Jorge Amado tinha o hábito de dizer que parara de ler romances policiais depois que deixou de ser surpreendido pelos autores. Sequer carecia chegar à metade do livro para saber quem era o assassino. E nunca errava em sua conclusão.
A verdade é que o romance policial tradicional, clássico, vai abastecendo o leitor com pistas que, percebidas e registradas, quase sempre levam àquilo que tanto desgostava Jorge Amado. Nesta brincadeira, os autores buscam driblar os leitores fazendo-os desconfiar das dicas oferecidas para se chegar antecipadamente ao autor do crime, e quase sempre conseguem se sair bem. No entanto, como ensina P. D. James, “se a história de detetive deve ser mais do que um enigma engenhoso, o assassino tem de ser mais do que um estereótipo, um boneco recortado no papelão a ser derrubado no último capítulo”.
Benjamin Black — ou John Banville, como queiram — nos oferece em O Cisne de Prata mais que um crime a ser solucionado. Dá ao leitor, por exemplo, um forte cabedal de poesia e a visão clara de uma cidade, Dublin, já por natureza eternamente mergulhada numa atmosfera noir.
Tudo começa quando o patologista Garret Quirke recebe de seu antigo colega de universidade Billy Hunt um inusitado pedido: Billy pede que Garret evite fazer a autópsia em sua mulher, Deirdre, ou Laura Swan, encontrada morta e completamente nua na costa da Ilha Dalkey. Tudo aponta para um suicídio, e o zeloso marido não gostaria de ver o caso entregue à sanha sensacionalista da imprensa e dos mexeriqueiros.
O argumento, no entanto, não comove Quirke — e daí tudo decorre.
Este enredo inicial serve de ponto de partida para Benjamin Black contar de uma sociedade ainda amarrada a preconceitos e ditada pelo status social. Billy, que não terminara o curso de medicina e vivia como propagandista farmacêutico, sente-se frustrado e, de certa forma, inferiorizado. Deirdre, vinda da camada mais pobre da cidade, era balconista de farmácia quando o conheceu. E assim se manteve até encontrar, pelas mãos do Dr. Kreutz, um estranho curandeiro, o sedutor oportunista Leslie White. Com ele, Deirdre monta um salão de beleza, o Cisne de Prata, freqüentado por Phoebe, a filha de Quirke criada por um casal de tios.
Dubiedade
Como na Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade, as peças vão sendo encaixadas de maneira acidental. No entanto, tudo deságua no corpo nu de Deirdre. Não há claramente a descrição da época em que se passa a trama, mas existem pistas a apontar para o pós-guerra, quando a chamada revolução sexual estava nos seus primórdios e as questões da sensualidade desencadeavam prazeres e rancores. E é neste ambiente dúbio que caminham os personagens desestruturados de Black.
Todos nesta quadrilha têm pecados e virtudes. Até mesmo Leslie White, sempre mostrado como beberrão, irresponsável e viciado em morfina. Além do caráter sedutor, ele traz o mérito de analisar com precisão o passo seguinte de cada uma das peças do tabuleiro. Esta autoconfiança, no entanto, é que marca seu fracasso.
A dubiedade, enfim, pode ser a palavra chave para dizer deste romance. Como no caso do caráter dos personagens, lemos trechos que se perdem entre a poesia e a rudeza. Ao mesmo tempo que descreve a delicadeza de um encontro amoroso, Black se esmera em falar das agressões sofridas por algumas amantes. Ou ainda, se numa página surge a descrição de uma cidade, apesar de fria e tensa, bela e agradável, logo na seguinte está a cena de um assassinato descrito com todos os requintes macabros do sangue que escorre de uma cabeça partida.
Este é o jogo que de fato joga o autor. Trabalhar com estruturas opostas e até conflitantes foi, talvez, a maneira que melhor encontrou para fortalecer a estrutura até certo ponto frágil de sua trama. Jorge Amado com certeza não precisaria do segundo capítulo para saber quem de fato é o vilão da história, mas talvez agradasse ao baiano não apenas os pontos picantes do romance, como a análise fria e recheada de humor sarcástico que o autor faz de uma sociedade que tenta jogar para o fundo das gavetas a hipócrita podridão que a envolve.
Múltipla leitura
Ao que parece, Benjamin Black se escuda num enredo policial para melhor enxergar os verdadeiros horrores que fundaram a formação do dublinense. Politicamente, o país se afastou da Inglaterra, mas ainda resiste em seu espírito, segundo as pistas do autor de O Cisne de Prata, todas as dores sociais de um mundo criado com desigualdade e preconceito.
Com o tempo, os autores de romances policiais aprenderam que precisavam oferecer algo além de um crime e da engenhosidade de sua solução. No caso de John Banville, mesmo trabalhando com as estruturas clássicas do gênero, a intenção primeira é divertir. A partir de uma prosa rica e agradável, mesmo falando de misérias humanas, consegue dar grandes momentos de prazer ao leitor. E ainda oferece um honesto retrato do mundo irlandês, aqui despido de glamour.
Um romance, enfim, que permite várias leituras. Pode ser policial, social ou simplesmente um excelente divertimento. Cabe ao leitor escolher em qual vereda quer andar.