O inferno de Otto

Histórias de “Boca do inferno” apresentam traços poéticos e a crueza de imagens desalentadas
Otto Lara Resende, autor de “Boca do inferno”
04/08/2014

Como as pessoas, os livros também têm um destino: dobram a esquina e caem no mundo, podendo fazer sucesso ou desaparecer, morrer de velhice ou na flor da idade; e às vezes retornando por motivos variados. Assim aconteceu com este livro de Otto Lara Resende. O engraçado é que, sem querer, também entrei na dança. Pois a resenha que sobre ele escrevi há um ano e meio, por problemas editoriais não pôde ser publicada. E quando encontrei a edição deste ano, 2014, enriquecida pelo excelente ensaio de Augusto Massi que lhe serve de posfácio, apurado na análise do texto, completo em seu levantamento crítico, resolvi publicar o que escrevi, para encorpar a ciranda inventada a contra gosto pelo grande Otto. É o que aí vai.

O sumiço de Boca do inferno, publicado pela primeira vez em 1957, a que se deve? O leitor distraído pode optar pela exigência do autor, que jamais terminava as contínuas revisões de seus textos. Mas a verdade é outra: o escândalo que o livro causou em nosso estreito meio literário, foi avassalador. “Fiquei traumatizado, pois desabou sobre mim uma saraivada de insultos e incompreensão”, palavras de Otto em entrevista a Edla van Steen (Viver e escrever, L&PM, 1982). E ainda: “Escreveram em minha porta com tinta fecal”, afirmação a Leo Gilson Ribeiro (referência de A. Massi, p. 147).

Mas o que terá de tão terrível essas páginas, publicadas há mais de meio século, além de seu título funesto?

A temática, sete histórias de crianças na primeira adolescência (de 11 e 14 anos), é complexa, seu tom, pungente, longe da imagem adocicada com que se costuma vestir a infância, apesar das teorizações. Otto mais de uma vez afirmou estar consciente da “tristeza misteriosa da infância”, seus segredos, seus desesperos. Tais sentimentos não aparecem no livro como inerentes a um ser humano imobilizado no tempo, ou mecanicamente derivados de circunstâncias, que nem por isso deixam de ser sublinhadas. Assim, encontramos na armação dos enredos, pobreza, abandono, situação crítica familiar, ou indiferença e oportunismo por parte dos adultos. Tudo isso afia temperamentos e estabelece a crise. Mas a esse drama não faltam traços poéticos, percebidas na mão leve com que é descrita a natureza, ou no seu avesso, a crueza de imagens desalentadas.

“O padrinho era enorme, tinha costas caladas, hostis como uma parede”, pensa o órfão agarrando-se na garupa de um homem, que em breve o espancará e transformará em escravo (O moinho).

Se esse quadro lúgubre da vida numa cidade interiorana pode ser tocado por leves tons dickensianos, por outro lado imediatamente encontramos nele nossos conterrâneos históricos: filhos de criação explorados à exaustão, o filho do padre, objeto de chacota dos companheiros, abuso sexual principalmente de meninas, iniciando-se dentro da família, que por sua vez instaura seus mecanismos próprios de privilégio e exclusão, passaporte para condenações. No horizonte de tudo isso, a religião, incompreendida na maioria das vezes pelas crianças. Com um pequeno sorriso divertido, o narrador comenta que elas se sentiam culpadas porque “o sol atrapalhava o arrependimento perfeito”.

Os meninos tentam se proteger, seja pelo silêncio, os famosos segredos infantis, seja obedecendo ao “atávico instinto do antro escuro”, que faz parte dos mitos de origem: lugar de renascimento, momento da iniciação em muitas culturas. Assim, é sob uma laje pouco acessível junto a um cemitério abandonado, que Trindade, o filho do padre, se esconde. Segundo o vulgo, era a “escura e secreta Boca do Inferno”, habitada por aranhas e cobras. Nesse ventre de terra, como morto, Trindade está a salvo da zombaria dos outros, das obrigações religiosas impostas pelo padre e das contínuas surras de vara de marmelo. Ali ele repousa e talvez sonhe de olhos abertos com o crime que irá cometer e talvez libertá-lo, enquanto “a lua cheia acendia no musgo da pedra oscilações de um lago […]”.

