Rainer Maria Rilke, um dos maiores poetas de língua alemã de início do século 20, é muito lembrado pelo fato de ter resistido aos “ismos” tendenciosos das vanguardas européias que se afirmavam à época. Com efeito, conforme ensina um de seus mais brilhantes estudiosos, Sérgio Augusto de Andrade, a poesia do grande artista de Praga era gloriosamente indiferente a seu tempo e soava com a gravidade majestosa do mármore grego: “enquanto todos pareciam empenhados em descobrir o lirismo histérico de locomotivas e arranha-céus, Rilke só se concentrava em inventar anjos”.
Mas os anjos que aparecem como temática recorrente em toda sua obra não são puros nem idealizados, numa perspectiva que deixaria entrever vestígios românticos naqueles seres alados, símbolo da presença da proteção divina, zelosos guardiães do humano.
Os anjos de Rilke são terríveis e tal caracterização pode nos ajudar a compreender um dos eixos de força polarizadores de sua poética, qual seja o da constatação paradoxal do efêmero de nossa condição. “Todo anjo é terrível”, um dos versos mais inquietantes da primeira de suas Elegias de Duíno (iniciadas em 1912 e retomadas dez anos mais tarde), assinala que, justamente por serem dotados da capacidade de transitar entre o visível e o invisível, por habitarem tanto o mundo real dos homens quanto o eterno além, os anjos nos lembram, o tempo todo, de nossas próprias limitações.
Dora Ferreira da Silva, tradutora consagrada daquelas Elegias para o português, observa que há uma evidente tensão ameaçadora na relação entre o homem e o Anjo, “símbolo do que ultrapassa e transcende a esfera do visível”. Nesse sentido, não haveria repouso possível para o homem — o que, de certa forma, aproxima a poesia de Rilke da filosofia heideggeriana, sob cuja perspectiva nosso estar no mundo é marcado pela ameaça constante da efemeridade, do desligamento, do estranhamento e do constante exílio.
A missão de custodiar e a de ser o porta-voz da mensagem divina para o humano se reverte e reitera um tipo de instabilidade — a do desamparo — marcadamente moderna.
O anjo não é apenas o que consegue exprimir o absoluto da inspiração poética, mas, como entende Bollnow, surge no viés rilkiano muito mais como o ser hipotético que serve para pôr em evidência “a maneira de ser do homem”.
E aqui não poderíamos deixar de fazer menção ao filme Asas do desejo, de Wim Wenders, em que, por amor, um anjo decide abdicar de sua condição superior de imortal e descer a terra, seduzido que fora pelo desejo de se humanizar. Além da temática do anjo caído (recorrente na literatura e na arte em geral, como o excelente estudo Anjos caídos de Harold Bloom), nesse caso, evidencia-se que, por ter desejado, o anjo se perde, pois se continuasse a exercer apenas a missão de guardião, sem ter se envolvido amorosamente com a trapezista do circo pela qual se apaixona e por quem decide descer a terra, jamais teria conhecido a terrível dor da perda e da eterna despedida que nos assola.
Se o filme de Wenders trata do anjo que cai em virtude de um nobre sentimento, os que Rilke evoca, conforme revelam suas próprias palavras em carta ao tradutor polonês, são criaturas em que “a transformação do visível em invisível […] aparece já cumprida”, donde serem terríveis para “nós, suspensos ainda no visível”.
Assim é que essa terribilidade dos anjos acaba sendo importante chave de compreensão de algumas das temáticas mais caras ao poeta, quais sejam: a da efemeridade, a do inefável e a do adeus existencial.
Eterna despedida
José Paulo Paes, em elucidativo estudo introdutório das traduções que levou a cabo, ao longo de anos, de uma seleta variada de poemas de nosso autor (cuja 2ª edição acaba de ser lançada pela Companhia das Letras: Poemas, tradução e introdução de José Paulo Paes), observa que a pedra de toque da modernidade literária de Rilke tem muito mais a ver com o sentimento de total desamparo do homem no mundo e do fundamental absurdo da vida que ele exprimiu em suas figurações artísticas, coincidentes com os preceitos filosóficos do existencialismo de Heidegger, do que com sua resistência aos avanços tecnológicos de então. Daí por que, embora seja importante notar a aversão do poeta à ascensão da máquina e à sociedade de massa do século 20, seja fulcral perceber o quanto ele merece ser reconhecido como altamente representativo daquela época, uma vez que o pensamento existencialista se desenvolvera à sombra das duas grandes guerras mundiais.
