O inferno de mailer

"Parque dos cervos" não é o melhor livro de Norman Mailer, mas o autor sofreu um bocado para publica-lo
Norman Mailer negou-se a eliminar seis frases do romance e aí teve de penar para publicar “Parque dos cervos”
01/03/2002

Faria muita diferença se o posfácio que há no terceiro livro da carreira de Norman Mailer, Parque dos Cervos (Record, 392 págs), fosse na verdade um prefácio ou se eu não fosse destes leitores metódicos que consideram que, se, afinal, é um posfácio, deve ser lido após a leitura de toda a história.

Porque essas linhas confessionais de Mailer causam-nos pensamentos sobre muitas coisas , entre elas no quanto um escritor pode dar de si — em termos de sangue mesmo, anos de vida — para um livro, o quanto este livro pode tomar do escritor para si — sob o mesmo aspecto —, na maneira como atuava o mercado editorial americano, como atua hoje, no modo quase mecânico como atua o nosso mercado editorial e nas motivações de nossos autores.

Acontece que nesse posfácio, intitulado Quarto Anúncio de Mim Mesmo: a Versão Final de Parque dos Cervos, Mailer nos conta todo o périplo que o fez mudar o estilo de sua obra, reescrevendo-a por completo, sob um stress que ele considerou maior do que quando esteve na guerra e debaixo de doses pouco homeopáticas de coisas como maconha, Benzedrine, Seconal, Milltown, café, dois maços de cigarro por dia e alguma coisa mais que eu tenha esquecido.

Tudo começou com nada mais nada menos que seis frases. Seis pequenas frases que a editora Rinehart & Co. consideraram inconvenientes por um motivo ou por outro e que, na opinião do senhor Stanley Rinehart, seria salutar que fossem limadas. Alguma coisa mais explícita, para a época, sobre relações não muito católicas de um velho produtor de cinema e uma angelical garota de programa.

Agora pense em um jovem escritor que, aos 25 anos, foi aclamado pelo seu Os Nus e os Mortos, de 1948, e que, três anos depois, lançava um relativo fracasso, Barbary Shore. Deprimido, pois. Esse rapaz — que hoje, faça as contas, está com seus quase 80 anos —, segundo um médico, era o pouco feliz proprietário de um fígado a pedir arrego. E também, segundo a opinião de qualquer um que saiba avaliar a situação, estava sem saber lidar muito bem com essa história de sucessos e fracassos repentinos. Deprimido, queria só saber de tirar umas feriazinhas no México. Corto as seis frases, corto o que for preciso para publicar logo essa bagaça, foi, grosso modo, o que pensou.

Tudo estaria muito bem, se, de repente, no momento em que concordou em privar aquelas seis frases da sua existência no universo, elas não passassem a ser o núcleo moral da tal obra. Ei-la, a arte, a se impor ao artista. Temeroso de que tirar simplesmente as tais palavrinhas fizessem mal para a recuperação de seu fígado, Mailer recusou-se e, como resultado, teve de peregrinar por diversas editoras até que a oitava, a Putnam, aceitou o romance como estava, sem pedir uma única mudança. Aliás, os bambambans da editora disseram que adoravam o livro exatamente como ele era.

Andar com um original debaixo do braço por oito editoras não faz bem para os nervos de ninguém. E, uns seis meses antes do lançamento pela Putnam, as provas caem nas mãos de Mailer que, afinal, descobre que estava tudo errado. O narrador — um orfão que se tornara aviador e que, depois de ganhar uma bolada, se mudou momentaneamente para Desert D`Or, uma cidade povoada por estrelinhas do cinema — tinha a voz errada. A narrativa em primeira pessoa tinha a delicadeza e a poesia que tal sujeito, traumatizado por jogar bombas em alguma aldeia asiática, não teria. Ele teria que ser mais seco, mais forte e mais homem que o próprio autor, um Mailer que levara, um dia, duas marteladas na cabeça e ainda teve forças para brigar. Por um raciocínio intrincado, Mailer concluiu que o estilo teria que ser de uma leitura mais lenta e, no posfácio, dá exemplos de como fez isso brilhantemente.

Enfim, mudou completamente o romance. Até hoje pessoas lhe pedem para ler a primeira versão, o que, certamente, é uma bobagem. Também existirão os que, ao ler que Mailer refez o livro sob o efeito de drogas, acharão que essas substâncias o favoreceram em seu trabalho. É incrível que existam pessoas que leiam 20 páginas sem entender uma vírgula. Definitivamente, não foi para isso que Mailer escreveu o tal posfácio que é confessional de uma forma desconcertante. Muitos escritores não admitiriam sequer em um confessionário, ajoelhados sobre o milho, o que ele admitiu.

Esse posfácio, em que Mailer narra mais detalhadamente sua aventura editorial, suas motivações, suas descobertas, problemas e soluções, faz, portanto, pensar muito. Naturalmente, faz pensar nos escritores que escrevem preocupados mais com a crítica ou com os números das suas vendas. Sim, Mailer pensava compulsivamente nessas coisas, mas não que elas fossem um fim. As boas críticas e as boas vendas, na verdade, em sua ânsia de jovem escritor, seriam unicamente o coroamento de suas convicções que, coroadas ou não, continuariam sendo suas convicções.

