Um dos aspectos mais interessantes, que merece atenção quando se pretende tratar de Italo Calvino, é a fecunda correspondência entre sua vasta obra ficcional e a ensaística. Não são raros os escritores de ficção que se dedicam a refletir sobre o literário e a arte em geral, mas o caso do escritor lígure é singular. E isso talvez se explique, num primeiro momento, por sua aspiração evidente a querer manter sempre vivo o diálogo com o público, sem entretanto fazer concessões à superfluidade dos que aderem fácil à mise-en-scène da literatura encarada como espetáculo.
Conforme nos faz saber um de seus mais profundos conhecedores, Vittorio Spinazzola, o público ao qual o grande autor se dirigia não se limitava apenas aos destinatários da alta competência especializada, mas principalmente ao interlocutor coletivo mais heterogêneo e vário, formado pelas classes de média cultura, que melhor representavam a consolidação do desenvolvimento urbano-industrial da Itália dos anos do pós-guerra. É, aliás, um traço instigante do fascínio da personalidade calviniana a aparente contradição dos modos pelos quais um escritor, cujo temperamento era considerado esquivo e aristocraticamente reservado, pôde desempenhar diante de seus leitores um diálogo aberto, extremamente democrático, afável e cordial. Em franca atitude paritária, nunca quis assumir a postura dos que falam do alto, tão comum aos que se sabem detentores de algum carisma. E não seria exagero perceber a força de tal intenção dialógica, nas diversas metamorfoses que assumem as formas narrativas adotadas pelo autor, ao longo de sua trajetória. Talvez, um bom exemplo disso seja o intuito explícito de hipervalorização do leitor, levado a cabo em seu famoso romance metaliterário, Se um viajante numa noite de inverno, hoje exaltado como referência por grande parte dos estudiosos da assim chamada Teoria da Leitura. A propósito, na opinião do crítico Mario Barenghi, nenhum escritor contemporâneo parece ter se dedicado, tão longa e proficuamente, ao papel do leitor na literatura como Calvino.
A leitura regenera
Em páginas de exaltação ao ato de ler, como fundamental no processo de humanização do indivíduo, nosso autor enfatiza o papel regenerador do literário. Um exemplo ilustrativo dessa temática é o interessante conto Um general na biblioteca, que dá título à antologia de contos e apólogos, escritos entre 1943-1958. Algo desse enredo remete ao célebre Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, imortalizado no cinema por François Truffaut. Com efeito, há nas duas obras, ainda que de modo alegórico (e guardando as respectivas diferenças), a ambientação comum às épocas em que, sistematicamente, regimes ditatoriais e tirânicos se mobilizavam, de modo violento, contra a arte, a literatura e a cultura em geral. Como é sabido, os agentes desses sistemas se pautavam (e ainda hoje se pautam) pelo policiamento ostensivo, censura, perseguição e queima de livros e execução de artistas, intelectuais e pensadores que, em tese, pudessem representar algum tipo de ameaça ao poder.
Assim também, no conto em questão, instaura-se nas mentes dos oficiais superiores da “nação ilustre” da Panduria a suspeita “de que os livros contivessem opiniões contrárias ao prestígio militar”. Diante disso, o Estado-Maior decide nomear uma comissão de inquérito, a ser comandada pelo general Fedina, militar severo e escrupuloso. O objetivo de tal missão seria o de examinar todos os livros da maior biblioteca do lugar.
No início, a maioria das obras examinadas ia sendo vetada e posta à parte. Mas, aos poucos, o que se verifica, diversamente do que se poderia esperar (isto é, a queima indiscriminada daquele acervo) é a verdadeira metamorfose por que passam os militares envolvidos no processo, em contato rotineiro e cotidiano com a leitura. Os generais da censura, ao contrário do que deles se exigia, capitulam diante da força arrebatadora daquela sedução:
[…] estavam tomando gosto por aquelas leituras e aqueles estudos como nunca antes teriam imaginado; por outro, não viam a hora de voltar para junto das pessoas, de retomar contato com a vida, que agora lhes parecia muito mais complexa, quase renovada aos olhos deles; e, além disso, a aproximação do dia em que deveriam deixar a biblioteca enchia-os de apreensão, pois teriam de prestar contas de sua missão, e, com todas as idéias que andavam brotando em suas cabeças, não sabiam mais como sair dessa enrascada.
