A arte, seja a linguagem que for, é — antes e acima de tudo — catarse. É o movimento de expurgo do que há de mais íntimo e mais ininteligível. Tanto assim é que Fernando Pessoa precisou ser uma legião para dar vazão à sua tormenta. Raduan Nassar, ao contrário, foi lacônico e lhe bastou muito pouco. Goya não metaforizou a sua angústia, ao contrário de Caravaggio e Shostakovich (o compositor e pianista russo) que transformaram seu não lugar em beleza.
A literatura é a conjugação perfeita das convulsões e do frenesi mais íntimos. Quando Clarice escreveu A paixão segundo G. H., como bruxaria, exumava a sua essência de patroa e mulher da classe média; Kafka, sentando em um cubículo, expressava os terrores que, sem saber, se tornariam o holocausto. Por isso, José Castello diz que “escreve como quem sussurra ajoelhado ao ouvido do leitor”, e os românticos byronianos sucumbiam à tuberculose, tamanho era o compromisso com a poesia.
A literatura do jornalista Jorge Baron Biza é desse tom: encorpa realidade e ficção não como fissuras narrativas ou antíteses, mas como complementos que se conjugam em um mesmo tempo. O deserto e sua semente, seu único romance, parte de uma tragédia pessoal para escrutinar o mundo. Seu pai, descontente com o fim do casamento, joga ácido no rosto da esposa — mãe do escritor — para impedir que outros homens olhassem para ela. Estarrecido com o ato hediondo, o marido se suicida com um tiro na cabeça pouco depois.
Biza se transforma em Mario, a mãe em Eligia e o pai em Arón. O livro é labiríntico, como se estivéssemos na mente do narrador, tão confuso quanto nós, leitores, a respeito do que conta. O deserto e sua semente não é uma obra típica da literatura argentina: não investiga Buenos Aires e o povo portenho, vai em sentido contrário, em busca de algo mais amplo e plural. Se Borges sempre olha para dentro — mesmo buscando uma verdade universal, o seu zahir —, Biza observa o mundo atrás do seu aleph. Não é por acaso, portanto, que Mario se sente mais à vontade em Milão, onde Eligia vai fazer enxertos no rosto, que em sua terra natal, que ele próprio pinta como exótica aos italianos. Lá, nas paragens de Elena Ferrante, vive, ao lado de Dina — uma prostituta como as interpretadas por Anna Magnani —, seu La dolce vita.
Ensaio e cena
Biza usa seu alter ego para experimentar as delícias de um jardim que, em vida, talvez não tenha conhecido. O alcoolismo do escritor — que seria fundamental para que ele mesmo também se matasse em setembro de 2001, atirando-se do prédio em que morava — está na superfície da personalidade de Mario. Durante toda a viagem à Europa, bebe mais e mais. Na Itália também. Aos poucos, esse é o seu motor, a condução a lhe dar um norte, uma esperança diante de tanta tragédia. E, ainda assim, esse não é um livro amargo ou desesperador.
Como em O jardim das delícias terrenas, de Bosch, o bem e o mal estão escondidos sob uma mesma cena, um mesmo verniz. Tudo é, na verdade, ensaio e cena. Existe, claro, um mundo kafkiano nesse enredo, uma prisão interna da qual Mario — e como percebemos, Biza também — não pode se libertar. Essa prisão está transmutada nos fantasmas que fazem dele algoz e vítima. Por isso, O deserto e sua semente segue preceito de Kafka, para trazer o checo mais uma vez à baila, da literatura que acerta o leitor — e também o autor — com uma martelada na cabeça.
E, por falar em regresso, precisamos voltar a Clarice. Mario é o antônimo de G. H. Enquanto que a personagem clariceana vai do mundo para dentro de si — chegando ao ápice quando devora uma barata —, Mario vai de si para mundo, se jogando nas ruas e nas experiências que consegue tirar de dentro da tragédia. Um, portanto, é força centrípeta e outro, centrífuga. Porém, ambos estão em pleno desespero, desejosos de algo que o liberte daquilo que é tão ríspido, deteriorado.
Amarras familiares
O ajuste de contas é a matéria-prima das grandes obras literárias. Dom Casmurro é a síntese disso. Ainda que não fosse Machado a contabilizar seu passado, Bentinho passa o livro a acusar Capitu, paranoico que só ele. Não é Moby Dick a história de vingança do Capitão Ahab que teve a perna destruída pela baleia? Até Torto arado, o fenômeno editorial brasileiro, é pouco mais que a tentativa de reparação histórica. O deserto e sua semente não foge à regra. Biza usa a literatura — e não o jornalismo, como poderia lhe ser mais conveniente — para desenlaçar as amarras familiares.
Essa configuração faz pensar que Biza não segue as tradições clássicas da literatura argentina. Seria fácil apontar para a literatura fantástica de Borges e Cortázar ou para o realismo urbano de Piglia ou, ainda, quem sabe a prosa histórica de Tomás Eloy Martínez. Entretanto, não é nada disso que procura. Biza mergulha na autoficção — movimento que o Brasil viu se tornar moda após O filho eterno, de Cristovão Tezza, e reverberou em toda aquela geração incensada pela edição da revista Granta, de 2012 —, que não é a cara dos nossos vizinhos — o que não significa que não exista por lá, deixemos claro.
O deserto e sua semente carrega todo o peso da mágoa que é possível transportar. Ainda assim, é um livro que tem certa leveza, sobretudo diante daquilo que narra, mas não é uma obra fácil. Seu amargor é justificado, obviamente, e dá um charme ao cinismo do narrador, afinal, para conseguir sobreviver em todo aquele caos é preciso uma boa dose de cinismo e uísque — tristemente, as duas muletas de Mario e Jorge. Todos esses eventos, não é de espantar, fraturam a identidade de Biza e, consequentemente, seu personagem. Sejamos honestos, é, praticamente, impossível manter-se inteiro em queda livre.
O deserto e sua semente é a síntese de uma pessoa que não suportou o pragmatismo dos nossos tempos e rompeu com a ideia taciturna de espaço e tempo. Biza, que construiu a sua obra em meio aos escombros, fez das pedras que recolheu um castelo, uma ponta de esperança em meio ao desfalecimento das necessidades mais imediatas.