O jugo da utopia

“Anna, a voz da Rússia”, de Lauro Machado Coelho, é fundamental para se conhecer uma poeta imprescindível
Lauro Machado Coelho, autor de “Anna, a voz da Rússia”
01/11/2008

A história de Anna, a voz da Rússia vida e obra de Anna Akhmátova, de Lauro Machado Coelho, principia, para mim, muito antes de maio de 2008, data da primeira edição dessa obra que, exatamente como todas as grandes biografias, é um gesto de amor, uma demorada reverência que o biógrafo faz diante do biografado — sem, contudo, abdicar do espírito crítico.

Volto no tempo dezessete anos, quando ainda residia no interior paulista. Por uma dessas situações típicas dos países subdesenvolvidos, o único livreiro da cidade demorou quase trinta dias para conseguir um exemplar de Anna Akhmátova — poesia (1912-1964), da editora L&PM. O volume, também organizado e traduzido por Lauro Machado Coelho, foi minha introdução ao mundo de Akhmátova, em grande parte oposto ao de Maiakóvski e Khlebinikóv, endeusados pela troika concretista e divulgados no Brasil como se fossem os principais poetas da Rússia.

Hoje, passados quase vinte anos, a literatura russa já não é mais uma estranha para nós. E graças ao trabalho de alguns poucos bons tradutores, sabemos que o espectro de vozes daquele país esconde relíquias mais complexas, mais ricas do que a voz sincopada de Maiakóvski. Mas trata-se de uma lenta descoberta, sempre inacabada, à qual Lauro Machado Coelho deu sua primeira contribuição naquele distante 1991, quando, dentre outras conseqüências, certamente de maior importância, empolgou este voraz e solitário leitor, perdido em uma cidadezinha medíocre.

Agora, Machado Coelho amplia a dose de elucidação e ensinamento, publicando o resultado de uma vida dedicada a Anna Akhmátova, a mais injustiçada das poetas, a mais perseguida — e também a mais resistente, a mais tenaz. Abrir o belo volume da editora Algol representou não só uma volta ao passado, não apenas um retorno ao quarto de pé-direito alto e cortinas envelhecidas que eu ocupava na casa de minha avó paterna, no fim do longo corredor sempre na penumbra, mas também um recomeço: estou de pé, no centro do cômodo, retiro da estante a brochura de cor indecisa da editora L&PM e, subitamente, descubro que minha leitura permaneceu incompleta durante todos estes anos — e que o pequeno livro tem novos capítulos a me oferecer.

O Paraíso
Dentre os diversos méritos de Anna, a voz da Rússia, quero salientar dois. O primeiro se refere ao trabalho de contextualização dos principais personagens da literatura russa moderna. Para o leitor, saber em que circunstâncias os escritores viviam, conhecer suas relações e seus objetivos estéticos pode iluminar os estilos, os temas e as opções políticas. Essa gama de informações liberta o leitor do estabelecido pelo senso comum, incluindo o de considerar Maiakóvski o gênio supremo de um período no qual acmeístas, simbolistas e futuristas lutavam entre si: alguns, de maneira semelhante ao que ocorre hoje no Brasil, propugnavam pelo abandono sistemático de todas as tradições; outros, mais sábios, alertavam para o fato de que “não se poderia conseguir verdadeiro desenvolvimento ignorando-se a tradição histórica e cultural”.

Quanto ao segundo mérito, ele está inserido nesse minucioso trabalho de contextualização. Lauro Machado Coelho destrinça a Revolução de 1917 e os crimes cometidos em nome da utopia comunista, mostrando-nos um Estado criminoso, excitado pelo ímpeto de transformar uma ideologia em religião — e cidadãos em cegos devotos.

De fato, a ilusão romântica da igualdade absoluta não demorou a mostrar sua verdadeira face, começando pelo líder de 1917:

A impressão, por muito tempo arraigada no Ocidente, de que Liênin [grafia do autor] foi um idealista, cujas boas intenções foram subvertidas pela chegada de Stálin ao poder, não resiste, hoje, ao exame dos acontecimentos daquela época. Foi ele quem montou a infra-estrutura de uma polícia política […] responsável pela torturas e pressões contra os oposicionistas que superaram em brutalidade a Okránna dos tempos da monarquia. E toda a violência do período conhecido como o do Terror Vermelho aconteceu com o seu conhecimento e autorização.

Esse desnudamento corrobora, aliás, outro ótimo livro, recém-lançado: A guerra particular de Lênin (Record), de Lesley Chamberlain, no qual a escritora narra de que maneira o cabeça dos bolcheviques se encarregou pessoalmente da deportação coletiva de intelectuais, transformando o sonho platônico do banimento ideológico em realidade.

Destruir pessoas em nome da construção do Paraíso na Terra tornou-se a regra de um regime totalitário que não deixou, inclusive, de devorar seus próprios militantes. O poeta Aleksandr Blók, por exemplo, proclamava que a “revolução iminente é um apocalipse necessário, para purificar a Rússia de toda corrupção e fazer nascer um mundo de amor e espiritualidade”; mas faleceu prematuramente, aos 41 anos, pois o Partido Comunista, temendo que ele fizesse críticas ao regime, recusou-lhe tratamento de saúde em uma clínica da Finlândia.

Esse verdadeiro estupro social, uma revolução que não apenas tentou modificar o país à força, mas também “subverter as bases espirituais e morais” da sociedade russa, investiria, sem piedade e com inexcedível cinismo, contra Anna Akhmátova.