Faz pensar nesse senhor Stanley Rinehart que, aparentemente mesquinho, queria limar seis frases de Parque dos Cervos, por considerar assim ou por querer recusar um romance que avaliou como ruim. E faz pensar em Mailer que brigou por essas seis frases e quase se deu mal. Enquanto isso, editores deixam passar capítulos e capítulos, livros inteiros — que poderiam muito bem deixar de existir na história da literatura — escritos por autores que não levantariam uma palha para defender suas, por assim dizer, obras. Faz lembrar o caso de Brida, de Paulo Coelho. Ele — que nesse caso é só um exemplo mais notável — admitiu, em uma entrevista há algum tempo, que alguns erros na edição teriam sido mantido propositadamente do original para preservar um estilo espontâneo ou sei lá o quê. Bem, não entro na qualidade artística de tais páginas, mas manter erros para preservar um estilo espontâneo é, certamente, estupidez. Conhece-se isso pelo nome de um espontâneo estilo de duvidar da inteligência do leitor. Em suma, desrespeito. Senhores escritores, senhores editores, tomem vergonha na cara.

Quero estar certo de que este senhor Stanley Rinehart, que recusou Parque dos Cervos, deu seu último suspiro com a certeza de que fez a coisa certa — por motivos morais ou estéticos — e não porque, na hora de assinar o contrato com Mailer, quis preservar um estilo espontâneo de ir ao banheiro. E que a Putnam, mesmo que conscientemente comprasse os direitos de publicação de uma obra menor, acreditasse no potencial do autor de Os Nus e os Mortos para fazer uma obra melhor, fosse para vender mais, fosse para mudar o mundo com a sua escrita.

Falta por aqui este tipo de sentimento, o que proporciona, a cada vez que um leitor depara com um novo nome na prateleira, um cheiro de falseta no ar. Faltam convicções, faltam ousadias e até caráter falta. Falta por aqui a figura do editor que discute a obra com o escritor, diplomaticamente aconselha-o. Se tiver seus pés bem firmes ancorados a bom argumentos, o autor não tem o que temer e, se não os tiver, talvez até saia ganhando e aprenda algo. Por outro lado, gente muito pequena se acha intocável e o mosquito morto na página do manuscrito, o respingo de café, devem ir, como estão, para o volume que cairá nas mãos do leitor. Tal é o andamento da literatura por esta banda de cá.

O livro Parque dos Cervos, em si, fala das pessoas que vivem em Desert D’Or — a uns 300 quilômetros de Hollywood — um balneário luxuoso no meio do deserto, freqüentado por estrelas e diretores de cinema vistos sob o ponto de vista de um certo Sergius O’Shaugnessy, aviador orfão com ganas de ser escritor. A narração em primeira pessoa, outros críticos já disseram, apresenta defeitos já que, em vários momentos, Sergius parece onisciente. Alguns chegaram a sugerir que a narração fosse feita em terceira pessoa. Em certas partes, Mailer parece querer justificar o problema, como quando o aviador diz ser capaz de escrever sobre uma cidade como se tivesse vivido 20 anos nela, sendo que, na verdade, passou 20 minutos por ali: “Algum  dia vou escrever um livro sobre uma cidade que visitei durante vinte minutos, e, se fizer isso de forma convincente, todo mundo vai acreditar que vivi lá durante vinte anos. De modo que não há sentido em pedir desculpas — tenho a presunção de que sei o que aconteceu, e pelo menos todo mundo em Desert D’Or sabia que o caso deles começou bem.” E podemos ouvir, nesse trecho, a voz do próprio Mailer, ao contrário do que diz o personagem, a pedir perdão por seu narrador-personagem onisciente. Sergius se refere a Charles Eitel e Elena Esposito. Ele, um diretor perseguido pelo macartismo, colocado na lista negra dos estúdios por ser considerado comunista ou coisa assim, e ela, jovem ex-amante de um produtor.

A idéia do romance é mostrar os bastidores do mundo cinematográfico e deve ter sido um tanto chocante em 1955. Mailer, que conhece bem o meio — ele mesmo já dirigiu alguns filmecos —, revelou o ambiente entediado e decadente das estrelas de cinema, as tramóias e os casamentos arranjados.

Aliás um dos grandes momentos da história é quando um dono de estúdio tenta dar um empurrão na carreira de uma de suas atrizes com o casamento com outro astro de seu plantel. Detalhe: ela acabou de casar com outro e o cara com quem o chefe quer que ela junte os trapinhos é assumidamente homossexual. Os personagens são tão barra-pesada que um deles chega a ter um caso com a ex-esposa a certa altura do livro. Mas em época de namoricos de ocasião com apresentadoras de programas infantis, rebentos em momentos oportunos, esses detalhes — que na época devem ter soado como revelações retumbantes — não chocam nem a minha vovozinha. Por isso, é bom lembrar, no momento em que se lê, o contexto em que a narrativa foi escrita.

O fato é que, apesar de talvez ter sido o mais sofrido romance de Mailer em termos de produção, essa não é a sua mais empolgante história. É possível que os personagens, por serem tão entediados e aborrecidos, tenham contaminado o texto com esse espírito em alguns momentos. Realmente, em seu lançamento, dividiu os críticos entre aqueles que o espinafraram e aqueles que babaram no ovo. No entanto, ler um livro de Mailer nunca é perda de tempo. Não esqueça, porém, de dar uma olhada no posfácio antes. Aí sim, o contato com o texto pode se tornar uma aula de estilo e de literatura.

Parque dos cervos
Norman Mailer
Record
389 págs.
Alessandro Martins

É jornalista e blogueiro. Edita vários blogs de cultura. Um deles é o Livro e Afins: http://livroseafins.com.

Rascunho