Maria Valéria Rezende faz parte de uma confraria literária que se congrega na memória. É uma escritora que escreve sobre aquilo que viu e que arranca prosa das próprias experiências. Neste sentido está bem acompanhada. Graciliano Ramos era daqueles que diziam até com certo orgulho que somente conseguiam escrever sobre aquilo que presenciavam. “Quem sabe inventar é Jorge Amado”, sentenciava o velho Graça.
Neste sentido, a militância de Maria Valéria na educação popular serve de ponto de apoio ao realismo de seu novo romance, Outros cantos. O enredo fala de Maria, uma professora que chega a Olho D’Água, um vilarejo perdido no sertão nordestino, para implantar um programa de alfabetização de adultos, o Mobral. Durante meses fica esperando o material necessário ao trabalho. Enquanto isso se envolve com a produção de redes, principal atividade econômica da paupérrima comunidade.
Como se dá tipicamente nestas sociedades, tudo transcorre em volta de um cotidiano miúdo, feito de mínguas e de esperas. Esperando a chuva, as benesses prometidas por políticos, as festas anuais, o crescimento da lavoura, a vinda de um padre, de quase tudo, enfim, essa gente vai sobrevivendo nos limites estreitos de suas crenças e desejos. Tudo isso soa estranho para a professora estrangeira. A opressão consentida sobre as mulheres, os homens que se martirizam pela fé, os conceitos de proteção a um recém-nascido, tudo escandaliza a protagonista.
Nada, no entanto, lhe parece mais perverso que um ser meio mítico, o Dono, senhor de baraço e cutelo de toda aquela sesmaria. Nunca de fato aparece, apenas paira soberano sobre todos e sobre tudo. É a própria encarnação da tirania e do medo. Em seu bojo, traz outras opressões — jagunços, títeres políticos, força econômica. E a população segue passiva, tangida como gado numa marcha de desgraçados.
A escritora busca é refletir sobre o sentido revolucionário sonhado por sua geração. O que restou de toda a luta? Esta certamente seria a pergunta ideal a se fazer durante a leitura.
Sentido revolucionário
Um romance engajado, então? Claro que não. O realismo de Maria Valéria está além do mero debate ideológico, aliás, já envelhecido pelas urgências todas de nosso tempo. A escritora busca é refletir sobre o sentido revolucionário sonhado por sua geração. O que restou de toda a luta? Esta certamente seria a pergunta ideal a se fazer durante a leitura. E o texto, a rigor, não chega a uma resposta concreta, mas divaga pelos caminhos onde nasce a certeza de que todos os esforços foram necessários ao seu tempo.
A própria forma narrativa do romance leva a esta reflexão. Num ônibus que a traz de volta ao sertão, Maria vai recordando sua vivência de há quarenta anos. Retorna ao lugar que um dia pensou ser seu destino para toda a vida, mas as ocasiões impostas pela conjuntura social não permitiram isso. Ela seguiu outros rumos e agora, tentando resgatar o passado, encontra outro mundo e talvez outra gente. Mesmo assim segue.
Tudo tem para ela o mesmo sentido de um olhar que conheceu aos quinze anos em umas férias no Rio de Janeiro. E depois volta a encontrar em vários outros estágios da vida, sempre guardando um breve presente que o dono do olhar lhe entrega como quem planta esperanças. Este duelo de encantamentos — a revolução possível e o amor desejado — leva a protagonista a nutrir certezas que vão se desvanecendo e renascendo a cada novo instante.
É uma busca infinda, andando por ceca e meca — Nordeste, Argélia, México, Paris. E aí está o ponto de desafio de Maria, a protagonista. Ela trava uma batalha quase insana contra as injustiças e misérias em toda a parte do mundo e com isso detecta uma espécie de globalização da indigência. A revolução mecânica desencadeada no final do século 19 fez do século seguinte o espaço de concretização da injustiça social. E esta se espalhou, como praga, por todos os cantos.
Os sonhos da revolução real, como acredita a professora, ficam martelando em seu peito. E por isso ela volta, quarenta anos depois, talvez na esperança de reativar sua revolta íntima. E este o combustível que a move, que a faz seguir sempre, mesmo que já não tenha tantos sentidos e tantos caminhos pela frente.
Outros cantos é uma reflexão sobre nosso tempo. Um tempo de injustiças e medo que teima em não se renovar, que insiste em cultivar o atraso. E esta análise é feita com sabedoria e arte por uma escritora, Maria Valéria Rezende, em plena consciência de sua maturidade intelectual.