Ela sofre, desde o início, a perseguição dos críticos pagos pelo Estado: é acusada de “desenvolver nas jovens operárias o sentimento neurótico da mártir submissa”. Mikhaíl Kuzmín, que a elogiara no passado, depois da revolução afirma que sua poesia “estava superada”. Bóris Éikhenbaum, um dos vários formalistas que fizeram escola, inclusive no Brasil, mostra bem a face nada literária e extremamente coerciva da crítica obediente à censura comunista: “Podemos perceber [em Anna Akhmátova] a dupla imagem paradoxal ou, no mínimo, contraditória, da heroína: metade prostituta, ardendo de paixão, e metade freira, orando a Deus e pedindo que a perdoe”. O próprio Maiakóvski, seu amigo, acabou por trair Akhmátova, mencionando-a “como um nome que precisa ser expurgado da poesia contemporânea”, pois só os futuristas podiam expressar “a rica harmonia das novas idéias e emoções”. Outros diriam que ela não passava de “uma poetisa da aristocracia, que perdeu a sua antiga função na sociedade feudal, e não encontrou uma nova na sociedade socialista”. E o perseguidor-mor do stalinismo, Andrêi Jdánov, decretaria: Anna Akhmátova é “uma das representantes do entulho reacionário”; “um dos exemplos padrão de uma poesia de salão vazia e aristocrática”; e copiando Éikhenbaum: “uma mulher que se move entre a alcova e o genuflexório”.

Hoje, esses comentários talvez pareçam risíveis, grotescos. Mas, naquela época, eram decretos que poderiam condenar à morte escritores, músicos e artistas plásticos. Lauro Machado Coelho relata, dentre vários casos, o de Borís Andrêievitch Pilniák — cujo livro, publicado em 1929, na Alemanha, “criticava a desintegração dos ideais socialistas”: o escritor “foi humilhado de todas as maneiras, forçado a fazer abjetos pedidos públicos de desculpas, e foi finalmente preso e executado” — e o de Maiakóvski, que, “encarado como um anacronismo e, incapaz de suportar os expurgos que tinha ajudado a perpetrar contra os outros, cometeria suicídio”.

A Revolução Russa, de maneira semelhante a todos os processos revolucionários da história, representou a institucionalização do sadismo. No auge do terror stalinista, Bukhárin proclamava: “Existe algo de grandioso e ousado na idéia de um expurgo geral”. Pouco tempo depois, ele também seria executado.

O banimento de Anna Akhmátova da literatura russa não recebeu a chancela oficial, mas permitiu uma perseguição vária. Foram anos seguidos escrevendo sem publicar — ou escrevendo, memorizando os versos e queimando-os em seguida. E para conseguir burlar a censura, ela teve de usar artifícios, submeter-se a recursos estilísticos como o de aludir “ao mito ou à História como uma forma indireta de se expressar”. Isolada da comunidade literária, vendo os amigos, o marido, o filho e os amantes serem punidos, torturados e presos, quando não executados, Anna ainda teve de enfrentar os cortes da pensão paga pelo Estado, os meses de espera à frente da penitenciária de Leningrado — mendigando informações sobre o filho —, os despejos e o pavor de, a qualquer momento, também ser encarcerada. A somatização não demorou: crises reincidentes de tuberculose e angina debilitaram sua saúde.

Lauro Machado Coelho sintetiza bem as opções que restaram à intelectualidade russa: “poucos eram os que protestavam, pois a escravidão ainda era preferível ao túmulo”. A própria Akhmátova, além dos pedidos de clemência dirigidos a Stálin, foi obrigada a escrever poemas patrióticos, dignos dos piores poetastros. Sem dúvida, alcançar o éden pressupõe o esmagamento das consciências.

Por quê?
Mas Anna, a voz da Rússia é também o estudo meticuloso da personalidade e da obra de uma mulher aberta ao amor, capaz de um “sim” irrepreensível à existência, mesmo quando diante das piores angústias, das mais terríveis dificuldades. “Esta é a minha vida”, diz Akhmátova, “assim é a minha biografia. Quem pode recusar viver a própria vida?”

O biógrafo enfrenta todos os problemas, incluindo a questão do relacionamento de Anna e seu filho; cria um diálogo inspirador entre vida e poesia; e nos oferece um exaustivo trabalho de tradução. Pode-se desejar mais de um livro? No caso de Anna, a voz da Rússia, sim. Ainda é preciso apontar a ampla e atualizada bibliografia, as citações e notas de rodapé — que se transformam, nas mãos de Lauro Machado Coelho, em ferramentas de um estilista — e o CD com poemas declamados pela própria Akhmátova (em português, por Beatriz Segall). E ainda, finalizando, uma refinada editoração.

“Diga-me”, perguntou, certa vez, Anna Akhmátova, “por que o meu grande país, que expulsou Hitler, com toda a sua tecnologia, considerou necessário passar como um trator sobre o peito de uma mulher velha e doente?” Sem jamais conseguir uma resposta, amando a Rússia, ela dedicou sua vida à poesia.

Poema 5

Há dezessete meses grito,
chamando-te de volta para casa.
Já me atirei aos pés de teu carrasco.
És meu filho e meu terror.
As coisas se confundem para sempre
e não consigo mais distinguir, agora,
quem a fera, quem o homem,
e quanto terei de esperar até a tua execução.
Só o que me resta são flores empoeiradas
E o tilintar do turíbulo e pegadas
Que levam de lugar nenhum a parte alguma.
E bem nos olhos me olha,
com a ameaça de uma morte próxima,
uma estrela enorme.

Do ciclo de poemas Réquiem (1935-1940)

Anna, a voz da Rússia — vida e obra de Anna Akhmátova
Lauro Machado Coelho
Algol
512 págs.
Lauro Machado Coelho
Jornalista. Atualmente, é crítico musical do Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo.Também colabora com as revistas Concerto e Bravo!. Entre 1963 e 1973, foi professor de literatura francesa em Belo Horizonte. Na década de 90, trabalhou no Theatro Municipal de São Paulo.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho