O lado B de Poe

Coletânea reúne contos pouco traduzidos do escritor norte-americano, acrescidos de comentários críticos
Edgar Allan Poe por Osvalter
01/11/2010

Raros escritores projetaram sua sombra — ou, como disse Julio Cortázar, “sua presença obscura” — sobre as gerações futuras de modo tão amplo e definitivo quanto o norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849). Matriz genética das histórias modernas de terror e do fantástico, e de gêneros populares como a ficção científica e o policial, Poe sempre esteve entre nós, leitores modernos, espreitando os interstícios entre a razão e a poesia, a realidade e o imaginário.

No Brasil, em particular, sua manifestação espectral ronda o mercado editorial desde o início do século passado. Em edições nem sempre bem cuidadas, é verdade, mas com o privilégio, muito justo, de ter sido recriado por escritores como Machado de Assis, Clarice Lispector, Paulo Leminski e José Paulo Paes. Tão fácil encontrar uma coletânea dos contos de Poe em sebos e livrarias que se torna difícil crer que ainda haja algum leitor cuja percepção de realidade não tenha sido afetada — ou perturbada — por histórias como Ligeia, O gato preto, A queda da casa de Usher, Os crimes da rua Morgue, A carta roubada, Willian Wilson, O barril de Amontillado, Berenice, O retrato oval e tantos outros.

Contos obscuros de Edgar Allan Poe, organizado por Braulio Tavares e ilustrado por Romero Cavalcanti, se destaca entre os mais recentes lançamentos da obra de Poe no mercado brasileiro — nos 200 anos de nascimento e 160 de morte, lembrados ano passado —, pela seleção e apresentação crítica do material.

A escolha dos 16 contos do livro feita por Tavares, escritor e compositor paraibano, obedeceu a uma regra de eliminação, tendo como amostra as 73 histórias compiladas em Complete tales and poems, da editora Vintage. Primeiro, ele descartou as presenças mais constantes em antologias e os contos mais traduzidos no país. Em seguida, selecionou, entre os restantes, os mais relevantes na obra do escritor. O resultado é uma coletânea de contos importantes, mas “obscuros”, no sentido de pouco traduzidos e, por isso, menos conhecidos entre os leitores brasileiros. As traduções são do próprio organizador do livro e de Oscar Mendes e Milton Amado, tradutores clássicos da edição de Poesia e prosa, de 1944, da editora Globo, e das obras completas, disponíveis atualmente pela editora Nova Aguilar.

Entre as histórias reunidas, há algumas nem tão desconhecidas, como Manuscrito encontrado numa garrafa e Descida no Maelström, que podem ser classificadas entre aquelas consideradas “obrigatórias” da prosa poeana. Mas há também algumas surpresas, como o primeiro conto publicado, Metzengerstein, de 1832, de terror gótico e influenciado pela literatura alemã (na realidade, uma paródia do gênero), e outros que, a seu modo, relevam as principais obsessões do escritor e, conseqüentemente, os temas presentes em sua obra. À sua maneira, a escolha dos contos também mostra a diversidade de interesses e experiências literárias aos quais Poe se dedicou.

À guisa de introdução ao universo de Poe, outro destaque da coletânea é o posfácio A sombra luminosa, que traz comentários críticos de cada conto apresentado. O texto acaba sendo de grande utilidade, pois, apesar da universalidade dos escritos de Poe, ele mantinha um estreito diálogo com seus contemporâneos, seja na forma de paródias, “bricolagem” ou pela simples necessidade de sobreviver, o que explica o apelo popular de boa parte de sua obra.

O desconhecimento deste contexto nunca impediu que o leitor apreciasse as histórias, de narrativa ágil e com suspenses, reviravoltas e finais assustadores. Do mesmo modo, a fina mistura de poesia e prosa em sua escrita, as construções matemáticas e a amplitude heurística no uso do código em seus contos, mesmo sob o risco de se perder o impacto em algumas traduções, conferem o efeito de “estranhamento” que somente a literatura em alto nível pode proporcionar.

Sátira
Contos obscuros deixa claro, por mérito editorial, a elegante ironia e o caráter inovador de Poe no século 19, mesmo quando observada a obra em seus aspectos periféricos. Como escrever um artigo à moda de Blackwood (1838), e sua seqüência, Uma trapalhada (1838), por exemplo, são frutos da relação de Poe com as revistas literárias de seu tempo, fonte de seu ganha-pão. O sarcasmo e o humor, que agradavam o leitor do século 19, não perderam a atualidade.

No primeiro conto, o editor da Blackwood’s Magazine, fundada em 1817, dá conselhos à Signora Psique Zenóbia (sic) de como escrever um conto de sucesso. A fórmula, parodiada por Poe, inclui erudição vazia, pastiche e estilo rebuscado: “Num artigo da Blackwood, nada melhor se exibe do que seu grego. As próprias letras parecem ter um ar de profundeza. Observe só, minha senhora, o astuto olhar aquele épsilon! Aquele phi… deve ser certamente um bispo! Houve jamais camarada mais elegante do que aquele ômicron?”.

As lições são seguidas à risca em A trapalhada, uma história hilária sobre a morte bizarra da própria autora. Numa das cenas (Poe era um autor “imagético”), a mulher dialoga com a própria cabeça, que rola sobre um telhado. É irresistível ver no estilo afetado e apelativo parodiado por Poe, receita de best-seller na época, um paralelo com fórmulas prontas de livros que freqüentam as listas dos mais vendidos atualmente.