Para Paes, Rilke não só inovou a poesia do século 20 no plano dos conteúdos, como nos próprios meios de expressão, primeiro com “a visualização dos poemas-coisas coligidos nas duas séries dos Novos poemas (1907-8), depois com as elipses audaciosas da Gedankenlyrik, lírica do pensamento de que os Sonetos a Orfeu e as Elegias de Duíno são a suprema realização”.
A Oitava elegia de Duíno talvez seja, nesse sentido, bastante exemplificadora desse adeus existencial, que faz com que estejamos em eterna despedida, diversamente do animal “isento de morte” que tão somente “avança, avança, Eternidade adentro, como as fontes que correm”:
[…] Oh a bem-aventurança da miúda criatura
que permanece sempre no seio que a conteve até nascer;
oh a felicidade da mosca que ainda saltita por dentro
até mesmo quando em núpcias: pois o seio é tudo.
E vê a semissegurança do pássaro
que, por sua origem, quase conhece uma e outra coisa,
como se fosse a alma de um etrusco,
saída de um morto que o espaço acolheu,
embora com a figura jacente como tampa.
E quão atônito não fica o que, vindo de um seio,
tem de voar. Como, temeroso
de si mesmo, sulca o ar, qual
rachadura ao longo de uma xícara. Assim fende o vôo
do morcego a porcelana do fim de tarde
[…]
Quem nos fez virar de tal maneira que,
façamos o que for, imitamos a postura
de quem se vai? Como aquele que do alto
do derradeiro monte, a desdobrar-lhe uma outra vez ainda
seu vale todo, volta-se, detém-se e se demora —
assim vivemos nós em despedida sempre.
Como ser transitório que é, o homem não pode ter nenhum apego, nem mesmo o amoroso, mas deve estar sempre pronto, a cada momento, a despedir-se de algo ou de alguém. Este tema é também recorrente num dos Sonetos a Orfeu. De modo análogo à postura intermediária dos anjos que circulam entre o visível e o invisível, nada mais pertinente do que evocar Orfeu enquanto ser capaz de transitar entre o mundo da vida e o da morte.
Junto à lírica do pensamento e a ela implícita aparece ainda a do Dasein, “existência”, composta por Da, “lá”, e Sein, “estar”. E talvez a Nona elegia Duinense seja a que melhor ilustre a complexidade do traço do efêmero que nos constitui, pois “[…] estar-aqui significa muito; porque todas/ estas coisas efêmeras, que estranhamente nos concernem, necessitam/ de nós, ao que parece. De nós, os mais efêmeros”.
Eis que, então, se anuncia a grande missão do poeta, que é, sobretudo, a de dizer, justamente por meio dessa consciência de nossa efemeridade, o que as coisas por si só não conseguem revelar:
[…] Talvez estejamos aqui para dizer: casa,
ponte, fonte, porta, cântaro, janela, árvore de fruta —
quando muito: coluna, torre… mas para dizer, entende,
oh dizer o que as próprias coisas nunca
pensaram ser no íntimo
[…]
E tais coisas, que vivem
do perecer, compreendem que as celebres; efêmeras,
crêem que nós, os mais efêmeros, podemos salvar.
Querem que em nosso invisível coração as transformemos —
oh infinitamente — em nós. […]
O poeta é, assim, o agente da profunda metamorfose das coisas, o que celebra sua efemeridade justamente porque tem plena consciência do transitório. Ele não apenas vê as coisas, mas assume a interioridade delas. Graças a isso é que exerce a tarefa de dizer as coisas, as quais, destituídas de voz própria, pedem para ser ditas por ele.
Ainda em relação à importância das Elegias de Duíno, faz-se necessário ressaltar o quanto elas colaboram para o entendimento da cosmovisão de Rilke em que, em síntese, sobressaem os seguintes temas: a terribilidade do Anjo; o desamparo existencial do homem; a missão celebratória do poeta; as amantes abandonadas; os heróis; os mortos precoces; a continuidade entre a vida e a morte; o mito da origem da música (e da poesia).
Cumpre ainda notar, no que tange à vertente metafísica de sua poética, tão decantada por seus mais diversos estudiosos, que — conforme também observa Paes — esta não surge de nenhuma doutrina filosófica, mas sim da própria experiência: “os versos não resultam de ‘sentimentos’ (esses têm-se cedo bastante), mas de experiências”, afirma o protagonista de Os cadernos de Malte Laurids Brigge, o único romance do poeta.
Daí por que ser necessário também precisar melhor as nuances do que se entende por poesia metafísica em Rilke (cujas marcas evidenciam-se, sobremaneira, nas Elegias), uma vez que é fácil incorrer no sentido restritivo com que costuma ser analisada, ou seja, como sinônimo de obscuro, conceituoso, rebuscado. Como esclarece Bollnow, no caso do eminente poeta, “pensar e poetizar não estão ainda cindidos como possibilidades distintas, […] a poesia como tal é também uma forma do pensamento” e se move o tempo todo no âmbito da imanência.