Ensaísta e ficcionista
Para dar conta desse escritor plural e diante do que expusemos parece ser de extrema importância, agora, enfatizar sua produção ensaística, especialmente a dos textos reunidos em 1980, no volume Una pietra sopra: Discorsi di letteratura e società, publicado no Brasil, em 2006, com o título Assunto encerrado: Discursos sobre literatura e sociedade (já resenhado neste mesmo Rascunho #113, setembro/2009) e também Lezioni americane: Sei proposte per il prossimo millenio, de 1988, fruto das conferências que ministrou na Universidade de Harvard, publicadas, entre nós, em 1990, como Seis propostas para o próximo milênio. Tais obras representam bem mais do que pertinentes e profundas reflexões acerca do literário. São textos que buscam o interlocutor, em exercícios acurados de diálogo permanente, em que a capacidade intelectiva do receptor jamais é subestimada. Daí por que é fundamental o reconhecimento da validade dessa produção ensaística, não apenas como meio de compreensão da trajetória do intelectual ativo e do excepcional ficcionista que foi Calvino, mas também pelo fato de que se trata do conjunto de textos-bússolas, capazes de nortear quem quer que queira se debruçar sobre as lides da arte, como forma fidedigna de conhecimento do mundo.
Além de dar conta, com profundidade, de diversos temas literários, tais obras representam um contínuo exercício de autocrítica do pensador reflexivo acerca de seu proceder enquanto ficcionista. A chave para a compreensão da amplitude desse tipo de comportamento não se reduz à imediata pressuposição de que, ao ler os ensaios, estaremos mais aptos a enfrentar as complexidades do universo ficcional calviniano. Em parte, isso pode até ser verdade, mas o que aqui se apresenta como traço de instigante singularidade de nosso autor é a evidência de que o ensaísta e o ficcionista andam de mãos dadas, jamais ensimesmados em mirabolantes e herméticos arroubos filosóficos. Eles interagem dialogicamente com os interlocutores-leitores que, dessa inquietante viagem, queiram participar.
Por isso, vale a pena tomar como ponto de partida para iniciar tal travessia uma página antológica de suas Seis propostas para o próximo milênio, a respeito da Leveza:
Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo — qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas.
Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.
O único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com sandálias aladas; Perseu, que não volta jamais o olhar para a face da Górgona, mas apenas para a imagem que vê refletida em seu escudo de bronze. Eis que Perseu vem ao meu socorro até mesmo agora, quando já me sentia capturar pela mordaça de pedra — como acontece toda vez que tento uma evocação histórico-autobiográfica. Melhor deixar que meu discurso se elabore com as imagens da mitologia. Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho. Sou tentado de repente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo. […] É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume como um fardo pessoal.
O ideal de leveza perseguido pelo autor, tal como por ele mesmo enunciado, é um dos índices mais esclarecedores sobre o seu proceder literário e que acompanhou todas as fases de suas mutações. A necessidade de intervir para subtrair o peso do que havia ao redor justifica, por exemplo, de saída, a sua recusa à adesão às estruturas narrativas do realismo romântico, voltadas aos ideais de inteireza do mundo, numa espécie de totalidade sapiencial, que muitas vezes conduziam a uma visão unilateral e obtusa da realidade. A propósito, vale lembrar que, mesmo em seu primeiro romance, A trilha dos ninhos de aranha, de 1947, muito representativo do espírito neo-realista de pós segunda guerra mundial, o protagonismo se volta à causa marginal da resistência partigiana, com suas histórias cheias de aventura, ousadia e movimento. Ainda que de forma incipiente, já em seus primeiros passos como ficcionista, mesmo que o espírito da época exigisse uma literatura engajada, de cunho ético-político, capaz de dar conta das conseqüências funestas daqueles embates, vemos aqui pré-anunciada uma tentativa de deslocamento do centro — que significaria excesso de peso — em direção à marginalidade daquele grupo de resistentes.