Contudo, a originalidade de Poe desponta de forma mais acentuada em contos como os já referidos Manuscrito encontrado numa garrafa (1833) e Descida no Maelströn (1841), que prenunciam a ficção científica das décadas posteriores. O primeiro conto, sobre um viajante que entra num navio fantasma, faz uma alegoria da passagem para outra dimensão, um universo paralelo, onde a razão humana se mostra incapaz de dar conta do desconhecido. No segundo, há uma conclusão oposta para o mesmo problema. Um grupo de pescadores mergulha num redemoinho e consegue se salvar usando o raciocínio lógico e princípios básicos da ciência moderna. Ambas as disposições do homem frente aos seus próprios limites seriam exploradas posteriormente em histórias de ficção científica.

Steampunk
Outros dois contos, menos conhecidos, trazem uma curiosa antecipação do gênero que hoje seria bem classificados no ramo do steampunk. Três domingos numa semana (1841), fala de paradoxos temporais e viagens no tempo décadas antes de A Máquina do tempo (1895), de H. G. Wells e da teoria da relatividade geral de Einstein. A criatividade de Poe está em desenvolver um enredo baseado em diferenças cronológicas comuns em viagens marítimas do século 19, fato que gerou discussões à época, com viajantes de navios que circundavam o globo em direções opostas e registravam datas diferentes nos diários de bordo.

A milésima segunda noite de Sherazade (1845), sem dúvida um dos melhores contos de aventura do livro, traz, como diz o organizador, uma ficção científica às avessas. Nele temos a princesa Sherazade continuando as histórias de Simbad para evitar ser morta pelo califa. Ela descreve, na voz do marinheiro, invenções tecnológicas e fenômenos naturais do Ocidente na visão de povos não-colonizados ou de um terrestre ao se defrontar com uma civilização alienígena. Observe-se, por exemplo, como são descritas três tecnologias hoje obsoletas, a pilha voltaica, o aparelho eletrotelegráfico e o telégrafo:

Outro daqueles mágicos, por meio de um fluido que ninguém jamais vira, podia fazer com que cadáveres de seus amigos agitassem os braços, dessem pontapés, lutassem ou mesmo se levantassem e dançassem à vontade. Outro tinha cultivado a voz a tão grande extensão que poderia fazer-se ele próprio ouvir de uma extremidade a outra do mundo. Outro tinha um braço tão comprido que podia sentar-se em Damasco e redigir uma carta em Bagdá, ou, realmente, a qualquer distância que fosse.

As histórias espantam o cético sultão que as ouve, e que só crê no absurdo quando ele vai ao encontro das leis do Alcorão. O conto é um exercício de percepção de realidade, de como diferenças culturais moldam a perspectiva de mundo e o quão assombrosa é a sociedade moderna — e o quanto não damos conta disso.

Detetive
Tu és homem (1844) é, segundo o organizador, o precursor das tramas de detetive, com a narrativa desenrolando-se no ato de seguir pistas, inclusive pistas falsas, e a participação do leitor na tentativa de decifrar o enigma junto com o narrador. O próprio Poe havia criado o protótipo do detetive, Auguste Dupin, três anos antes, em Os crimes da rua Morgue. Outro recurso detetivesco, de leitura semiótica, aparece em A esfinge (1846), que encerra a coletânea.

O livro também proporciona um passeio por temas que seriam mais bem elaborados posteriormente pelo autor, como a mulher transfigurada (Morella, de 1835), o duplo (Um conto das montanhas Fragosas, de 1844), e outros registros literários, como o freak O rei peste (1835), o embuste jornalístico em A balela do balão (1844) e a comédia de erros O anjo do bizarro (1844). Em 20 anos de carreira turbulenta, com privações e vícios, Poe compôs uma obra que continua atual e criativa, mesmo em seu lado B. Seus aventureiros, detetives e marinheiros ainda nos levam às fronteiras entre a razão e o místico, o realismo e o fantástico, o clássico e o romântico. Voltamos sempre em segurança dessas viagens, mas transformados.

Contos obscuros
Edgar Allan Poe
Org.: Braulio Tavares
Trad.: Braulio Tavares, Oscar Mendes e Milton Amado
Casa da Palavra
216 págs.
Edgar Allan Poe
Nasceu em Boston (EUA), em 19 de janeiro de 1809. Seus pais eram atores e morreram ainda jovens, na penúria. Edgar foi adotado por um casal rico e teve boa educação na Inglaterra. Era inteligente, mas genioso e intempestivo, o que levou a ser expulso de universidades. Era, ainda, alcoólatra, viciado em jogos e cultivava uma vida boêmia. Depois de uma breve e fracassada carreira militar, se tornou poeta e rompeu relações com o pai adotivo. A partir dos anos 1830, conseguiu alguma notoriedade escrevendo em jornais e atuando como editor. Aos 27 anos, casou-se com a prima de 13. Ela morreu em 1847, deixando Poe arrasado. No ano seguinte, publicou O corvo, seu mais conhecido poema. Foi encontrado em frente a uma taverna, delirando e aos farrapos, e morreu no hospital, aos 39 anos de idade. Mestre do conto, criou o gênero policial, foi precursor da ficção científica e inovou o terror. Suas principais histórias foram reunidas em Tales of the grotesque and arabesque, publicado em 1840.
José Renato Salatiel

é jornalista e professor universitário.

Rascunho