Dias atrás, na página da Livraria Cultura na internet, havia duas solitárias opiniões de leitores sobre o mais recente livro do português António Lobo Antunes lançado no Brasil, Ontem não te vi em Babilónia, cuja publicação original foi em 2006. Uma delas: “Excelente… Ainda em estado de êxtase… Ainda lendo… Não quero parar… é muito bom…” A outra: “Horrível. Livro chatíssimo, desanimador, pior livro que já li…” A despeito de ser uma amostra ínfima (ao contrário do exagero das reticências, uma praga dos tempos modernos que a era digital só fez espalhar, agora também em versões tamanho família que competem pelo maior número de pontos além dos três universais e mais que suficientes), o antagonismo dos comentários reflete à perfeição uma realidade: ou se morre de amores pela obra, ou se a detesta. Não há meio-termo possível.
Ou sim, talvez haja algum, se levarmos em conta que a obra de arte verdadeira permite mais de um modo de fruição. O mais óbvio passa por valores intrínsecos à condição de arte, que podem tocar ou não a sensibilidade de quem a frui, num plano essencialmente emocional. Esta é a gênese dos comentários referidos acima. Outro, um pouco mais sutil, parte da avaliação do esforço intelectual que produziu tal peça e cujo reconhecimento pode também sensibilizar. Ambos os caminhos evidentemente se entrecruzam, e minha própria experiência com Ontem não te vi em Babilónia é um bom exemplo de como isso acontece. Antes de avançar nesta direção, contudo, convém apresentar a obra que divide tanto assim as opiniões.
Numa noite insone, vários personagens remoem lembranças e tragédias pessoais, enquanto o relógio segue lenta e inescapavelmente marcando as horas. As narrativas, todas em primeira pessoa, são construídas em forma de fluxo de consciência, mesclando acontecimentos antigos e recentes, dores, frustrações e meros devaneios. Três dessas “vozes” são recorrentes, fato que as eleva à condição de protagonistas: Ana Emília, presa ao fantasma do suicídio da filha, aos 15 anos de idade, uma cena cuja descrição, fragmentada e filtrada pela dor da mãe, responde por alguns dos mais belos momentos do livro; Alice, ex-enfermeira que teve uma infância difícil e é casada com um homem truculento e circunspecto; e por fim Osvaldo, o tal marido, policial aposentado que torturava e matava durante a ditadura salazarista e agora, acordado no quarto contíguo ao da mulher, lembra da mãe que perdeu ainda criança. Os personagens não dialogam, não interagem, e os fios que os unem vão sendo tramados sutilmente a partir de suas divagações.
Confusa sonolência
O livro se estrutura em seis partes, nomeadas pelas horas da madrugada: Meia-noite, Uma hora da manhã, e assim por diante. Cada uma dessas partes foi subdividida em quatro capítulos, alternando-se os narradores. À medida que a noite avança, o discurso vai ficando cada vez mais confuso, imitando as distorções provocadas pela sonolência e cansaço dos personagens.
Todos os capítulos apresentam a mesma e curiosa formatação. À primeira vista, ela parece seguir o padrão convencional, com recuos de parágrafo, travessões indicativos de diálogo, vírgulas e pontos de interrogação. Mas logo se descobre que só o primeiro parágrafo de cada capítulo inicia com letra maiúscula, enquanto apenas o último encerra com um ponto; todos os demais abrem com letra minúscula e terminam sem nada. Pedaços de diálogos e citações não fazem cerimônia para surgir a qualquer momento, e a vírgula só existe para que o leitor possa eventualmente respirar. O formato se distancia assim daquele idealizado por Joyce, que dispensou a pontuação e os parágrafos para representar o fluxo de pensamento nas célebres páginas finais de seu Ulisses. Além da intenção de criar um estilo próprio, Lobo Antunes deve ter pensado também na dificuldade que esse tipo de leitura impõe ao leitor: afinal, na obra-prima de Joyce são pouco mais de cinqüenta páginas — o que já é uma enormidade —, mas em Ontem não te vi…, com suas 440 páginas, o mesmo modelo poderia induzir algum desavisado a cortar os pulsos. Além de menos perigosa, uma disposição gráfica mais aberta e arejada favorece ainda a dinâmica do texto, livrando-o em parte do tom monocórdio decorrente da ausência de pontuação.
A edição brasileira mantém a ortografia original portuguesa, o que acaba produzindo uma prova eloqüente do despropósito do tão badalado acordo ortográfico, que nada padroniza ou unifica.
Próximo da poesia
Durante toda a leitura, não deixei de me encantar com a qualidade da prosa e com a beleza de algumas passagens que a levam bem próximo da poesia. Ao mesmo tempo, me exasperava com a trama que não aparecia, ou vinha demais fragmentada, um suplício para quem não consegue ainda abrir mão de uma história como manda o figurino, com a velha e boa tríade início, meio e fim. Enquanto meu intelecto se satisfazia plenamente, no íntimo um sentimento talvez mais voraz e primitivo reclamava algo que o livro não tinha condições de me dar.
Como não sou propriamente um neófito em literatura e já aprendi a lidar com textos que se afastam bastante do convencional, a dificuldade com uma obra tão rica e bem orquestrada foi motivo de certa apreensão até conseguir deslindar o que se passava. Quando enfim consegui, pude compreender também a engenhosidade do que propõe Lobo Antunes: um belo e instigante jogo de simulação.
Só quem já provou uma noite inteira sem conseguir conciliar o sono pode avaliar o tédio, o desespero, o cansaço que tal situação provoca. Atravessei os capítulos com o mesmo enfado que sofre um insone à espera de que o velho relógio da sala anuncie a próxima hora. Tentei seguir os devaneios dos personagens até o ponto de não saber mais quem estava devaneando nem o quê. Às vezes, encontrava uma trilha segura, que logo se desmanchava à minha frente para nunca mais aparecer, enquanto topava a todo instante com elementos soltos que iam e vinham e nunca se encaixavam. Nenhum dos narradores é confiável, nem se poderia esperar outra coisa em vista de seu estado. Em suma, um desvario planejado nos mínimos detalhes para que o leitor consiga experimentar em tempo real a mesma sensação de personagens em estado de semiconsciência.
Um jogo assim ambicioso e arriscado tinha tudo para não funcionar. Dividir opiniões é o mínimo que se podia esperar de um exercício que pretende desacomodar e causar desconforto. Salva-o do naufrágio a seriedade e, principalmente, a convicção de um autor ímpar na literatura portuguesa e universal.