Mas a grande guinada na consciência do Calvino ficcionista se dará, efetivamente, na década de 50, com a publicação da famosa trilogia O visconde partido ao meio (1951), O barão nas árvores (1956-57) e O cavaleiro inexistente (1959). Compreendendo perfeitamente que a arte precisava buscar outros ares e formas renovadas de expressão e obstinado em sua busca pela leveza, nessa fase, é que o autor privilegia e investe nos módulos narrativos da época pré-burguesa; ou melhor, de uma burguesia nascente. Conforme ensina Spinazzola, tais estruturas se voltavam às tipologias mais próximas aos arquétipos de uma narrativa primária, tais como o apólogo, o exemplum, a fábula, enfim, às variações do que se convencionou denominar conte philosofique. Foi justamente para retirar o excesso de peso da bagagem que Calvino investiu em formas do contar que transcorressem com uma ligeireza irônica sobre os fatos, evitando o rigor das narrativas peremptórias, de cenho franzido. Esse tipo de busca justificaria, em particular no que se refere à trilogia, a opção do escritor lígure pelo discurso galopante das peripécias provenientes de matriz narrativa picaresca ou cavalheiresca.
Importa notar que essa busca de leveza em nada pode ser traduzida como espécie de escapismo. A passagem a que já nos referimos anteriormente deixa claro que Perseu traz consigo a realidade monstruosa e petrificadora da Medusa (que precisa, necessariamente, enfrentar).
O conceito do que representa, para Calvino, essa subtração do peso da existência, precisa ser bem compreendido, a fim de que não se lhe desvirtue o significado. Com efeito, afirma:
Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos…
As mil vidas do barão
Tal necessidade de “voar para outro espaço” é muito bem ilustrada, por exemplo, em O barão nas árvores, com cujo herói o autor confirma mais ter se identificado. O romance traz à luz a história de Cosme, o menino que, não conseguindo se adequar ao rigor da nobreza engessada, pesada e vazia de sua aristocrática família, foge do reino opressor e auto-referente da “quase sombra” de Penúmbria, a fim de buscar uma saída. Resolve, então, subir às árvores, para de lá nunca mais voltar. É, sob o prisma do olhar de seu irmão — o narrador dessa fascinante e temerosa aventura — que Cosme nos apresenta suas infinitas peripécias.
Mas o que pode significar, em essência, essa alegoria do indivíduo que, por se sentir inadequado e estranho ao próprio meio, decide fugir, indo habitar as árvores? O que poderia traduzir essa partida do chão, da terra firme, para querer viver a vida no alto? Num primeiro momento, sem dúvida, a necessidade urgente de ampliar as perspectivas do ver, transcendendo a estreiteza do reino fechado e obscuro das sombras, em que não entra a luz.
Do alto das árvores, o universo todo se amplia, a visão se alarga e pode-se ver o que antes não se via, por ser vetado ou simplesmente desconhecido. Lá das árvores, toma-se a distância tão necessária para a percepção do mundo. E, mais ainda, abre-se mão do terreno seguro das verdades postas para penetrar o universo movediço e imbricado dos infinitos galhos, ramos e copas verdejantes, suspensos, repleto de inusitadas descobertas e novos desafios. No chão, tudo é firme demais.