Este conto, Filho de padre, que abre o livro, articula-se perfeitamente com O moinho, o último, fechando os restantes em seu compasso. Estes também obedecem à medida e ao controle dos temas, sempre violentos e sempre versando sobre a razão do extravio das crianças e de suas várias perdas. O tom do autor é baixo e alusivo, apostando na interpretação do leitor, que deve afiar o olhar em pormenores, chaves do sentido. A modulação quase imperceptível provoca momentos de afastamento crítico, quando então nos lembramos que apesar dos crimes, essas personagens são apenas crianças. É esse descompasso que funda a tensão dos textos, atiçando o leitor a entender o fundamento da tragédia: social, familiar ou apenas derivada da idade, o que pode dar um colorido bem-humorado a certas aflições. É o que acontece em Namorado morto, situado exatamente no centro do livro, como sua balança. Doquinha, de 11 anos, não cabe no velho nome da avó Eudóxia, como também não cabe na paixão despertada por um colega de classe, indiferente e mimado pela família “chique”. Repentinamente o garoto morre, está “bem morto dentro do caixão”. Ela tem raiva dele. Se era burra por não ter sabido se declarar, ele era mais burro ainda. Além disso,“morto, burro, não valia nada”. E se chovesse? “…deve ser horrível um defunto molhado”.

Através dessa lente deslocadora, observamos Doquinha fechada no quarto com sua fantasia e sua dor, “imóvel como um bicho que interrompe a respiração”, à semelhança de Trindade sob a laje. Ela imagina as conversas no velório, repensa a paixão, quer morrer. A mãe não acredita, porém “Doquinha queria mesmo morrer”. Devemos mesmo confiar nesse narrador dissimulado, que diz tantas coisas pela metade?

Talvez possamos afirmar que Boca do inferno conta a mesma história, à contraluz e com variações, como faziam os trovadores. Podemos aproximá-lo, com as devidas diferenças, de outro volume de contos com temática única, isto é, Velórios, de Rodrigo M. F. de Andrade, livro de 1936. Por motivos diferentes os autores renegaram seus contos, que podem ser considerados como pertencendo à mesma família nessa ficção que “quanto mais distanciada, mais fiel à realidade”, como escreveu Clara de A. Alvim a respeito de Velórios, na edição especial do livro em 2012, pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil.

Quanto a Boca do inferno, nada mais contemporâneo, apesar do tempo que decorreu. Mas, conforme sabemos — e não devemos esquecer — as datas não regem a contemporaneidade. A prova é que o livro de Otto veio à tona nos dias de hoje, novinho em folha, trazido pelos que se interessam de graça por literatura, neste mundo de mercados e lucros. Mas também — assim espero — deve interessar àqueles que se preocupam com nossas circunstâncias, levando-os a pensar duas vezes antes de aceitarem a absurda redução da idade penal em nosso país. Mais uma vez, crianças na berlinda.

Acho que devemos ouvir as palavras da cronista Eneida, em meio ao tumulto causado pela publicação do livro em 1957: “Muito más as crianças personagens de Otto Lara, mas muito pior que elas são os adultos que as cercam” (apud A. Massi, p. 145).

Ou uma tira recente dos Malvados, de André Dahmer, Palestra sobre os Novos Tempos:

— Só os mais violentos sobreviverão.
— Como podemos aprender a violência?
— Na base da porrada.

Boca do inferno
Otto Lara Resende
Companhia das Letras
188 págs.
Otto Lara Resende
Nasceu em São João del Rei (MG), em 1922. Formou-se em Direito. Passou por várias profissões, de professor a adido cultural em Bruxelas e Lisboa. Como jornalista, trabalhou em diversas publicações. É autor do romance O braço direito, da coletânea de crônicas Bom dia para nascer, entre outros. Morreu no Rio de Janeiro (RJ), em 1992.
Vilma Arêas

Escritora e ensaísta.

Rascunho