Busca agônica
A propósito, o professor Mansueto Kohnen O. F. M., especialista em Literatura Germânica do século 20, assinala o quanto Rilke, muitas vezes denominado “Gottsucher” (o que está à procura de Deus), concebia o Ser Supremo na imanência das coisas e da natureza. Para o estudioso, nosso poeta O possuía e O trazia em si e ainda assim acreditava ter que procurá-lo sempre e novamente, o que apontava a uma agônica busca do divino mais do que passiva adesão aos dogmas de uma religião estabelecida.
Esse viés da mística rilkiana se consolida especialmente com a publicação — em 1905 — da obra: O livro de horas, composto por três partes: O livro da vida monástica, O livro da peregrinação e O livro da pobreza e da morte, escritos respectivamente em diversas fases da vida do poeta.
A coincidir com o fecundo período estão as viagens, sobretudo a que fez para a Rússia, em companhia de Lou Andreas-Salomé, amante, amiga e decisiva orientadora e mentora intelectual dos rumos que sua arte passa a tomar. Com efeito, tal viagem teria servido para acentuar as afinidades eslavas que o poeta praguense mantinha com aquele país, o qual foi por ele adotado como verdadeira pátria espiritual.
Em sua empreitada na busca desse Deus, percebe-se um grau intenso de íntima necessidade de comunicação e comunhão, em que mais do que divina criatura, Este se apresenta como ser extremamente humanizado, ao alcance do poeta e de sua voz:
Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho,
batendo forte à tua porta na noite extensa,
é porque te ouço respirar, da tua presença
sei: estás na sala, sozinho.
Se de algo precisares, não há ninguém ali
que possa te trazer um gole d’água sequer.
Vivo sempre à escuta. Dá-me um sinal qualquer.
Estou bem perto de ti. […]
Enquanto Deus se fragiliza, humanamente solitário na sala, o poeta se prontifica a ajudá-lo, uma vez que está sempre à procura e à escuta de algum sinal Dele. Deus não está nas alturas, mas ao lado e também imanente às coisas e à natureza, ao nosso redor.
Rilke e Rodin
Da mesma forma que é possível precisar a impressionante influência de Lou Andreas-Salomé na vida e na poética de Rilke, também é necessário dar valor ao impacto fundamental que a obra do artista plástico Auguste Rodin exerceu sobre o espírito de nosso poeta praguense. Vale a pena conferir o seguinte trecho, extraído de uma das inúmeras cartas que Rainer escreveu à Lou, a propósito de Rodin (compilado no volume A melodia das coisas: contos, ensaios, cartas, recém-lançado pela Estação Liberdade, organizado e traduzido por Claudia Cavalcanti):
Profundamente dentro de si, carregava a escuridão, o refúgio e a calma de uma casa, e acima dela ele próprio se tornara o céu e a floresta em torno e a amplidão e o grande curso d’água que sempre por ali fluía. Que solitário é esse ancião que, mergulhado em si mesmo, se ergue repleto de seiva como uma velha árvore no outono! Ele se tornou profundo; para o seu coração escavou uma profundeza e o batimento dele vem de longe, como do interior de uma montanha […]
E essa maneira de ver e de viver está tão arraigada em Rodin porque ele a conquistou como artesão: tempos atrás, quando conquistou o elemento tão infinitamente imaterial e simples de sua arte, ganhou para si essa grande justiça, esse equilíbrio que não vacila diante de um nome, frente ao mundo. Como lhe foi dado ver coisas em tudo, adquiriu a possibilidade de construir coisas: pois essa é sua grande arte […]
E creio, Lou, que assim deve ser… Oh!, Lou, num poema que consigo escrever há muito mais realidade do que em cada relação ou simpatia que eu sinta; quando crio, sou verdadeiro, e gostaria de encontrar a força para fundamentar minha vida totalmente nessa verdade […] Já buscava isso quando fui ao encontro de Rodin; pois eu há anos pressentia ser sua obra exemplo e modelo infinitos […]
Conforme nos ensina José Paulo Paes, ainda que sejam diversos os materiais com que escultor e poeta tenham trabalhado, a influência do primeiro em relação ao segundo se determinou, sobretudo, na dimensão artesanal e estrutural do processo artístico de Rilke, que seria depois aprofundada pela pintura de Cézanne.