No confinado reino da Penúmbria, a família aristocrática se autoconsome em mesquinharias e valores vãos. Não há curiosidades, nada é novo e todos parecem se arrastar, como um conjunto de sombras letárgicas a desfilar, na penumbra das paredes frias do castelo de uma existência triste e neurótica. Mesmo tratando dessa pesadíssima carga existencial, o narrador — pelo hábil viés da ironia e do sarcasmo — manipula as formas do narrar, que se traduzem perfeitamente como um dos índices da gravidade sem peso, que enfrenta a Medusa, à maneira de Perseu, conforme já citado pelo Calvino ensaísta. Vários exemplos ilustram essa estratégia narrativa. Num deles, o narrador enfatiza a personalidade da mãe, extremamente rígida, apelidada “generala”, já que obcecada por tudo que se referia às lides bélicas de combate:
Durante o resto do dia, mamãe ficava fechada nas suas dependências a fazer rendas, bordados e filé, pois a generala só era capaz de se ocupar dessas tarefas tradicionais de mulher e apenas nelas desafogava a sua paixão guerreira. Eram rendas e bordados que, em geral, representavam mapas geográficos; e, estendidos em almofadas ou painéis para tapeçaria, mamãe os enchia de alfinetes e bandeirinhas, assinalando os planos de batalha das Guerras de Sucessão que conhecia na ponta da língua. Ou então, bordava canhões, com as várias trajetórias que partiam da boca-de-fogo, e as forquilhas de tiro e os ângulos de projeção, porque era muito competente em balística e além disso tinha à disposição toda a biblioteca de seu pai, o general, com tratados de arte militar, mesas de tiro e atlas.
De todo modo, cumpre notar que, mesmo “voando para outro espaço”, em nenhum momento Cosme se desconecta do que acontece no mundo abaixo dele, isto é, da realidade. Quanto mais se distancia das coisas, vendo-as do alto, mais se aproxima delas, interessado, participativo e engajado. O fato de ter saído do sistema não implica no escapismo alienante de buscar soluções fáceis. Em sentido radicalmente oposto, parece ser uma preocupação do autor a idéia de que “saindo para ver melhor, com outros olhos” é que se torna possível interagir com o real, num comprometimento atuante.
Assim é que o barão, desde suas primeiras iniciativas e durante suas múltiplas façanhas intelectuais, de aventura, políticas, comunitárias, jamais se mostra como um alienado. O papel do intelectual aqui representado se aproxima da figura-ícone de Antonio Gramsci, tão cara à grande parte da geração de escritores filiados aos Partidos da Esquerda Italiana da época, como o próprio Calvino (que era do Partido Comunista). A propósito, vale conferir o que ele afirma no posfácio à edição italiana de I nostri antenati, de 1960 (Os nossos antepassados), em que se reuniram os três romances da trilogia:
Aqui também, eu tinha uma imagem em mente: a de um rapazinho que sobe em uma árvore; sobe e encontra personagens extraordinários. Isso mesmo, sobe ao alto e de árvore em árvore, viaja por dias e dias, melhor ainda, não desce nunca mais, recusa-se a descer a terra, vivendo sobre as árvores toda sua existência. Devia fazer dessa idéia uma história de fuga das relações humanas, da sociedade, da política, etc.? Não, teria sido óbvio e fútil demais: o jogo começava a me interessar, desde que eu fizesse desse personagem, que se recusa a caminhar sobre a terra como os outros, não um misantropo, mas um homem continuamente dedicado ao bem do próximo, inserido no movimento de sua época, querendo participar de cada aspecto da vida ativa: desde os avanços das técnicas da administração local até as peripécias da vida galante.
A trajetória de Cosme é análoga à enaltecida pelo autor no referido ensaio em que trata de um dos imperativos fundamentais de sua escrita: o da busca incessante pela leveza. Diante da monstruosa Medusa ou das pesadas sombras do reino da Penúmbria, é preciso, tal como Perseu ou Cosme, pôr asas nos pés e voar ou se deslocar para outro espaço, sem contudo perder de vista o peso da existência.
Partido ao meio
As outras duas obras da trilogia, por sua vez, são as que melhor representam o conflito do homem moderno, concebido como indivíduo dividido ao meio. Em O visconde partido ao meio, o visconde Medardo, vítima de uma bala de canhão, sofre a divisão de seu corpo em metades, que sobrevivem apartadas, com características opostas.
