Dezenas de títulos novos são lançados semanalmente no país. Duas visitas, em um intervalo de poucos dias, revelam livrarias distintas, ainda que o endereço permaneça o mesmo. Já são outras as pilhas que disputam a atenção dos clientes em potencial. Capas com cores fortes ou metálicas, providas de closes fotográficos misteriosos e purpurina em profusão. Muitas delas estampam a indicação de que seus respectivos livros perduraram por muitas semanas na lista de mais vendidos de um jornal estadunidense ou de que eles deram origem a um fenômeno de bilheteria nos cinemas.
Não é sem esforço que se encontra o último romance de Michael Cunningham, Ao anoitecer. Em primeiro lugar, sua capa é cinzenta; ainda que bela, é discreta. Em segundo lugar, o leitor que coleciona seus livros não consegue reconhecer, nela, a identidade visual mantida nos outros volumes da obra do autor — o que pode levar tanto a pensamentos mesquinhos (esse livro não vai combinar com o resto da coleção) quanto a conjecturas de cunho literário (o que esta capa está querendo dizer?). Pela primeira vez, não se menciona que Cunningham escreveu também As horas, romance que deu origem a um filme premiado com o Oscar e que valeu um prêmio Pulitzer ao seu autor.
Seria este o ponto de virada de sua obra? Talvez isto soe como superinterpretação. Porém, o leitor que acompanha a produção do autor, tão logo inicia a leitura, se dá conta de que realmente há algo de diferente em Ao anoitecer. A questão não é exatamente temática, pois neste se encontram muitos dos temas recorrentes em seus outros romances. A decadência física, problemas familiares (famílias infelizes, cada uma à sua maneira), os desencantos típicos dos longos relacionamentos amorosos, o embate entre vida e arte, a relação ambígua com a morte (“A impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo”), a atenção com que se retrata o passado histórico (não muito distante) do país, a pluralidade de representações de personagens homossexuais, que fogem dos estereótipos e tropos comumente veiculados na mídia: tudo isso também está presente no novo título de Cunningham.
O principal ponto de divergência dos livros anteriores consiste na ausência de polifonia. O leitor mais atento (“obcecado” é outro adjetivo possível) poderia acrescentar que desapareceu uma diversidade de vozes que, caracteristicamente na obra do autor, costumava obedecer ao número três. Vejamos: em Uma casa no fim do mundo, primeiro romance não renegado pelo escritor, a narrativa se detém, a princípio, na vida de dois garotos — Jonathan e Bobby — que crescem durante a era do flower power, com algumas interferências da voz de Alice (mãe do primeiro); esta personagem é logo substituída por Clare, uma jovem que tenta constituir uma família alternativa (e um triângulo amoroso) com ambos, quando já rapazes.
Por sua vez, em Laços de sangue, um romance que atravessa várias gerações e conta a história da família de um imigrante grego que quer “se construir na América”, as vidas dos três filhos de Constantine Stassos — Susan, Billy e Zoe — são as que recebem maior atenção. As horas, o livro mais conhecido de Cunningham, se alterna entre as vidas de Virginia Woolf (em 1923, durante o processo de criação e escrita de Mrs. Dalloway, uma de suas obras-primas), Laura (uma dona de casa que lê o romance de Woolf em 1949) e Clarissa (uma editora que vive na Nova York de antes dos atentados, cujo apelido é Mrs. Dalloway). Por fim, Dias exemplares narra três momentos históricos dos Estados Unidos: a industrialização do século 19, a paranóia do mundo contemporâneo e um futuro distópico.
Ao anoitecer, contudo, segue um rumo diferente. Ainda que apresente uma série de personagens tão complexos quanto os das obras que o antecederam, eles não passam de coadjuvantes. A narração em terceira pessoa em momento algum dá sinais de onisciência ou de querer abranger algo mais do que a percepção do protagonista, que, para a sorte do leitor (e dos demais personagens da trama) é sensível e perceptivo, capaz de interpretar além do que foi explicitado em conversas banais. Talvez isso denote um exercício de metalinguagem, em que o romancista lembra o leitor de que as diferentes vozes que caracterizavam sua obra até então eram produtos de uma mente só. Única.
Unidos pelo vício
Peter é dono de uma galeria em Nova York. Nem desconhecido, de modo que não possa ser considerado bem-sucedido, nem um dos grandes do ramo, de forma que não foi muito abalado pela crise econômica mundial. Sua idade, 44 anos, já lhe permite perceber o envelhecimento (ele recusa que seu cabeleireiro lhe pinte o cabelo) e a estagnação profissional: nunca ajudou a descobrir algo que considerasse genial. “Por favor, Deus, me mande alguma coisa que eu adore”, ele implora em certo momento.