Com Rodin, Rilke recebe a valiosa lição da visibilidade. “Aprendo a ver”, afirma Malte Laurids Brigge, pouco depois de sua chegada a Paris (o poeta chega à Cidade Luz em 1902). Daí por que os Novos poemas já assinalam a concretude da escultura e da pintura em contraposição à vagueza da música que preponderara ainda em O livro de imagens. Um dos que melhor ilustram essa nova tendência é A pantera, escrito seguindo o conselho de Rodin de ir ao jardim zoológico para aprender a ver — o animal enjaulado não é descrito de fora, mas de dentro, na sua própria essência:
Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
está fatigado, já nada retém.
É como se existisse uma infinidade
de grades e mundo nenhum mais além.
O seu passo elástico e macio, dentro
do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.
Certas vezes, a cortina das pupilas
ergue-se em silêncio. — Uma imagem então
penetra, a calma do membros tensos trilha —
e se apaga quando chega ao coração.
Rilke no Brasil
À poética do inefável — a que nos referimos na primeira parte do presente estudo —, podemos aliar, agora, essa poética da precisão do olhar. É por esse viés de mão dupla que a obra de Rilke foi recebida entre nós.
Como bem observa o tradutor Pedro Süssekind na apresentação de Cartas a um jovem poeta, editado pela L&PM, foi o primeiro aspecto — o das inquietações metafísicas das Elegias — que mais suscitou a admiração inicial pelo poeta, especialmente entre os autores da chamada Geração de 45, o que desencadeou uma espécie de “rilkeanismo” em língua portuguesa, notável, por exemplo, em alguns poemas de Cecília Meireles (que também foi a tradutora, para o português, de A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke, cuja 20ª edição foi publicada em 1994 pela Globo, junto com as famosas Cartas a um jovem poeta, traduzidas por Paulo Rónai).
Mas, alargando essa recepção inicial e visando corrigir o que ela apresentava como tendencioso, os chamados “poemas-coisas” reunidos, principalmente, nas duas partes dos Novos poemas, passaram a ser extremamente representativos da lição de visibilidade ou da precisão do olhar que Rilke aprendera com Rodin. Daí por que João Cabral de Melo Neto tenha afirmado a respeito “Preferir a pantera ao anjo,/ Condensar o vago em preciso…”, e Augusto de Campos tenha incluído o mesmo poema na antologia que organizou sobre Rilke, buscando enfatizar também a mudança de foco na recepção da obra do poeta — já que seria extremamente limitador exaltar apenas a vertente espiritualista, em detrimento da concretude que passara a ser recorrente na organização interna de seu processo artístico.
Traços autobiográficos
Sobre a visibilidade, ainda, vale ressaltar o quanto ela é a pedra de toque do único romance do autor, a que já se fez menção: Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Algumas das principais inquietações do poeta — tais como a busca de Deus, a sombra da morte, os medos infinitos, o significado da arte — surgem anunciadas na prosa do protagonista narrador dinamarquês Malte, que, chegando a Paris, aguça ao máximo sua capacidade de ver:
Aprendo a ver. Sim, estou começando. Ainda é difícil. Mas quero aproveitar o meu tempo.
Eu nunca tinha percebido, por exemplo, que existam tantos rostos. Há um número imenso de pessoas, mas o número de rostos é muito maior, pois cada uma delas possui vários. Há pessoas que ostentam um rosto por anos a fio, e, obviamente, ele se gasta, fica sujo, rompe-se nos vincos, alarga-se como as luvas que usamos durante a viagem. São pessoas parcimoniosas, simples; não o trocam, nem sequer mandam limpá-lo. Esse é bom o bastante, dizem elas, e quem poderá lhes provar o contrário? Pergunta-se, todavia, visto que possuem vários rostos: o que fazem com os outros? Elas os guardam. Seus filhos devem usá-los. Mas também acontece de seus cães saírem com eles por aí. E por que não? Rosto é rosto […]
Também neste livro, em que alguns estudiosos percebem nítidos traços autobiográficos do poeta, evidencia-se o tenso relacionamento de Malte com a mãe, que, perdendo a primeira filha, teria transferido ao filho (que nascera depois) todo o peso daquela terrível morte. No estudo feito por José Paulo Paes, ele esclarece que os biógrafos de Rilke costumam descrever-lhe a mãe como uma mulher artisticamente bem dotada, mas emocionalmente instável. Contam que o casal tivera uma menina que morrera bebê; quando nasceu o filho, Phia insistiu em dar-lhe o mesmo nome da primogênita, René, e em tratá-lo como menina. As relações do poeta com a mãe sempre foram difíceis, uma contraditória mistura de afinidade e de repulsão que ele descreveu nas cartas a Lou Andreas-Salomé e transfigurou na história de Malte e, de forma mais impressionante ainda, num poema de 1915, intitulado Ai de mim, que minha mãe me desarvora.