É mais uma vez o Calvino ensaísta que vem em nosso auxílio no posfácio à edição italiana de Os nossos antepassados, revelando que o homem contemporâneo é mutilado, incompleto, inimigo de si mesmo: “Marx o chamou de ‘alienado’, Freud de ‘reprimido’, o estado de antiga harmonia se perdeu e se aspira a uma nova forma de completude”. Mas o que mais fascina, no que propõe o escritor lígure, não é apenas a representação conflituosa dessa cisão. Com efeito, à primeira vista, poder-se-ia pensar que a grande causa do sofrimento de Medardo fosse a perda de integridade ou que O visconde pudesse se alinhar, de modo fidedigno, a obras como Dr. Jekyll and Mr. Hyde ou a dos dois irmãos de Master of Ballantrae, de R. L. Stevenson. Porém, o que se observa, contrariamente a essas, em que uma metade, em geral, boa contrasta com a outra má, a riqueza de Medardo está justamente nas contradições não maniqueístas, vivenciadas por cada uma de suas partes.
Nesse sentido, aqui, a inclinação à leveza dá-se por uma espécie de elogio à dimidiação como verdadeiro modo de ser. Quem vive na história é apenas Medardo, enquanto metade de si mesmo. E cada uma dessas metades, carregada de contradições, apresenta, respectivamente, o lado “mau” do Visconde, cheio de piedade e, em contrapartida, o lado “bom”, repleto de tiradas sarcásticas. Melhor dizendo, o indivíduo, com suas particularidades e idiossincrasias, é o que interessa pôr em cena, ainda que essa esquizofrenia identitária seja a melhor tradução do homem do século 20 até a contemporaneidade.
Aqui, Medardo cindido encarna o Perseu que enfrenta a monstruosidade da Medusa, cuja face é o da homogeneização generalizada, da busca por uma inteireza que é obtusa, porque plasma todos no mesmo universo forjado e artificial dos condicionamentos e que aborta preconceituosamente as diversidades, rejeitando, de antemão, tudo que lhe é estranho e disforme.
Vazia armadura
O cavaleiro inexistente eleva à máxima potência o que já se anunciara no Visconde e conta a história de uma armadura que caminha, mas que é vazia por dentro. Para compreender melhor o que, no fundo, Calvino pretendia representar com o guerreiro inexistente Agilulfo como uma das melhores metáforas do homem totalmente artificial, vejamos o que ele mesmo pondera:
Do homem primitivo que, constituindo um todo com o universo, poder-se-ia afirmar que ainda fosse inexistente, porque indiferenciado da matéria orgânica, chegamos lentamente ao homem artificial que, constituindo um todo com os produtos de consumo e com as situações, é inexistente porque não se confronta mais com nada, não estabelece mais nenhum tipo de relação (de luta e através da luta, de harmonia) com aquilo que (seja natureza, seja história) lhe está em torno, mas que apenas abstratamente, “funciona”.
Agilulfo é, no limite, uma das faces mais terríveis da Medusa que o Perseu contemporâneo deve encarar: a da total desintegração do eu, que só passa a existir funcional e maquinalmente como um autômato, que remete ao personagem memorável, interpretado por Charles Chaplin em Tempos modernos, em que um operário de fábrica, manipulado pelo sistema da alta produtividade, acaba neurótico, robotizado, cheio de tiques e esgares, decorrentes daquele excessivo apelo de funcionalidades utilitárias e jamais estéticas.
De toda forma, o que observamos como linha a ser perseguida pelo ficcionista, sempre reiterado pelas reflexões acuradas do brilhante ensaísta, é a premissa de que a subtração do peso — seja agindo como Cosme, que se desloca para outro espaço; seja investindo nas metades apartadas do Visconde, muito peculiares em suas contradições intrínsecas; seja nas perambulações da armadura errante e vazia de Agilulfo, à procura de uma consciência que o permita existir — só pode ser conquistada se os componentes trágicos, inerentes a essas situações, perseguirem o legado deixado por Perseu.
