Às vezes, parece que nada faz sentido. Muitas vezes, é possível cogitar que falta sentido. Em tudo. Para tudo. Sobretudo. Há quem tenha a percepção de que, na maior parte das situações e ocasiões, nada tem nem faz sentido. Um destino humano se dá por caminhos, circunstâncias e atitudes nem sempre coerentes. Então, se um dia um sujeito acorda metamorfoseado em um inseto, é possível que o tradutor da obra de Franz Kafka no Brasil se transforme em escritor e ofereça aos leitores uma ficção permeada pelo nonsense.
Por trás dos vidros traz 49 contos de Modesto Carone. Todos eles, alguns inéditos e outros já publicados em livros, caracterizados por problematizar a falta de sentido. Foram escritos com linguagem clara que propõe comunicação com o leitor. Mas são enredos que têm a finalidade de provocar estranheza. E podem provocar estranheza no público receptor por que tratam de situações que podem ter tudo, tudo, menos sentido.
Na ficção de Carone o limite entre o que pode ser sonho, delírio e ação é frágil. De repente, um personagem encontra um cadáver enforcado dentro do guarda-roupa. Outra voz, em outro texto, sugere: “Como as imagens poéticas não mudam o mundo, dei a partida e fui para casa aliviado por não pensar em mais nada”. Personagens, outros, entorpecidos pela realidade, buscam inéditas Pasárgadas. Numa aleatória página do livro se lê: “Órbitas acesas como pedras de carvão”. Um personagem tem a mão decepada. Outro tem a convicção de que determinado mês é feito somente a partir de crueldades. Um terceiro busca refúgio dentro de uma caixa d’água. Um quarto mata, literalmente, o pai. E sombras acompanham os personagens caronianos — da mesma forma que fazem companhia a humanos da realidade real.
Contraponto ao real?
Os desdobramentos, caminhos e descaminhos da realidade real, apesar da ilusão de que algo pode vir a fazer sentido, insistem em afirmar, e confirmar, que a única certeza é o nonsense. E a proposta ficcional de Modesto Carone dialoga com isso. Os destinos dos personagens caronianos não têm sentido. Seja o personagem que quase consegue ter uma relação com uma bailarina. Seja o personagem que não sabe em que cidade está e sequer pode precisar se sonha ou está acordado. Seja o sujeito que depois de ser assaltado decide beber café e não pensar em nada. Seja o burocrata que não vê saídas no labirinto em que está enredado, preso e engessado. Seja o escritor em crise de criação e de relacionamento. A falta de sentido é elemento comum entre esses e os demais personagens caronianos.
E a falta de sentido dos personagens caronianos estabelece conexões com o nonsense dessa obra inacabada que é a vida de qualquer personagem. Afinal, nenhum Moisés pisa na terra prometida, nenhum Jamil Snege desfruta de aplauso e glória por uma produção genial, nenhum Newton Sampaio é profeta em sua terra. Antes, as teclas do piano são de borracha, onde queres revólver há coqueiros, o próximo passo não passa de precipício — e o sonho se confunde com realidade, e a realidade se traduz em inescapável pesadelo.
Então, casualmente, um interlocutor sintoniza a FM ficção Modesto Carone e a freqüência induz, seduz a um estado de estar e ser que desestabiliza por soar próximo e desestrutura qualquer certeza por ruir todo solo presente e qualquer futuro. Um personagem tem os pêlos do corpo a crescer e a única surpresa é que não há nem haverá salvação, redenção nenhuma, apenas o deixar estar, ruir, perecer, falir.
E assim a ficção de Carone insinua uma contraposição ao real, parecendo inventar absurdos, mas o que é mais absurdo que a realidade real, tão próxima de qualquer pulsante ser?
O processo
E se um dia você, que paga todos os impostos, você, que jamais furou o sinal vermelho, você, que acredita nos eleitos pelo processo democrático, você, que tem esperança na realização dos projetos governamentais anunciados para melhorar a educação do povo brasileiro, você, que honra todos os compromissos, então, um dia, você recebe na porta da sua casa, por meio de uma voz oficial, a notícia de que não tem mais o direito de ir-e-vir e se entrega sem questionar mesmo sabendo que nada fez para receber tal sentença: o inesperado chegou e o processo está instalado.
Supostos absurdos inesperados estão distribuídos em meio às páginas de Por trás dos vidros, mas surpresas imprevisíveis e fatais acontecem desde sempre e desde muito, e não foi assim com aqueles que embarcaram em caravelas navegando em águas nunca antes navegadas? E quem poderia prever que tempos, tempos, tempos depois iria surgir uma meridional cidade chamada Sorocaba, onde em 1937 nasceria um sujeito que se chamaria e se chamou e é chamado Modesto Carone? (E então surgiriam textos, escritos, reescritos e no século 21 uma editora paulista publicaria alguns desses textos num livro que, como um todo, trata de supostos absurdos inesperados).
E se um personagem faz anos que passa os dias agachado, é possível a frase “o olho me espia e sua carne é violeta”. E se outro personagem abandona o apartamento apenas depois que um corpo entrou em decomposição, também é viável a imagem: “As paredes úmidas absorvem toda sombra de luz; imagino que é assim que alimentam os cogumelos à noite”. E se o mundo continua o mesmo apesar de tudo e de tanto e de tanta ação, inação, desação, é bem possível que um livro como Por trás dos vidros tenha ido até as mãos e órbita de um sujeito que a vida também transformou em resenhista e que este sujeito, de repente, apesar de tantos outros livros ao redor, tenha lido o livro e, numa coincidência inacreditável, o resenhista, que poderia ter feito e mesmo estar fazendo tantas outras ações, quem sabe, escreveu um texto sobre o livro que trata literariamente da falta de sentido em tudo, e — quem sabe? — o Rascunho ainda publique a tal resenha.