Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Assim o senso comum distingue o que é em si do que só se dá como diferença e é de impossível intercâmbio. Se considerado no campo dos estudos de literatura, o raciocínio ilustrará a ação da crítica para não ser confundida com o que trata de aspectos exteriores a obras, como biografia de autores e contextualização de época, por exemplo. A crítica se legitima como discurso e se autonomiza como saber questionando a crença de que só pela história de alguém ou de uma sociedade se podem desvendar cifras de um texto e compreender por que e como ele diz o que diz. Num paradoxo, a crítica se diferencia do senso comum valendo-se de um raciocínio caro a ele.
Há casos, no entanto, em que ela alcança patamar maior de originalidade, justamente quando se mistura ao convencionado, ressignificando-o. Esse é o caso de Maquinação do mundo: Drummond e a mineração, em que José Miguel Wisnik interpreta a obra do poeta gauche servindo-se do que de antemão já se sabe dispensável: “A vastidão da poesia de Carlos Drummond de Andrade admite muitas entradas. Neste livro explora-se uma delas: a relação do escritor com a mineração e, em particular, com o ‘destino mineral’ de sua cidade natal, Itabira do Mato Dentro”, informa o crítico, sem ignorar eventuais riscos do método empregado: “Conheço bem a suspeita que certa crítica universitária tradicional faz pesar sobre o que lhe parecem ser leituras de raiz biográfica ou geográfica, tidas como anedóticas, guiadas por um sentimento de curiosidade externo ao texto, circunstancial ou mesmo turístico”. A Wisnik interessa a reverberação do espírito do lugar no espírito do poeta, que denuncia o corroer de habitat e de habitantes. O estado de coisas e de ex-coisas provocado pela mineração reverbera no espírito do crítico, em cujo meio do caminho tinha um lamaçal:
Em julho de 2014 o acaso me levou a Itabira, onde eu nunca tinha estado (…). A viagem teve efeitos inesperados, que desembocam neste livro: na cidade natal de Carlos Drummond de Andrade as marcas do passado, assim como sinais contemporâneos gritantes, pareciam estar chamando, todos juntos, para uma releitura da obra do poeta. A estranha singularidade do lugar incitava a ir mais fundo na relação do autor d’A máquina do mundo com as circunstâncias que envolvem a ‘estrada de Minas, pedregosa’, a geografia física e humana, a história da mineração do ferro.
A citação exibe pontos que servem como um roteiro interpretativo das principais abordagens do livro: o passado e o presente de Itabira, em cujos buracos se vê uma doença prenhe de doenças nacionais, que nos retornam periodicamente aos mesmos buracos; a releitura da obra de Drummond, esquadrinhada à luz de significativa parte de sua fortuna crítica; uma nova interpretação do poema A máquina do mundo.
“A modernidade, que ali comparece cronicamente como ausência, sobrevém como catástrofe”, assevera Wisnik sobre o rumo imposto a Itabira do Mato Dentro. Encravada e escavada no interior de Minas Gerais, ela cumpriu no século 20 a marcha das localidades em que a colonização, já não sendo fato, permanece como fatalidade (no que a palavra verbaliza de “inevitável” e de “desgraça”). Embora nunca inserida na pauta do desenvolvimento urbano (fora de Itabira, o que se sabe do seu dentro, além do ferro e do autor de Brejo das almas?), à cidade chegou a engrenagem do progresso, apregoado como avanço e consumado como devastação. Enriquecido por iconografia que dá a dimensão do capitalismo como arrombamento do mundo, Maquinação focaliza a progressiva desaparição do Pico do Cauê (que “dá seu nome à operação que consuma o seu extermínio”) e como a sensibilidade de Drummond é por ela contaminada. Moderno de outra modernidade, em poemas, contos e crônicas o poeta nega as promessas falaciosas de progresso, simbolizadas pela Companhia Vale do Rio Doce, “solução” brasileira para evitar o domínio estrangeiro da mineração. Como a pátria do empresariado é o lucro, a Vale seguiu exemplarmente a tendência internacional, roendo de Itabira riquezas astronômicas e lá deixando como saldo arraso ambiental (o pico do Cauê é hoje um buraco) e marginalização social de inúmeras pessoas, cães sem plumas a provar apenas que a vida prossegue. “No grande conjunto dos escritos ligados à questão mineral em Drummond (…), a caixa virtual da memória afetiva é simultaneamente a caixa vazia do real vazado pelo tempo. Mas elas são inseparáveis de uma terceira, a caixa-preta da história da mineração no Brasil do século 20”, afirma e grifa Wisnik.
Expansão crítica
A máquina poética é o quinto dos seis capítulos do volume, e nele Wisnik examina A máquina do mundo, “o desaguadouro quase obrigatório da crítica drummondiana, que realiza há décadas, em torno dele, um verdadeiro congresso hermenêutico”. A percepção motiva o autor de Maquinação do mundo a passar em revista parte expressiva desse congresso: ao longo do capítulo, sintetizam-se interpretações do poema feitas por José Guilherme Merquior, Antonio Cicero, Alfredo Bosi, Betina Bischof e Alcides Villaça (o livro explora ainda trabalhos de demais intérpretes sobre textos outros do poeta mineiro).
E como só ocorre aos estudos maiores, o de Wisnik ingressa na assembleia para lhe prestar uma contribuição original. Se para os nomes citados é prioritário assinalar a recusa do sujeito que desdenha colher a coisa ofertada pela máquina totalizante, àquele que cita importa fundamentalmente tomar o poema pelo que ele tem de avesso e de vertiginoso, tal como uma instância em que se conjugam a fita de Moebius (unilateralidade plena de movimento e de mistério) e o locus do aleph (onde todas as coisas são uma). Se o espírito do lugar vibra no espírito do poeta, este, por sua vez, é vibrado por e é vibração no espírito do tempo. Drummond se incomoda com o que há de “vida besta” na província e exibe o bom leiteiro varado pela bala do revólver da urbanização; é quem sente o mundo como peso para ombros isolados enquanto pede que ninguém solte a mão de ninguém na vida presente; é, por fim, o funcionário dum governo autoritário e o artista que aponta a noite que dissolve e departe os homens. Esse espírito todo retorcido diz do espírito do poema, plasmado por “uma inflexão histórica que contracena complexamente com o questionamento metafísico que está no seu cerne”, aponta Wisnik. Lendo verso por verso, o crítico expande a interpretação do texto, via de regra tomado apenas por seu teor filosofante, e percebe no Drummond que ali pensa isolado o Drummond que está sentindo comunitariamente, dada a “chegada da máquina mundializante a Itabira, que coincide não por acaso com o momento” de escrita A máquina do mundo.
Pelo que foi aqui dito e pelo que não coube no espaço, Maquinação do mundo é uma lição de crítica literária. Nele estão os aspectos fundamentais de um trabalho de tal natureza: a proposta original; o exame de um corpus específico fundamentado em ampla bibliografia drummondiana; a pesquisa de não menos ampla fortuna crítica. Além do elementar está o encaminhamento interpretativo, não necessariamente inédito, mas pulsantemente novo, pelo amálgama que forma uma linguagem geocrítica. Comentado no livro, o crime ambiental de Mariana completa quatro anos e suas lamas respingam no fogo e no óleo da ordem e do progresso da pátria armada e obscurecida. No livro de José Miguel Wisnik, a crítica literária é via de conhecimento profundo da literatura e poderoso instrumento de percepção de fenômenos políticos. Nele, portanto, uma coisa é outra também.