E, então, chegamos a um dos traços mais relevantes na análise de um autor do cabedal de Italo Calvino, qual seja o de que jamais pode se perder de vista o fato de que ele se insere na tradição dos escritores italianos que melhor atualizaram o conceito de trágico na contemporaneidade.
Trágico moderno
Algumas obras dos grandes autores da literatura italiana do século 20, tais como Svevo, Pirandello, Pavese, Primo Levi e obviamente Italo Calvino, abrem-nos um amplo leque de possibilidades de compreensão ao que se costuma chamar de “configurações do trágico” na modernidade. Uma análise acurada, que dá conta de um histórico dessa interessante evolução conceitual, é feita por Glenn W. Most, em Da tragédia ao trágico. A transformação radical pela qual passou esse conceito, segundo o eminente estudioso, deu-se com as propostas de Schiller que:
[…] formulou, pela primeira vez, uma visão do trágico como um aspecto fundamental da existência humana, indicativo da irremediável, dolorosa incompatibilidade entre o homem e o mundo em que ele se acha por acaso — uma idéia absolutamente moderna que está intimamente ligada à secularização e ao desencantamento do mundo e, é claro, largamente estranha à maior parte do pensamento grego antigo — e então, num segundo passo, designou ao gênero da tragédia a missão de incorporar adequadamente este insight.
Percebe-se, a partir dessa nova teorização, uma ruptura com a tradição canônica da tragédia grega, porque o trágico passa a ser visto como inerente à experiência humana, como abismo que se abre entre o homem e o mundo.
Se pensarmos que os heróis gregos devem cumprir um Destino inexorável, notaremos que, em tese, eles só podem ser “aproblemáticos”. Em sentido radicalmente oposto, o anti-herói moderno é, em si mesmo, a tradução perfeita do que vem a ser “problema”, já que o desajuste e a incapacidade de pertencimento a qualquer sistema faz parte do que o constitui. Daí, talvez se compreenda por que o trágico, hoje, se expresse, sobretudo, por meio das aporias e paradoxos.
No que se refere à tradição da literatura italiana do século 20, essa trajetória pode ser sintetizada, por exemplo, no que Victor Brombert denominou “coragem do desespero” de Zeno Cosini de A consciência de Zeno, de Italo Svevo, ou em Um, nenhum e cem mil, do chamado “mestre da razão enlouquecida”, Luigi Pirandello. E ainda mais em Primo Levi, diante da violência emudecedora do horror do holocausto, por meio do ato de testemunhar como forma de sobrevivência.
Em Calvino, considerado um “camaleão” que se molda às mais diversas formas do narrar, consciente de que a única permanência está na mudança, a busca de parâmetros do que ele denomina “leveza”, “rapidez”, “exatidão”, “visibilidade”, “multiplicidade”, cada uma de suas seis conferências, elencadas em Seis propostas para o próximo milênio, voltam-se, sobretudo para a linguagem. Nesse sentido, confirma o que propõe Eduardo Lourenço em O canto do signo ao afirmar que “o trágico agora é outro; reflui da exterioridade onde sempre parece ter tido o centro, para o seu núcleo primordial: a Linguagem”.
Contra a concepção romântica de integridade coesa de mundo, Calvino almeja o que é em partes, o que jamais se completa, o que precisa vir a ser, numa verdadeira apologia das potencialidades e da falta como melhor representação do desejo. É por isso que seus modos de narrar, tantas vezes, se apropriam da fabulação picaresca ou cavalheiresca, dos reinos e espaços imaginários, em que o tempo histórico e cronológico se suspende para dar lugar à existência atemporal de Castelos dos destinos cruzados ou de Cidades invisíveis, que estão por trás do que ordinariamente se vê. É, a propósito, na célebre passagem com que encerra essas suas Cidades que Marco Polo, em diálogo com o sábio Kublai Kan, ensina:
— O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
Palomar: o olho telescópico
O último romance de Calvino é de novembro de 1983. Neste, o protagonista é o senhor Palomar, um indivíduo com nome de telescópio, que se detém a contemplar melros, girafas, tartarugas, ervas daninhas, queijos, açougues e estrelas, concedendo a tudo a dignidade de ser objeto de pensamento. Junto ao princípio norteador da leveza, poderíamos acrescentar à análise dessa obra derradeira a ênfase à proposta da “visibilidade”, uma vez que o que aqui mais se nota, de modo flagrante, é a preocupação com os modos de ver e perceber o mundo.
