O jogo do mal-estar

"Vertigem", de W. G. Sebald, dialoga com a própria literatura e joga o leitor numa espécie de duelo pelo sentido de sua jornada
W. G. Sebald por Ramon Muniz
01/01/2009

Vertigem, obra recentemente lançada no Brasil, marcou a estréia de W. G. Sebald na ficção no início da década de 1990. À época, período em que o texto literário ainda era marcado pelo grande romance, o livro chamou a atenção tanto pela trajetória de Sebald, um intelectual que se entregava ao universo da literatura, quanto pelo estilo, marcadamente original quando se notam as características do texto do autor. Outro elemento não menos importante é, sem dúvida, o fato de o livro ter como tema um caminho traçado pelo autor não apenas pelos lugares e personagens apresentados, mas, principalmente, pelo fato de o literato ilustrar sua narrativa com diálogos com a própria literatura, como que para fazer referência ou mesmo homenagens aos escritores que, de alguma forma, o influenciaram nesta jornada. A empreitada é pertinente, muito embora, conforme se percebe, o texto muitas vezes fique por demais intelectualizado — o que não necessariamente é um problema. Voltaremos a tratar disso adiante.

Antes, porém, é fundamental discorrer um pouco sobre a maneira como o autor se propõe a conduzir o leitor por essas histórias. Eis o ponto: ao que parece, o objetivo de Sebald é, certamente, contar uma história. Entretanto, como sói aos intelectuais, ele não se interessa em fazer uso do estilo mais comum das narrativas, com apresentação do enredo, dos personagens, do plot, da problematização do tema. Nada disso. Sebald joga com o leitor uma espécie de duelo pelo sentido de sua jornada. Assim, mesmo que de início o escritor apresente as memórias de personagens distintos, alheios às narrativas oficiais, logo se nota que a proposta do autor é amarrar seu próprio relato a esses personagens, de maneira a estabelecer um diálogo possível entre histórias improváveis, seja em virtude de sua natureza, seja em virtude de seus protagonistas.

Nesse sentido, é somente aos poucos que o leitor descobre essas artimanhas. Pois, se no início tem-se a impressão de se ler mais um romance calcado nos detalhes da história oficial, com o avanço das páginas, observa-se uma narrativa que transita entre os gêneros. Por vezes, um diário de viagens, com anotações e minúcias técnicas sobre a jornada e os detalhes de cada local. Em outras passagens, tem-se a impressão de que W. G. Sebald propõe efetivamente uma conversa com outros autores, muito embora isso esteja mais sugerido do que explicitado, ao contrário do que se lê na apresentação do romance (na orelha e na contracapa do livro). A propósito, se por um lado tal prefácio funciona para esclarecer e aliviar o leitor mais afoito pelas definições e limites mais visíveis, por outro, é certo dizer que boa parte da surpresa se estraga com tal evidência, ainda que esta não seja a principal característica da obra.

Jogo de cena
E o que marca, então, este Vertigem, de W. G. Sebald? Para além da mistura de gêneros em uma única narrativa, há, também, o fato de o livro contar com alguns vaticínios para aqueles que confiam na memória. Em determinado momento, o autor assinala: “mesmo quando a pessoa dispõe de lembranças cujas imagens são particularmente vivas, nelas pouco se pode confiar”. E adiante, completa, também utilizando a voz de uma de suas fontes: “Não se deve comprar nenhuma gravura de vistas e paisagens contempladas durante viagens. Sim, porque uma gravura logo ocuparia todo o espaço da memória que tivéssemos de algo — pode-se mesmo dizer que ela a destruiria”. Grosso modo, é possível interpretar essas alusões do autor como uma espécie de exercício de desconfiança, uma provocação, acerca de seu próprio livro, uma vez que o narrador, também ele, depende de sua memória assim como faz uso de certas imagens para construir sua narrativa. Considerando essas ações como partes constituintes do todo, infere-se que o Sebald joga algo no moinho para permanecer inclassificável, posto que seu interesse como literato é justamente abstrair o leitor com uma narrativa que faz jogo de cena entre o que é fato e o que é ficção, tornando o segundo tão crível como o primeiro; relativizando, portanto, que os fatos dependem de um exercício de imaginação que não está isenta de forjar a si mesma, como se vê na ficção.

Para dar cabo a esse exercício narrativo, e aqui voltamos à proposta mais intelectualizada, o autor lança mão de elementos que, dependendo da perspectiva, tem um caráter mais escolástico do que literário. Casanova, Stendhal e Kafka têm seus roteiros de viagens entrecortados com o de Sebald, em uma espécie de co-autoria nas jornadas por Viena, Itália e na Alemanha. É aqui que o autor ajuda ao leitor a descobrir qual é o significado de tantas andanças. A procura por um lugar? Ou a identidade perdida em meio a tanta diversidade? É curioso, aliás, o significado que se pode atribuir ao livro. Os anos 1990 prometiam mais integração e um ajuste de contas com o passado, sobretudo pela violência sofrida por aqueles que tiveram de se deslocar. E entre uma e outra viagem, há um ponto que acentua o relato. Nas palavras do narrador:

começou a brotar em mim uma vaga apreensão, que se apresentava como uma sensação de mal-estar e vertigem. Os contornos das imagens que eu procurava fixar dissolviam-se, e os pensamentos se desintegravam antes que eu os apreendesse totalmente.

À medida que o leitor acompanha as passagens memoriais de Sebald, nota-se que as sensações de vertigem e mal-estar seguem o narrador de forma intermitente, mas sempre associadas às suas viagens. É um livro de quase-memória, porém é definitivamente mais que um romance, tendo em vista o contorno sentimental que Sebald dá ao relatar suas experiências como viajante incidental. Entretanto, mesmo o leitor tragado por essas histórias há de notar a ausência de alguma tensão narrativa, muito porque o autor sugere mais do que afirma. E isso talvez esteja relacionado ao fato de também a literatura estar mais dependente das imagens. Nesse caso, a sugestão não cai bem a quem espera asserção, definição; objetividade em vez da subjetividade.

Esses elementos não devem ser desprezados na avaliação da literatura feita por W. G. Sebald. Esta é a primeira ficção, que, certamente, foi depurada em obras como Austerlitz e Os anéis de Saturno. E os detalhes que, em certa medida, causam estranhamento ao leitor de primeira viagem não podem ser encarados apenas como mal-estar, já que, assim como o frio pode ser uma delicada forma de calor, também a vertigem pode ser uma sensação prazerosa, esteticamente agradável e intelectualmente satisfatória.

Vertigem
W. G. Sebald
Trad.: José Marcos Mariani de Macedo
Companhia das Letras
200 págs.
Austerlitz
W. G. Sebald
Trad.: José Marcos Mariani de Macedo
Companhia das Letras
288 págs.
W. G. Sebald
Nascido na Alemanha em 1944, W. G. Sebald estudou literatura em Freiburg e lecionou em Manchester, na Inglaterra. Depois, transferiu-se para a Universidade de East Anglia, onde ficou até sua morte em 2001. Para além de sua carreira como scholar, tornou-se conhecido pelos seus livros de ficção, que incluem: Austerlitz, Os emigrantes e Os anéis de Saturno.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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