O insubstituível papel das cartas

Primeiro livro da libanesa Hoda Barakat lançado no Brasil, "Correio noturno" é um exemplo de romance epistolar
Hoda Barakat, autora de “Correio noturno”
02/06/2021

Por que alguém escreve uma carta sabendo de antemão que ela jamais será remetida ou lida ou mesmo sem a intenção de fazê-lo? Por que escrever uma carta de caráter pessoal nos dias atuais, quando se oferecem tantas outras possibilidades de comunicação? Sem nenhuma pretensão acadêmica ou de aprofundar uma discussão que tende a tocar o óbvio, percebe-se haver elementos comuns numa carta e numa narrativa literária, ficcional ou não: além da comunicação que se estabelece entre escritor e leitor, também o registro dos fatos que se quer contar e a organização desses fatos e das ideias que se pretende expressar. Esses elementos conseguem por si só responder ao que foi posto há pouco: às vezes, a comunicação importa menos que o registro, ou seja, escrever para transmitir uma mensagem a alguém é menos importante ao missivista do que organizar seu próprio pensamento. O texto escrito possui, enfim, um poder que a comunicação oral, seja ela por qual meio for, jamais conseguirá atingir — isso quando essa não for impraticável.

Cartas também podem servir de belíssima matéria-prima à ficção. Na chamada literatura epistolar, notadamente em sua forma romanesca, como no célebre As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, ou em A caixa preta, de Amós Oz, as tramas são construídas a partir de cartas trocadas entre os personagens, pressupondo-se que essas cartas foram remetidas, recebidas e respondidas, completando-se o ciclo da comunicação e propiciando ao leitor, na condição de uma espécie de voyeur, visitar a intimidade dos protagonistas e dos fatos que se quer contar. A alternância de um eu narrador — inescapável o uso da primeira pessoa a quem escreve uma carta — leva automaticamente à mudança de perspectiva dentro de uma mesma história. O discurso via de regra mais direto e com menos filtros, por assim dizer, dá ao escritor uma liberdade que não se costuma praticar numa narrativa convencional.

Correio noturno, primeira obra da libanesa Hoda Barakat lançada no Brasil, é um exemplo de romance epistolar com a singularidade de as cartas que o compõem fazerem parte daquele grupo mencionado no início: elas foram escritas sem a preocupação de que chegassem um dia aos respectivos destinatários. A inequívoca intenção de cada autor era escrever, registrar, organizar sua narrativa, não importava tanto que ela fosse lida. O vínculo existente entre esses anônimos personagens é algo bastante fluido e que se revela aos poucos, por isso tudo o que se antecipar aqui privará de alguma forma o futuro leitor do melhor que a literatura tem a nos proporcionar: a descoberta por nós mesmos das sutilezas de uma trama.

O romance, de enxutas 160 páginas, divide-se em três partes. Sob o título de A janela, a primeira e mais alentada delas é composta de cinco longas cartas que têm em comum autores de origem árabe vivendo numa grande metrópole europeia. Tanto o país de origem quanto o destino desses personagens não são referidos. Há indícios que sugerem Líbano numa das pontas e Paris na outra, e a biografia da autora certamente tem uma clara influência nessa composição.

A primeira carta começa de forma emblemática: 

Minha cara,

Já que é assim que devem ser iniciadas as cartas, então, “Minha cara”.

Nunca escrevi uma única carta em toda a minha vida. Há uma, imaginária, que revirei durante anos na mente, mas jamais redigi. Caso tivesse escrito, minha mãe, que não sabia ler, acabaria pedindo a alguma pessoa estudada do vilarejo que a lesse para ela.

O mistério criado a partir da singeleza desse início: alguém que nunca escreveu uma carta se dispõe a escrever sua primeira a uma pessoa a quem não sabe direito como tratar e começa a cumprir a tarefa pensando noutra carta, a que teria escrito à mãe analfabeta e nunca escreveu. Os detalhes da história do missivista vão aparecendo à medida que ele revela seus conflitos mais íntimos: a difícil vida com a família no país natal, as razões que o levaram a imigrar, o relacionamento com a destinatária da carta e, principalmente, sua condição de eterno refugiado vivendo na ilegalidade e fugitivo num país estrangeiro.

As demais cartas trazem histórias que também se montam assim, como pinceladas num quadro, umas serenas, outras nervosas, umas de uma alegria que se sabe fugaz, outras muito doloridas — algumas passagens são de uma sordidez nauseante que se expõe em toda sua crueza e sem o anteparo de meios tons. Seguindo na analogia com as artes plásticas, ao final de Na Janela o leitor terá não um só quadro, mas cinco expressivos painéis sobre o êxodo contemporâneo a que são submetidos cidadãos de origem árabe rumo ao Ocidente, com suas diferentes causas e várias consequências. E a todas as dificuldades e conflitos inerentes à condição humana, comuns a qualquer mortal em qualquer lugar do mundo, somam-se as agruras do não-pertencimento e do viver assombrado pela necessidade da fuga. Sem nenhuma dúvida, nesse conjunto de cartas e na maneira a um só tempo tênue, poderosa e singular como elas se relacionam está o melhor do romance.

Na segunda parte, intitulada No aeroporto, vem a sequência dos eventos que estavam em andamento quando as cartas foram escritas. Alternando-se novamente os narradores, o tom é o mesmo do encontrado em Na janela, ainda que a forma seja outra. Cada uma dessas vozes já ganhou corpo e personalidade na imaginação do leitor, e agora ele se reencontra com histórias que ficaram em suspenso clamando por um desfecho. O título sugere uma possível conexão das cinco histórias pelo cenário aonde seus personagens são conduzidos, e outra vez a costura que se descobre é mais sutil, porque Correio noturno caminha sempre alguns degraus acima do nível das expectativas comuns.

Epílogo: a morte do carteiro encerra o romance de uma forma tão bela quanto melancólica, e algo também inesperada. Quem ganha voz agora é o carteiro em fim de carreira num vilarejo de um país do Oriente Médio destroçado pela guerra civil. Num brevíssimo depoimento de cinco páginas, o pobre homem relata o quanto sua vida e profissão foram afetadas ao longo dos anos pelos conflitos a que conseguiu sobreviver. Há toda uma simbologia em sua narrativa que remete às cartas do início do romance, fechando-se assim o círculo.

Correio noturno foi traduzido diretamente do árabe para o português por Safa Jubran. As modulações das diferentes vozes restam muito bem executadas, a despeito de os idiomas serem tão díspares — o que leva a pensar mais em versão do que propriamente em tradução e, de qualquer forma, um excelente trabalho —, e de a prosa segura e expressiva de Hoda Barakat ter força suficiente para transcender a essa questão.

Assim como o final do romance remete ao começo, tem-se aqui a mesma pretensão: através de um livro cheio de significados, Hoda Barakat nos brinda em Correio noturno também com a resposta para as questões levantadas no início desta resenha. Na ficção, ou mesmo fora dela, as cartas ainda cumprem um insubstituível papel.

Correio noturno
Hoda Barakat
Trad.: Safa Jubran
Tabla
160 págs.
Hoda Barakat
Nasceu em 1952 numa pequena cidade cristã maronita do Líbano, mas cedo mudou-se para Beirute e mais tarde para Paris, onde vive atualmente. Autora de cinco romances originalmente escritos em árabe que versam sobre a guerra civil em seu país, já foi traduzida para o inglês, hebraico, francês, italiano, espanhol, turco, holandês e grego. Correio noturno é sua estreia no Brasil.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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