O laboratório do Diabo

Ana Luisa Escorel retoma um dos principais personagens da tradição religiosa judaico-cristã ao criar uma alegoria do Brasil recente
Ana Luisa Escorel, autora de “O fastio do diabo” Foto: Monica Ramalho
01/09/2023

O Brasil é um laboratório hiperequipado do inferno. Nele, experimentos envolvendo dinheiro, estímulo ao egoísmo e impulso à formação de líderes medíocres, para citar exemplos, costumam ser bem exitosos a depender da qualidade dos sujeitos envolvidos nessa estratégia. A lista de possibilidades de experimentação é bem mais longa. Se duvidar, pode ser aplicada sem margem de erro em outros países e até fazer escola em outros continentes. A tragédia brasileira, seus quinhentos anos e não apenas os últimos, é a alegoria do mais recente livro de Ana Luisa Escorel, O fastio do diabo, ficção com foco em um dos personagens mais recorrentes da tradição judaico-cristã, o Diabo.

Cabe a um enviado especial a tarefa de relatar ao “príncipe das trevas”, um dos modos como ele é chamado, o que acontece acima e sobretudo abaixo da linha do Equador e que pode enchê-lo de orgulho, afinal sua doutrina segue dando resultados, mesmo que sua imagem já não seja a mesma da modernidade. Ao utilizar um dos arquétipos mais recorrentes das artes em geral no ocidente, o trabalho detalhado da escrita, com diálogos e descrições precisas, junto à ironia inescapável ao abordar o Brasil recente, o livro se instaura na lista de romances que contam hoje e no futuro os descalabros políticos que interessadamente tornaram possível um governo de extrema direita em 2019. E isso é um dos pontos fortes que encorajam a leitura da narrativa.

Como bem nos lembra Terry Eagleton em Marxismo e crítica literária, obra publicada nos anos 1970, mas que ainda merece ser convocada, “a arte manifesta diferentes estágios de desenvolvimento daquilo que Hegel chama de Espírito do Mundo, a Ideia e o Absoluto; esse é o conteúdo da arte, que se empenha sucessivamente para se incorporar na forma artística”. Se o conteúdo define a forma literária, neste caso, esta traveste-se em um dos gêneros aristotélicos mais longevos, a sátira, ajudando o leitor a se distanciar minimamente da história vivida ao colocá-la sobre um palco imaginário. Observar o Brasil como quem se posiciona em uma plateia realça o que muitas vezes levamos tempo para enxergar, dada a miopia proporcionada pela falta de distanciamento.

A verdade é que, para quem tem buscado refletir sobre a história recente do país e a revisão do saldo da colonização, dos séculos de escravização e da economia pós-abolição, a ficção serve como roteiro. A autora o faz a partir de uma estrutura dividida em três partes, O fastio do Diabo, Culpa e castigo e Dando conta do recado, todas articuladas a partir de um enredo bastante simples para o grau de complexidade que ele espera gerar — o Diabo anda em baixa e um dos seus súditos resolve animá-lo, mostrando o sucesso do seu empreendimento em um lugar peculiar segundo sua avaliação, o Brasil. Como faz as estruturas narrativas clássicas, esta traz um número enxuto de personagens bem posicionados, cada qual para pôr em marcha o muthos. Neste caso, sem heróis e com um suposto vilão que, na verdade, são muitos em um ou que foi mudando de pele ao sabor do tempo.

Variações e pautas prediletas
Ainda que possamos nos referir ao Diabo como uma figura única, capaz de provocar o declínio moral dos sujeitos e com o qual trava-se uma batalha desde a fundação do cristianismo, vale a pena lembrar que suas características foram alteradas ao longo da história, muito em função dos usos que lhe foram atribuídos.

Enquanto entre os séculos 12 e 14 na Europa Ocidental, o demônio tinha quase o mesmo poder que o Deus dos cristãos, associado a uma postura maligna, na cultura popular e para muitas autoridades religiosas medievais, ele tinha uma imagem oposta, de fracassado e impotente diante de Deus. Na Idade Média, o diabo não era tão feio quanto se pinta, evocando o provérbio, chegando a ser ridicularizado socialmente. A partir das Cruzadas e das novas rotas comerciais, a autoridade cristã é questionada e é nesta hora que a Igreja Católica investe na figura do Diabo como o principal inimigo de Deus, cabendo a ela proteger os humanos de sua influência e poder.

