O lado obscuro

Muriel Pic discorre sobre as várias camadas de interpretação possíveis em apenas uma imagem
21/04/2016

 

Em 1993, a artista americana Nina Katchadourian começou o projeto Sorted Books, em que visitava coleções particulares de livros para compor uma pilha cujos títulos montassem uma espécie de poesia ou frase com algum sentido. A composição em si pode ser vista como uma escultura e o registro é normalmente uma fotografia — uma espécie de retrato do dono dos livros. Uma das séries, por exemplo, visita a biblioteca do escritor William S. Burroughs. (Eventualmente esse tipo de imagem foi apropriada por outras pessoas e postada na internet com o nome de poesia de lombada).

Entre as ideias da artista está a noção de que uma coleção de livros representa de certa forma seu dono. Mas, além disso, o projeto mostra a apropriação do livro como um objeto que pode ser alheio ao seu conteúdo e capaz de fazer parte de uma composição completamente diferente.

Essas ideias permeiam também a obra de Muriel Pic. As desordens da biblioteca apresenta essas noções em dois momentos: a primeira é uma série de montagens fotográficas com livros enquanto a segunda é um ensaio. Tanto a parte imagética como a ensaística do livro partem de uma mesma inspiração: a prancha fotográfica de uma biblioteca publicada no primeiro livro de fotografia conhecido, o The pencil of nature, de William Henry Fox Talbot (publicado originalmente em 1844). A edição brasileira do livro de Pic conta ainda com um prefácio de Christian Prigent e um posfácio de Eduardo Jorge de Oliveira, que assina também a tradução.

Montagens
Na parte fotográfica do livro, Pic faz uma série de imagens de bibliotecas privadas para recortá-las e realocá-las, o que resulta em prateleiras impossíveis. Entre os livros, a fotógrafa e escritora insere também os itens pessoais de decoração e outras banalidades, como recortes de revista e jornal, que estavam nas estantes originalmente. É quase impossível ver o móvel utilizado para o armazenamento nas fotos — a cor deles escapa por trás de alguns livros em prateleiras menos abarrotadas, mas é só.

As 18 montagens, feitas manualmente com tesoura e cola, são apresentadas em folhas duplas de fundo preto, destacando os contornos não usuais e as cores das lombadas. Porém, pouco se lê dos títulos: são apenas algumas lombadas com tipografia mais generosa que permitem uma identificação das edições.

Quando Talbot publicou a imagem de uma biblioteca em seu livro, ele optou por mostrar objetos ao invés de pessoas. Mas ao mesmo tempo enquadra algo muito íntimo, afinal, nossas opções nas estantes dizem também muito sobre nós. Pic consegue reutilizar essa ideia inserindo a edição e montagem, que ressalta muitos dos aspectos que poderiam passar batido em uma imagem normal e plana desses espaços.

Esses amontados funcionam quase como retratos: eles mostram detalhes das estantes de pessoas que amam os livros, com todas as suas idiossincrasias. Essas representações são ainda capazes de quase descrever os colecionadores, mostrando o que leem e o que são.

Ensaio
Já o ensaio A biblioteca obscura de W. H. F. Talbot propõe uma interpretação da fotografia de livros feita pelo inglês Talbot. Pic explora o contexto de criação dessa imagem e da fotografia em si, assim como as relações possíveis com outras áreas.

A imagem (que em tempos de #shelfie pode parecer banal) mostra pouco mais de vinte livros acomodados em duas prateleiras — são edições grandes, por vezes antigas, encadernados luxuosos de títulos ilegíveis.

Em sua publicação original, a imagem Cena em uma biblioteca é acompanhada de uma descrição de cerca de uma página de Talbot, que narra uma experiência improvável com raios ultravioletas, que supostamente permitiriam que pessoas se vissem mesmo estando dentro de uma câmera escura (esse texto foi definido por Pic como uma ficção científica). Essa é uma referência corrente da autora e influencia até no título do ensaio.

Um dos primeiros pontos abordados pelo texto é a questão da invenção da fotografia, creditada então ao francês Daguerre. Talbot, porém, também desenvolvia pesquisas nessa área, a ponto de ter criado o papel fotográfico que permitiu a inserção das imagens em livros. Pic acredita que a publicação do The pencil of nature é uma maneira do inglês se posicionar no mundo da fotografia.

Pic lembra que a fotografia “transforma o homem em fantasma” e estabelece várias relações entre o pensamento literário da época com a obra do inglês.

Uma característica de The pencil of nature é a opção de Talbot por retratar majoritariamente objetos, ao contrário de boa parte do início da fotografia, que se ocupou de pessoas. Particularmente, ao retratar seus livros, se mostra como o amante de livros que de fato era (tanto que se ocupou em criar uma maneira de incluir as fotografias em um livro). “Ao longo de The pencil of nature, Talbot incita o olho do espectador a observar o que o olho da câmera torna visível do real e que, sem isso, permaneceria invisível”, escreve Pic.

A imagem de Talbot que origina o ensaio de Pic mostra o fragmento de uma biblioteca e é esse tema que a escritora aborda majoritariamente no ensaio. O que representa a imagem de uma biblioteca? O que essa fotografia diz?

Ao ler atentamente a imagem, Pic mostra que Talbot consegue montar uma espécie de ficção com suas imagens, criando uma rede de relações com outros temas e pensamentos que permite que o leitor (ou espectador) se depare com mais do que apenas uma imagem em um papel.

A biblioteca é tanto um lugar de registro documental como um espaço para a imaginação e, segundo Pic, isso é válido também para as imagens de Talbot: elas não apenas registram uma cena verdadeira, mas também criam um espaço para contemplação e imaginação de uma cena. Afinal, o que as páginas dos livros fechados mostram? Que livros são esses? Onde estão?

O curioso do ensaio de Pic é que ao mesmo tempo em que escreve sobre um tema muito específico (uma imagem de um livro de Talbot), ela aborda também questões muito maiores para a fotografia e para a leitura de imagens. Mesmo com um objetivo simples, ela discorre sobre várias camadas de interpretação possíveis em apenas uma imagem. Além disso, enquanto fala sobre a imagem de Talbot ela parece também jogar uma luz de interpretação para as próprias fotomontagens.

 

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A AUTORA
Muriel Pic

 

TRECHO
As desordens da biblioteca

Aqui, também acontece uma magia, nessa sala repleta de livros, mergulhada no escuro, onde nosso olhar se introduz como raios invisíveis dotados do poder de perfurar a escuridão. O que faz a magia da biblioteca é o fato de ser tanto lugar da análise documental quanto da imaginação. Mesmo perfeitamente classificada, ordenada, catalogada, uma biblioteca é um lugar de viagens, de errâncias, espaço de percursos possíveis por meio de diferentes ordens de realidade.

 

As desordens da biblioteca
Muriel Pic
Trad.: Eduardo Jorge de Oliveira
Relicário
92 págs.
Muriel Pic
Nasceu em 1974, é doutora pela l’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales e ensina literatura francesa na universidade de Berna, na Suíça.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

Rascunho