Ethan é o jovem irmão de sua esposa, Rebecca; parece-se com o que ela era 20 anos antes e com seu próprio irmão, Matthew, cuja beleza ele culpa pela morte precoce, num tempo em que a Aids era uma sentença de morte. Ethan é impossivelmente lindo, como um buraco negro — com toda a beleza e potencial destrutivo que a expressão abrange. A admiração que provoca em Peter é a mesma que este esperaria sentir ao ver a produção artística do gênio que ele nunca descobriu. Ele
[…] quer ser dono de Mizzy, do jeito que quer ser dono da arte. Quer a cabeça torta de Mizzy, quer sua autodestruição, quer seu… ser ali, tudo ali, não quer vê-lo desperdiçando isso com ninguém, com toda a certeza não com uma garota que pode dar a ele uma coisa que Peter não pode. Mizzy está se transformando… Peter não é burro, é louco, mas não burro… em sua obra de arte favorita, uma performance se quiser, e Peter quer colecioná-lo, quer ser seu mestre e confidente […], Peter não quer que ele morra (realmente não quer), mas quer ser o curador de Mizzy, quer ser seu único… seu único. Isso basta, de fato.
As referências a buracos negros, autodestruição e morte não são casuais. Ethan — mais conhecido como Mizzy, abreviação de mistake (erro, engano) — é tão perdido quanto belo. Teria um futuro brilhante pela frente, não fossem suas recaídas nas drogas e sua indecisão sobre o que fazer da vida: “onde foi parar o menino prodígio? Em criança, esperava-se que ele fosse um neurocirurgião, ou um grande romancista. E agora ele está pensando (ou, tudo bem, se recusando a pensar) na escola de direito. Será que a carga de seu potencial foi demais para ele?”.
Depois de um longo retiro em um mosteiro longínquo, insatisfatório, ele aparece no apartamento de Rebecca e Peter e pede a este uma chance: quer ver se gostaria de trabalhar com arte. Peter descobre que as drogas não são mais um passado na vida do rapaz:
Entretanto, a maior surpresa para Peter é o quanto ele se sente agora enternecido, como é estranhamente solícito com Mizzy. Talvez não sejam, afinal, as virtudes dos outros que tanto apertam nossos corações, mas sim a sensação do quase insuportavelmente pungente reconhecimento quando nós os vemos no que têm de mais essencial, em sua tristeza, gula e tolice. São necessárias as virtudes também, algum tipo de virtude, porém não gostamos de Emma Bovary, de Anna Karênina ou de Raskolnikov porque são bons. Gostamos deles porque não são admiráveis, porque eles são nós e porque grandes escritores os perdoaram por isso.
Revelações
Não. Isto é a minha vida e não Morte na porra de Veneza […]. Sim, eu sou um homem mais velho que aninha certa fascinação por um homem muito mais jovem, mas Mizzy não é um menino como Tadzio era, e eu não estou obcecado como Aschenbach (ei, não fui eu que impedi outro dia mesmo que Bobby tingisse meu cabelo?).
A referência à novela de Thomas Mann parece negar parcialmente uma interpretação mais fácil: a de que Ao anoitecer seria tão somente uma releitura contemporânea de Morte em Veneza. O protagonista estabelece um diálogo casual e constante com importantes obras da literatura universal — como em “Quem poderia esperar que Matthew e esse garoto mais ou menos fortuito fossem se tornar Tristão e a porra da Isolda?” ou em “Um está sempre beijando, o outro sempre sendo beijado. Obrigado, Proust.” —, assim como se refere a importantes artistas plásticos reais (Rodin, Damien Hirst) e fictícios. Nada mais natural que se tome o livro como mera narração sobre os bastidores do mundo das artes e sobre uma paixão de um homem por outro muito mais jovem.
Livremo-nos da tentação de demonstrar que o romance não se limita a isso, o que levaria inevitavelmente (1) a exemplificações deselegantes ou (2) à simplificação de frases-feitas como “é um romance sobre a vida” — bons livros não costumam ser monotemáticos. Concentremo-nos no detalhe. Cunningham dá um passo além na discussão, por não limitar seu personagem à contemplação superficial da beleza.
Sem expor o desenvolvimento do enredo, creio que seja simbólica a relação de Peter com as obras de um dos artistas que representa em sua galeria: “São objetos, pendurados numa parede. Estão à venda. São também muito bonitos, à sua maneira: telas e esculturas embrulhadas em papel pardo e amarradas com barbante, depois cobertas com parafina, vaga referência ao Cristo amortalhado, feitas por um jovem gentil e um tanto fraco chamado Bock Vincent […]. Ele insiste que existem imagens e objetos debaixo dos embrulhos, tentativas sérias, embora ele não as mostre nem descreva, e o papel foi muito perfeitamente encerado para permitir qualquer tipo de desvendamento”.
Próximo ao final do livro, uma delas se rasga, revelando a Peter “uma pintura comum, cores Philip Guston, uma técnica de manchar e raspar roubada diretamente de Gerhard Richter. Nada original, e inapta”. Em outras palavras: “Uma merda de pintura de estudante”.
Idealizar é desumanizar. O ato de se enternecer até com os defeitos de algo (ou alguém) tem a sua beleza, mas oferece grande risco: “Viver é muito perigoso”, já disse Guimarães Rosa. A realidade sempre nos visita, para checar como estamos. E, quando começamos “a contar para ela tudo o que aconteceu”, tudo passa a fazer sentido — e não nos decepcionamos.