Uma vila abandonada, vĂtima de chuva e escuridĂŁo constantes; um grupo de pessoas pouco confiáveis e pouco capazes de dar confiança; uma vida pobre numa regiĂŁo decrĂ©pita, sem qualquer perspectiva de melhora; apesar de tudo, uma esperança: a aparente ressureição de um homem que, todos acreditam, Ă© capaz de mudar seus destinos. Assim vivem os personagens de Laszlo Krasznahorkai em SátántangĂł: numa escuridĂŁo Ăşmida e opressiva, onde, inesperadamente, parece surgir uma esperança.
Nenhuma descrição curta como a que ofereço acima seria capaz de transmitir o poder opressivo da ambientação de Krasznahorkai, cuja qualidade e natureza sombria me lembraram o Coração das trevas, de Conrad. Juro que, a certo ponto, era como se meus prĂłprios ossos se umedecessem diante da chuva incessante que alaga as páginas do romance — e isso nĂŁo se deve apenas Ă s descrições do mundo em que essas personagens vivem, mas tambĂ©m se manifesta na forma que o autor decidiu dar Ă s frases desse seu primeiro romance. Sentenças longas se estendem por linhas e mais linhas, deixando o prĂłprio leitor sem fĂ´lego. É verdade que, em alguns casos, sua extensĂŁo chega a ser tĂŁo grande que as frases se tornam confusas (me pergunto se o hĂşngaro, idioma notoriamente complexo, tem mais recursos que o portuguĂŞs para conectar os elementos que, conforme as frases se prolongam, se tornam mais e mais numerosos), mas isso acontece pouquĂssimas vezes, e se os referentes gramaticais se perdem, o leitor consegue se localizar pelo contexto. As frases longas, que revolvem sobre si mesmas como uma espiral, conseguem tambĂ©m ressoar algo da sensação de falta de direção que os personagens parecem sentir conforme esperam alguĂ©m capaz de lhes apontar um caminho.
A existĂŞncia desse alguĂ©m Ă© outro elemento que me lembrou d’O coração das trevas. Em SátántangĂł, assim como na obra de Conrad, existe um personagem alçado a status quase mĂtico — mas, ao que me parece, Krasznahorkai concretiza a existĂŞncia desse personagem de maneira muito mais efetiva que o prĂłprio Conrad. Na obra do autor britânico, a tĂŁo anunciada grandeza de Kurtz acaba mitigada pela velhice em que ele se encontra quando Ă© efetivamente retratado. Isso, de fato, relativiza seu poder, ao mostrar seus limites temporais, humanos, mas parece quase aquilo que, em inglĂŞs, poderia ser chamado de cop out. O hype era grande demais, e o personagem nĂŁo poderia estar Ă altura; Ă© difĂcil imaginar que, mesmo quando retratado em seu ápice, ele poderia ser tĂŁo grandioso quanto o mito formado a seu redor, e a obra nos faz duvidar de Kurtz, e questionar a grandeza que os outros personagens atribuem a ele.
O Irimiás de Krasznahorkai, por outro lado, é um personagem que se mostra de modo significativamente mais complexo. Vemos de perto as falhas de seu caráter, seus limites, seus problemas, mas ainda assim percebemos a razão pela qual os outros personagens depositam nele sua confiança. É claramente um homem que se destaca entre os seus de alguma forma, mas isso não o transforma em alguém capaz de ignorar as forças que controlam o mundo em que vive.
NĂŁo se poderia dizer que SátántangĂł Ă© um livro de grandes esperanças. Os personagens, alĂ©m de sua situação precária, nĂŁo sĂŁo um grupo unido. NĂŁo há confiança ou solidariedade entre eles, e isso, somado Ă sua situação precária, torna difĂcil acreditar em seu futuro, e nos pegamos duvidando de Irimiás mesmo nos momentos em que ele parece o mais confiável. Na taverna do minĂşsculo povoado abandonado, aranhas que nunca sĂŁo vistas trabalham incessantemente, a tal ponto que qualquer um que caia no sono acaba acordando envolto em teias tĂŁo leves quanto uma camada de pĂł; da mesma maneira, fica sempre a sensação de que o destino desses personagens Ă© tĂŁo insidioso quanto as aranhas, e que bastará o mĂnimo descuido para que ele mais uma vez os enrede numa situação precária.
