O legado da Semana de 22 é artístico, não social

Na atual literatura brasileira contemporânea esse viés estético se dissipou bastante, com os autores tentando “curar” a injusta estrutura social do país
Ilustração: Eduardo Souza
01/03/2022

Afora os clichês arquiconhecidos, como a experimentação, a fixação da identidade nacional e da cultura, a aproximação entre língua falada e língua escrita na prosa e nos versos livres da poesia, tudo o que já se vinha fazendo na Europa, a Semana não promoveu nem tentou promover uma efetiva transformação social da nação brasileira via uma literatura panfletária de cunho social. Não foi esse o caminho, apesar de trabalhos importantes na linha estrita e claramente política como a obra da Pagu, entre outros. A sua influência na literatura brasileira foi forte na parte estética, uma mudança na noção do Belo que acabaria alterando o status quo social. O transformar o mundo, de Marx, ou o mudar a vida, de Rimbaud, seriam batalhas da mesma guerra. Mas já antes escritores batiam nessa tecla, como Augusto dos Anjos ou Lima Barreto.

Ficou mais claro para a arte literária então a lição extraída de Brás Cubas, do Machado. A língua já é significante antes de o texto ser escrito. A literatura cria um segundo sistema de significações e ela se refere à linguagem e não ao real, como analisam os semiólogos.

Os modernistas nos legaram um monumento literário, Macunaíma, do Mário, e O rei da vela, do Oswald, por exemplo, que teve uma genial montagem teatral do Zé Celso Martinez lá pelos anos 60, para citar dois exemplos. Vejo Mário e Oswald como dois expoentes fundamentais da nossa história literária. A influência desses autores vai se dar com clareza em Drummond, Bandeira, João Cabral. Clarice também reivindica a influência modernista, conforme análises recentes. Sem falar da Tropicália e do movimento Concretista, experimentado, no início, por Bandeira.

Na literatura recente esse viés estético se dissipou bastante. A literatura brasileira contemporânea tenta “curar” (termo dos pesquisadores) a injusta estrutura social do Brasil, como se vê na literatura afro-brasileira, indígena, de autoria feminina ou LGBT. Em relação à língua portuguesa a que me referi acima, a influência da língua da internet também deve ser considerada na literatura contemporânea.

Essa maior conscientização da mudança social através da estética teve influência na minha geração e na minha obra. Geração artística super politizada. O texto não pode fugir de sua relação com o mundo. A criação artística é também prática social e produção ideológica. Tento construir nos romances um equilíbrio entre um modelo estetizante, predomínio da estética, e um com forte preocupação conteudística. De um lado saiu A ficcionista e o Menino oculto e o recente Esquisse, só publicado até agora na França, do outro, O bruxo do Contestado, Marcelino e Amores exilados. Mas nos dois casos busco a primazia da linguagem, senão não é literatura.

A Semana, cujos atores e atrizes principais vinham da classe alta paulistana no geral, continuou a preocupação dos Românticos de uma certa maneira, José de Alencar à frente. Digo de uma certa maneira porque Mário de Andrade chamou José de Alencar de “Alencar, meu irmão” em artigo num jornal de São Paulo. Irmão em qual luta? A da fixação da nacionalidade mas também ao tratar da língua portuguesa do Brasil. Alencar, imitando os românticos franceses como Victor Hugo, transpôs para a modalidade escrita construções gramaticais da variante brasileira da língua portuguesa, obviamente falada. Se dúvida o fez timidamente, nada comparado à ruptura dos modernistas. Lembremo-nos que Mário de Andrade inicio a elaboração do que ele denominou Gramatiquinha da fala brasileira, projeto, aliás, interrompido. O “Instinto de Nacionalidade”, do Machado, entrou na roda, imagina-se. Mas agora o mote era ruptura e independência cultural, exatamente um século após a independência de 1822.

Mas a arte proclamada não contribuiu, objetivamente, como disse, para a inclusão da população indígena ou negra, a maioria da nação. Pensava fazê-lo indiretamente pelos costumes e pelo gosto artístico. Essa estratégia para transformação social sempre alimentou a discussão entre o Partido Comunista, forte no meio intelectual da época da Semana, e as correntes que pregavam, e pregam hoje como partidos, uma revolução social pelos costumes, sem atentar diretamente para o conflito de classes. Acaba de vir à luz um texto de Oswald de Andrade dos anos 20 com viés racista (escrito quando o autor era muito jovem). Não foi então apenas Monteiro Lobato que, aliás, criticou duramente a Semana.

Penso que se nos ativermos apenas ao aspecto social, a fama de revolucionária da Semana é algo exagerada. O movimento era artístico. A arte não é o real, a arte concorre com o real, ela ultrapassa a ideia de morte e de estreiteza da condição humana diante do mundo, já disseram. Aí sim ela faz tremer as bases da estrutura social. O Graciliano, autor particularmente politizado, membro do PCB, escreveu numa entrevista que achava aquilo (a Semana) uma tapeação desonesta (risos). Para ele a preocupação estética não pode dificultar a verdadeira função da arte, a de contribuir para a justiça social no país. Mas sem perder a noção do que seja arte literária. Daí a grandeza do Velho Graça. Ele conseguiu equilibrar esses dois lados com habilidade. No S. Bernardo, o personagem Paulo Honório ordena a alguns empregados letrados da fazenda que escrevam trechos da sua vida. O fiasco foi total, Paulo Honório rasgou o texto! Literatura sob encomenda não funciona, parece a lição. Literatura é arte. E isso em pleno Realismo Socialista. Penso que a tentativa de encontrar esse ponto de equilíbrio é que alimenta o debate acalorado de hoje a respeito da Semana.

A Semana de Arte Moderna não foi trazida à cena iluminada pela ditadura militar de 64/68, fique bem claro, é de uma estultice enorme afirmar isso.

A Semana teve desavenças internas, como é sabido. A atual justa valorização do nosso poeta simbolista Cruz e Sousa, cuja poesia exerceu influência em autores do início do século passado até a contemporaneidade, foi solenemente ignorado pelos modernistas. Cruz e Sousa era negro. A arte pode ser revolucionária quando dá voz a quem não tem, houve um pouco isso em 22, está bem, mas não muito.

Mas a literatura brasileira foi outra depois da Semana, esse legado é inquestionável. Estudiosos já escreveram que pintores contemporâneos dialogam com as pintura rupestres sem o saber, o famoso Museu Imaginário, a literatura de todos os séculos dialoga com Platão, a Biblioteca Universal. Mais perto de nós, a literatura contemporânea brasileira dialoga profundamente com os modernistas mesmo que não tenha disso consciência. No momento atual, ela se aproxima mais de uma literatura ativista à la Vidas secas, também sem perder a qualidade artística, como o premiado Torto arado e as premiações do Jabuti e outras deste ano. Mas, no movimento de gangorra da arte, uma obra à la Serafim Ponte Grande virá se postar ao lado desses romances. Não há arte revolucionária sem forma revolucionária (Maiakovski).

Godofredo de Oliveira Neto

É professor da UFRJ. É autor dos romances Amores exilados e Menino oculto, entre outros. A novela A ficcionista será lançada em agosto pela Imã Editorial.

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