É claro que o desenvolvimento dessa imagem é muito mais complexo e exige bem mais que uma resenha, um ensaio. No entanto, para leitura da obra de Ana Luisa Escorel, interessa realçar que alguns elementos forjam a criação do Diabo e suas metamorfoses ao longo da história, o que também implica nos modos como países feito o Brasil, colonizado por uma nação europeia, desenvolveram alguns dos seus mecanismos de controle social. Ou seja, como a representação do Diabo atravessa a história e é um determinante dispositivo para alguns grupos sociais. E é claro, não estamos falando apenas de passado, em algum capítulo perdido desde a ocupação dos portugueses. Basta observarmos como as igrejas neopentecostais têm atuado no cenário político recente e na cultura brasileira de modo mais amplo, construindo um verdadeiro exército para o qual vencer a guerra santa é o último estágio da representação política.

Vejamos que nos momentos de crise social e política, o Diabo é acionado pelo medo e há sempre quem apareça (pastores, padres e até uma ministra de Estado) para tentar frear o seu avanço, associando-o ao oponente, nessa altura já tratado como inimigo, jogando por terra qualquer possibilidade de diálogo, imprescindível para a política. Essa imagem do Diabo que é capaz de induzir pactos e causar possessão tem sido usada fortemente como instrumento político da extrema direita.

As variações do Diabo deslizaram também para a literatura, de modo que cada um que se aventurou pela representação dessa personagem não caiu em repetição. Pelo contrário, deu-lhe uma nova face, confirmando a proposição aristotélica de que o muthos tem como propósito contar o percurso do sujeito representado, narrar as ações e não os fatos. E aqui a lista seria longa e majoritariamente masculina, mas basta dizer que prestaram tributo ao Diabo autores como Dante Alighieri, Milton, Thomas Mann, Goethe, e, no cenário escolhido por Escorel, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Ariano Suassuna.

No Brasil recente e no caso proposto por Escorel, os enviados do Diabo têm suas pautas de predileção, como a do meio ambiente, que não é nova, mas exatamente por ser recorrente, merece menção. Em dado trecho, um dos emissários explica:

(…) é importante que o senhor e todos os presentes saibam o quanto tenho estimulado a destruição da maior floresta tropical do mundo, nativa lá de onde eu estava, na qual consegui promover tantas e tais agressões que, em poucos anos, no lugar dela pretendo possa se estender uma aridíssima savana.

Ao que o mestre respondeu em tom de torcida.

Destruição do meio ambiente, manutenção da violência e corrupção são alguns dos assuntos que de modo evidente situam o livro no seu tempo. Arrisco dizer que, no futuro, mesmo lido sem notas explicativas ou qualquer comentário adicional ao livro, O fastio será capaz de contar aos leitores o que se passou no país. Aí reside a força dos objetos artísticos, não porque necessariamente precisam definir um tema de alinhamento com a história, mas porque são atravessados pela história. Nesse ponto, considerar que toda obra literária é histórica e carrega em sua estrutura uma certa consciência do tempo não é redundância, é na verdade um alívio diante da constatação de que escritoras e artistas fizeram o trabalho de registro.

Na fase final da obra, a escalada do exército do mal culmina na decisão do mestre ver com os próprios olhos o que se passa no país, porque as mesmas energias do mal, quando usadas em excesso, são as que disparam a reação contrária, como por exemplo a resistência às políticas nefastas da extrema direita. Nesse gesto, assim como em muito outros, vê-se a articulação cuidadosa e organizada para se fazer do país um abismo. Na dedicatória da obra, a autora dedica o livro à Zulmira Ribeiro Tavares, leitora de uma versão curta do texto e que encorajou Ana Luisa a ampliá-lo. Falecida em 2018, Zulmira não viu a versão final, nem os anos do último governo. Já os leitores ficaram com a sorte deste volume, que além de informar, cria conexões com outros textos, autores e tempos onde o mal, como missão dos seus protagonistas, é sempre uma possibilidade à mão.

O fastio do diabo
Ana Luisa Escorel
Ouro sobre Azul
185 págs.
Ana Luisa Escorel
Nasceu em São Paulo (SP), em 1944, e vive no Rio de Janeiro (RJ) desde 1964. É autora de Anel de vidro, Prêmio São Paulo de Literatura na categoria melhor romance, e de A formação de Antonio Candido.
Edma de Góis

É jornalista e doutora em Literatura pela UnB.

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