O irresistível mal dos livros

Resenha do livro "A casa de papel", de Carlos María Domínguez
Carlos María Domínguez, autor de “A casa de papel”
01/09/2007

Um livro pode custar uma vida. Quantos já não foram vitimados por aquela “fronteira invisível” nas terras da literatura, depois da qual nada volta a ser como antes? “O importante não é que livros, que experiências um homem deve ter, mas o que deposita neles de si próprio”, diz Henry Miller. Nessa entrega se esconde a linha de sombra.

Não por acaso o livro de Joseph Conrad é a peça-chave de um segredo que o protagonista de A casa de papel, um professor de literatura hispânica da Universidade de Cambridge, se propõe a desvendar após a morte de sua colega Bluma Lennon, atropelada ao sair de uma livraria, enquanto lia um poema de Emily Dickinson. À parte acidentes de percurso bizarros como esse, o risco que a literatura oculta pode ser realmente fatal.

Célebres autores já se depararam com o limite de um silêncio deflagrador de histórias de renúncia ou colapso criativo, sobretudo na modernidade. Escritores que romperam com o mundo, exilados da escrita, e que depois reapareceram como anônimos, despojados de tudo e banidos de si, na pele de um outro: um eremita, um granjeador de laranjas, um mercador de armas.

Fato é que não apenas escritores estão sujeitos a essa espécie de abandono (e renascimento), ou a esse acerto de contas. Tomando emprestadas as palavras de Henry Miller, qualquer homem que deposita nos livros o essencial de si próprio enfrenta o ponto explosivo em que se encontram vida e literatura. É justamente desse ponto de encontro, aliás, que parte a ficção do argentino Carlos María Domínguez, quando um envelope sem remetente endereçado à recém-falecida Bluma Lennon, contendo um exemplar de Conrad sob uma crosta de cimento, cai nas mãos de seu colega de universidade.

Uma dedicatória de Bluma na primeira página do volume e selos do Uruguai no envelope são as únicas pistas iniciais que conduzem o protagonista em uma busca mapeada pela paixão da leitura e seus perigos, cujo indício sombrio, mais real que a dedicatória ou os selos, está no rastro de argamassa que cobre o livro. De Cambridge a Buenos Aires e dali para Montevidéu, a procura pela origem da obra, e sua relação com a intimidade de Bluma, vai aos poucos se transformando em uma outra viagem subterrânea pelo mundo de revelações que há por trás de uma biblioteca.

Inevitavelmente, os caminhos dessa investigação levam o narrador a uma sala rodeada de estantes e vitrines, onde um relato a respeito de Carlos Brauer, o misterioso remetente do envelope, deixa-o perplexo. Bibliófilo incorrigível, Brauer teria sido uma das vítimas do vício da leitura, de tal maneira atolado no caos de enciclopédias, dicionários e coleções, que sua biblioteca chegara a invadir, sem restrição, todos os espaços de sua casa (banheiro e garagem inclusive), como se sua própria memória tivesse perdido o controle, numa espécie de câncer literário, multiplicando-se em milhares de páginas, compulsivamente, até o horror da loucura. Pois, de fato, Brauer teria enlouquecido, como conta ao narrador o homem que acompanhara de perto a história do amigo antes de saber do seu desaparecimento em um lugar remoto à beira do Atlântico, entre as dunas de La Paloma. O que se segue à mudança de Brauer e seus livros para uma cabana no meio dos ventos marinhos cabe aqui deixar suspenso para a surpresa dos leitores.

A viagem prossegue, assim, de Montevidéu para os bancos de areia de La Paloma, em uma faixa cinzenta de veleiros, redes de pesca e escombros à borda do oceano: um cenário familiar aos mares de Joseph Conrad e Herman Mellville. Mas, entre os livros de Mellville, o que melhor reflete a paisagem de angústia em A casa de papel é, sem dúvida alguma, Bartleby, o escriturário, obra que, não coincidentemente, inspirou o espanhol Enrique Vila-Matas a reunir em seu Bartleby e companhia os artistas portadores da “síndrome do Não”.

Os leitores, tendo sua parte na experiência da criação literária, como queria Henry Miller, considerando que “o bom leitor, tal como o bom autor, sabe que tudo nasce da mesma fonte”, podem sofrer do mesmo mal, e depositar nos livros nada menos que seu emudecimento. E, como é de se esperar, a viagem finalmente se conclui, de volta à chuvosa Londres, ao pé do túmulo de Bluma.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

Rascunho