O mesmo insight já anunciado em O barão nas árvores, cujo protagonista se desloca por não agüentar o peso sufocante de seu ambiente e, subindo às árvores, amplia o foco de visão, também neste caso, o que se propõe é um redimensionamento do ver, já que em tempos de saturação de imagens e cegueira generalizada, tem-se a impressão de que se vê tudo, porém, na maior parte das vezes, perdendo o frescor e a agudeza do olhar capaz de ver o essencial (a propósito ver Quando o olhar se faz visão, neste mesmo Rascunho, #104, dezembro/2008).
Mas o homem Palomar — diversamente das paisagens panorâmicas sobre as quais, a princípio, o telescópio homônimo pousa — perscruta o universo muito de perto, nas filigranas minuciosas do que está ao alcance do olho nu, despojado de lentes de qualquer tipo. A estrutura narrativa exacerba os elementos descritivos, numa poética de precisão e adjetivação exaustiva, que lembra as análises minuciosas de pesquisas de rigor científico. Essa investida no ato de ver em detalhes adensa a necessidade de resistir ao ver superficialmente, como se necessitássemos voltar à visão virginal, num processo de reeducação de nossa percepção sensorial do mundo, resgatando sua instância inaugural, pré-lógica, de tempos muito remotos e que acabou por nos ser tolhida ou deformada pelo excesso de imagens que, ininterruptamente, nos assolam:
O senhor Palomar e a senhora Palomar toda noite acabam deslocando as poltronas de frente da televisão para junto da vitrine; do interior da sala contemplam a barriga esbranquiçada do réptil sobre o fundo escuro […] a televisão se move pelos continentes recolhendo impulsos luminosos que descrevem a face visível das coisas; o camaleão ao contrário representa a concentração imóvel e o aspecto oculto, o contrário daquilo que se mostra à vista.
A coisa mais extraordinária são as patas, verdadeiras mãos de dedos moles, só falanges, que premidas contra o vidro a ele se aderem com suas ventosas minúsculas: os cinco dedos se alargam como pétalas dessas florzinhas dos desenhos infantis, e quando uma das patas se move, recolhem-se como uma flor que se fecha, para tornar depois a se distender e a se comprimir contra o vidro, fazendo aparecer estrias miudíssimas, como as que se vêem nas impressões digitais. Ao mesmo tempo delicadas e fortes, essas mãos se libertam da função de se manter ali aderidas à superfície vertical, readquirir os dotes das mãos humanas, as quais segundo dizem se tornaram hábeis a partir do momento em que não tiveram mais de se manter agarradas aos ramos ou aderidas ao solo.
Palomar age também à maneira de Perseu, resgatando a leveza por meio da resistência, fazendo com que seu olhar arguto incida sobre o que se desaprendeu a ver. Reverte o que Cesare Cases havia denominado em O barão das árvores de “pathos da distância”, aproximando o olho despido de recursos, em busca do “aspecto oculto” das coisas. A linguagem se compraz da ironia e do paradoxo de que o que deveria ser o mais evidente — uma vez que não exige esforço, nem aparelhos especializados para ser visto — no mundo multimidiático do império das imagens, passa despercebido ao olhar. O que deveria ser simples e direto torna-se de difícil apreensão.
O mais trágico, denunciado por Italo Calvino em Palomar, é que se hoje Perseu tivesse que tomar emprestado nossos olhos embotados e violentamente cegados pelo excesso de luz, numa espécie de cegueira branca, como a que concebeu José Saramago, talvez, ofuscado, não conseguisse nem mesmo identificar a horrível face da Medusa, a que, desde sempre, é preciso continuar a combater.