Permeado por fragmentos de histórias fantasmagóricas, os Cadernos de Malte também induzem à concepção do maravilhoso em Rilke, afastado dos contos de fada tradicionais, impregnado de casos que ele conta, impactado com os efeitos mais que assombrosos dos castelos dinamarqueses em que passeava e vivia, repleto de cômodos e de imagens de família em que mortos aparecem como se estivessem vivos e mãos continuam a se movimentar sozinhas, apartadas do corpo.
Olhar convalescente
Mas de tudo o que é possível elencar nesta prosa rilkiana, talvez o que mais chame a atenção seja a recorrente sombra da morte, que tanto acompanhou a vida doentia do eminente autor. Aqui, mais do que em outros textos, surgem os delírios febris que o acometiam durante longos períodos, tão constantes em seu frágil corpo de leucêmico.
Não é à toa, nesse sentido, a homenagem explícita que Malte dedica a Baudelaire enquanto poeta que melhor representou o efêmero na modernidade. Da mesma forma com que o poeta francês do Spleen de Paris vira na pintura fugidia de Constantin Guys o ícone revelador das inovações de sua época, comparando-lhe os modos de percepção do real às de um convalescente recém-saído de um longo período de reclusão e para quem tudo chama muito e a intensidade das cores e dos movimentos é central, assim também o delírio com que Malte vai aprendendo a ver não se distancia dos modos com que Rilke apreende o seu em torno.
Epistológrafo compulsivo
Além da vasta poética e dos Cadernos de Malte, as muitas cartas escritas por Rilke a diversos correspondentes acabaram se tornando material extremamente valioso para a compreensão de sua vida e obra. É possível acompanhar melhor as influências que recebeu especialmente nas cartas que trocou com Lou Andreas-Salomé, Clara Rilke (sua mulher e com quem teve a filha Ruth), Marina Tsvetaeva e, evidentemente, as mais famosas, as que dedicou ao jovem Franz Xaver Kappus, entre 1903 e 1908, e que foram publicadas como Cartas a um jovem poeta.
Sobre as tais cartas, Cecília Meireles teria afirmado que pouco falam de literatura, sendo, mais que tudo, lições de vida. Os conselhos que Rilke dá ao jovem podem ser assim resumidos: escrever só por absoluta necessidade; evitar temas sentimentais e formas comuns; escolher as sugestões oferecidas pelo ambiente, a imaginação e a memória; não dar importância aos críticos; não ler tratados de estilo. É ela, ainda, quem observa que:
Rilke […] aplica-se a valorizar aos olhos do jovem Kappus, a necessidade de um mundo interior; de uma clarividência; de um gosto da solidão, constante e inteligente; de uma visão diversa do amor; de uma ternura pela natureza e pelos mínimos aspectos das coisas; de uma paciência interminável; de uma aceitação leal de todas as dificuldades; de uma fidelidade à infância; de uma expectativa de Deus; de uma compreensão mais humana da mulher; de uma disciplina poética humilde e vagarosa. Mas sobretudo a solidão assume, nessas cartas, um caráter de heroísmo e de magnificência — a ponto de poder dizer que o homem solitário pode preparar muitas coisas futuras porque as suas mãos erram menos.
Ferido pela rosa
Curiosamente, consta como incidente fatal que teria levado à morte aquele que Otto Maria Carpeaux afirmara ser “o poeta mais atual e permanente do nosso tempo” um ferimento ocasionado na mão, no momento em que colhia rosas e que se agravara, em decorrência da leucemia contra a qual já lutava havia anos. O fato deu origem a este seu poema-epitáfio:
Rosa, ó pura contradição, prazer
de ser o sono de ninguém sob tantas
pálpebras.
Seja como poeta do inefável ou da precisão do olhar, seja por meio de sua legião de anjos ou da contradição da rosa que fere, Rainer Maria Rilke é leitura mais que necessária num mundo em que a circunspecção e a viagem solitária ao redor do “eu” foram substituídas, radicalmente, pela avalanche de informações e parafernália de luzes da sociedade em que tudo é espetáculo. A busca agônica e rilkiana de Deus (próximo e imanente a todas as coisas) traduz também o desamparo do indivíduo contemporâneo, que não encontra espaço para as peculiaridades de sua expressão.
Ainda que terríveis, os anjos do poeta evocam a fugacidade de nossa condição; ainda que fira, sua rosa é a poesia possível, a que resiste à barbárie dos que estão desaprendendo a ver o essencial.