Bukowski tinha tudo para ser um perdedor. Dedicou boa parte de sua vida à bebida, gostava de apostar em cavalos de corrida — em 1982, depois de 30 anos estudando cavalos, estimava ter perdido mais de 10 mil dólares em apostas —, e nunca conseguiu manter relações estáveis e normais com mulheres, além de ter passado por inúmeros subempregos. Quando morreu, acumulava um patrimônio de um milhão de dólares. Mas a verdadeira herança são seus escritos, amorais, apolíticos, extremamente originais — copiados e diluídos mundo afora. Todos nós, leitores, somos herdeiros.