O estranho encanto das histórias do uruguaio Felisberto Hernández reside nos ambientes familiares e pacatos que recebem, graças ao seu narrador, a inundação de uma narrativa erotizante e crítica, que revela o inesperado e as ameaças que, a qualquer momento, podem cruzar as ruas, perdidas. O autor é um sedutor. Suas histórias caminham devagar — devaneando — e sempre que existe a possibilidade de o leitor se cansar e olhar o relógio, ou afastar os olhos da página, ele nos oferece alguma coisa inesperada e valiosa, como uma imagem estranha, pois adjetivos como este pontuam todos os comentários que são feitos em torno de seus contos: diferente, estranho, desconcertante, onírico, esquivo, fora do comum, surpreendente… Felisberto Hernández cria um mundo que não chega a ser fantástico, e que outros se recusam a aceitar como surrealista, mas que confere uma realidade mais empolgante à vida tediosa e lenta que descreve.
Em O cavalo perdido e outras histórias estão reunidos nove textos, oito são contos, o último texto é uma espécie de manifesto, no qual Hernández explica, de forma surpreendente, claro, como se dá a gênese de seus textos, através da imagem de uma flor que misteriosamente brota em algum lugar de sua alma, perante a qual tudo o que tem a fazer é cuidar para que ela seja “a planta que está destinada a ser.”
Falar do conjunto de histórias se torna difícil, uma vez que cada uma se apresenta apartada da outra, embora guardando profundas semelhanças que as tornam facilmente reconhecíveis como fruto desta árvore inconfundível. Sua narrativa lenta, sempre adiada, executada numa linguagem que se derrama preguiçosa pelas páginas, e nas assombrosas imagens inusitadas que se contaminam, é a principal marca de seu estilo. Ao contrário do demiurgo que apressadamente conclui o mundo em sete dias, Hernández não tem prazo para terminar sua recriação do universo. Auxiliado pelas memórias, ele caminha em dois sentidos ao mesmo tempo. Tentando recuperar o passado, o que é proibido, ele se vê obrigado a “fazer o milagre de recordar na direção do futuro”.
Como se deixa entrever a si mesmo em todas as narrativas, a transformação da matéria autobiográfica em matéria literária provoca uma tendência ao duplo: o narrador se contempla como personagem e vive em dois momentos distintos. Em alguns casos, como no conto As duas histórias, o narrador se desdobra e multiplica, assim, as imagens que se escrevem a escrever, como numa gravura de Escher.
Outra característica comum aos contos é a pan-erotização que se instaura a partir do olhar. No conto que dá nome ao livro, o narrador empresta a seu duplo — o menino das lições de piano — esse olhar transformador. O que vê neste universo paralelo — os móveis, cobertos por capas brancas — o seduz , levando-o a levantar suas saias para contemplar as pernas escuras e suas forrações mais íntimas. Com a chegada da professora, comportam-se, móveis e menino, como se nada tivesse acontecido. É lógico que percebemos que a sexualidade que desabrocha no garoto tem como alvo a professora, mas a censura onírica, deslocada, leva o narrador a projetá-la sobre os móveis, que, incapazes de conter o erotismo cada vez mais tenso e amplo, vão convidando os outros objetos a uma orgia que se expande pelos caminhos para a casa da professora desejada, até que seja rompida por uma pequena punição. O universo, que havia se ampliado lentamente, subitamente se retrai e com ele o menino mergulha em seu próprio interior, encolhendo-se até ficar como “um micróbio perseguido por um sábio”. O que salva este menino é a presença de seu “sócio”, que inventa recipientes onde a criança pode aprender a guardar a água das recordações.
Se água é sinônimo de recordação, explica-se a casa inundada, de uma mulher que vive no cultivo de um tempo mais feliz. Mas nada é simples nos contos de Felisberto Hernández, pois a água pode aparecer metonimicamente, como lágrima, e aí o seu significado já passa a compartilhar de uma outra fonte geradora de sentido: o teatro. Todos parecem representar, nos contos dele, uma vez que o desdobramento do narrador em personagem nos leva a compartilhar esse voyeurismo que mantém sempre aparente a idéia de que a vida é um teatro. Um teatro que se revela para aqueles que sabem olhar. E o olhar é outro dos grandes temas do autor uruguaio, que chega a fazer dele o tema de O lanterninha. Esse olhar que o distingue e que o afasta dos outros às vezes se perde, distraído, e deixa escapar as situações, para logo em seguida acender-se e ver com agudeza os detalhes deslocados das coisas que o cercam, e que nos devolve, com imagens caleidoscópicas, até que o escuro venha impedir que a história se prolongue, como é o caso de Ninguém acendia as luzes. Esses “olhos de poeta”, que brilham no escuro, como os dos gatos, se contrapõem aos olhos enfumaçados, sem ninguém por detrás, aos olhos fechados e aos olhos pintados por dentro como os das bonecas. Os olhos, Felisberto nos aclara em Lucrécia são “objetos preciosos”, e por isso não nos admiramos quando o narrador confessa: “achei estranho que também servisse[m] para ver”.
Percebemos, então, que o autor empresta a seus leitores diferentes olhos com que ler sua obra. Cada leitor encontrará, nos contos, novos sentidos que podem passar insuspeitados para outros. Tal como acontece na interpretação de sonhos, somente o próprio sonhador tem as chaves corretas para sua decifração. Cada leitor de O cavalo perdido e outras histórias encontrará, no livro, aquilo que perdeu e que Felisberto, generoso, lhes devolve em imagens recuperadas em antiquários do interior, ou nas plantas criadas no jardim encantado de velhos palacetes arruinados.