Ressonâncias obscuras
Outro elemento interessante da obra de Krasznahorkai sĂŁo as diversas referĂŞncias histĂłricas e religiosas. Essas referĂŞncias, opacas mais pelo sentido que tĂŞm no texto que pela impossibilidade de apontar relações com o mundo, fazem com que o romance lembre a literatura produzida em tempos de opressĂŁo, como se o autor buscasse sussurrar algo que nĂŁo poderia dizer em voz alta sem perigo. É verdade que a obra foi lançada durante o domĂnio soviĂ©tico sobre a Hungria, e, em um de seus capĂtulos (cuja atmosfera sombria, somada a uma situação burocrática dificilmente compreensĂvel, lembra o Kafka de O castelo) as forças militares aparecem como poder em relação ao qual a desobediĂŞncia seria perigosĂssima — mesmo para um personagem com tanta capacidade e recursos como Irimiás; contudo, embora a situação real possa ter de fato inspirado esses elementos, seria superficial atribuir peso demais a ela, uma vez que Krasznahorkai Ă© conhecido pela obscuridade e melancolia de suas obras, mesmo em romances publicados muito depois do fim da UniĂŁo SoviĂ©tica.
AlĂ©m disso, nĂŁo me parece que SátántangĂł simplifica ou recusa as complexidades polĂticas de seu tempo, graças a certas referĂŞncias mencionadas. Quando Irimiás indica aos moradores do povoado que visitará uma fazenda que, espera, poderá lhes dar muitos frutos, os moradores abandonam o povoado em peregrinação atĂ© uma fazenda, alguns em carroças, alguns a pĂ©. Quando encontram a fazenda que buscavam, encontram um lugar decrĂ©pito, abandonado. Depois de algum tempo, um deles se revolta, e diz: “Ele prometeu que reergueria a nova CanaĂŁ para nĂłs!… Vejam! Olhem! Essa Ă© a nossa CanaĂŁ […] Ele nos atraiu para… para esse lugar arruinado”. CanaĂŁ, difĂcil ignorar, Ă© a terra prometida aos judeus segundo a BĂblia, de maneira que essa referĂŞncia parece carregada de sentido.
Se a Hungria, antes de 1945, era parte do ImpĂ©rio Austro-HĂşngaro, que durante a Segunda Guerra se aliou Ă Alemanha de Hitler, chegando a permitir a execução de centenas de milhares de judeus hĂşngaros, a chegada da UniĂŁo SoviĂ©tica e a derrubada do Reich se tornaram promessa de uma vida nova; mas embora a terrĂvel dominação nazista tenha sido superada, a promessa soviĂ©tica nĂŁo foi capaz de dar ao povo hĂşngaro aquilo pelo que ansiavam. A “terra prometida” pelos novos dominadores do paĂs parece nunca ter sido alcançada, sendo, em vez disso, um lugar de escassez e pouca segurança. Seria possĂvel enxergar no caminho dos personagens uma alegoria: a busca por uma terra prometida encontra nada mais que um mundo tĂŁo precário quanto o anterior.
Claro, essa leitura nĂŁo tem a pretensĂŁo de “explicar” o romance. Uma das caracterĂsticas desse tipo de obra Ă©, justamente, a impossibilidade de reduzi-la a uma Ăşnica explicação, e, no caso de SátántangĂł, há atĂ© mesmo uma sĂ©rie de elementos mĂsticos, religiosos e sexuais que atravessam os outros temas presentes no texto. Com a tateante suposição de uma alegoria feita acima, pretendo apenas indicar como, embora seja fácil supor no romance uma simples crĂtica Ă dominação militar do paĂs e Ă escassez advinda da Guerra Fria, o autor nĂŁo Ă© cego para a complexidade dos conflitos que moldaram a histĂłria da Hungria, nem para o papel que a Alemanha nazista teve em afundar a qualidade de vida do povo hĂşngaro, com o aval dos prĂłprios lĂderes do paĂs — atĂ© porque a influĂŞncia nazista, por certo, foi sentida na prĂłpria famĂlia judaica do autor.
Essa multiplicidade de interpretações possĂveis, sem dĂşvida, Ă© um dos trunfos de SátántangĂł e torna impossĂvel reduzir a obra a associações histĂłricas. As relações individuais dos personagens sĂŁo contextualizadas por um mundo de escassez e pobreza, mas sĂŁo tambĂ©m moldadas por religiĂŁo, desejo sexual, e todo tipo de relação interpessoal — com a possĂvel exceção de relações amorosas, uma vez que, ao que parece, nenhuma relação exposta nessas páginas sombrias mereceria um adjetivo como esse. NĂŁo Ă© sem motivo, considerando essa complexidade, que apesar de o livro nĂŁo ser tĂŁo extenso, o filme sobre a obra feito por BĂ©la Tarr se prolonga por mais de sete horas.