O inevitável nonsense

Na coletânea de contos “Por trás dos vidros”, Modesto Carone trata de uma incômoda falta de sentido
Modesto Carone: frágil limite entre o que pode ser sonho, delírio e ação.
01/02/2008

Às vezes, parece que nada faz sentido. Muitas vezes, é possível cogitar que falta sentido. Em tudo. Para tudo. Sobretudo. Há quem tenha a percepção de que, na maior parte das situações e ocasiões, nada tem nem faz sentido. Um destino humano se dá por caminhos, circunstâncias e atitudes nem sempre coerentes. Então, se um dia um sujeito acorda metamorfoseado em um inseto, é possível que o tradutor da obra de Franz Kafka no Brasil se transforme em escritor e ofereça aos leitores uma ficção permeada pelo nonsense.

Por trás dos vidros traz 49 contos de Modesto Carone. Todos eles, alguns inéditos e outros já publicados em livros, caracterizados por problematizar a falta de sentido. Foram escritos com linguagem clara que propõe comunicação com o leitor. Mas são enredos que têm a finalidade de provocar estranheza. E podem provocar estranheza no público receptor por que tratam de situações que podem ter tudo, tudo, menos sentido.

Na ficção de Carone o limite entre o que pode ser sonho, delírio e ação é frágil. De repente, um personagem encontra um cadáver enforcado dentro do guarda-roupa. Outra voz, em outro texto, sugere: “Como as imagens poéticas não mudam o mundo, dei a partida e fui para casa aliviado por não pensar em mais nada”. Personagens, outros, entorpecidos pela realidade, buscam inéditas Pasárgadas. Numa aleatória página do livro se lê: “Órbitas acesas como pedras de carvão”. Um personagem tem a mão decepada. Outro tem a convicção de que determinado mês é feito somente a partir de crueldades. Um terceiro busca refúgio dentro de uma caixa d’água. Um quarto mata, literalmente, o pai. E sombras acompanham os personagens caronianos — da mesma forma que fazem companhia a humanos da realidade real.

Contraponto ao real?
Os desdobramentos, caminhos e descaminhos da realidade real, apesar da ilusão de que algo pode vir a fazer sentido, insistem em afirmar, e confirmar, que a única certeza é o nonsense. E a proposta ficcional de Modesto Carone dialoga com isso. Os destinos dos personagens caronianos não têm sentido. Seja o personagem que quase consegue ter uma relação com uma bailarina. Seja o personagem que não sabe em que cidade está e sequer pode precisar se sonha ou está acordado. Seja o sujeito que depois de ser assaltado decide beber café e não pensar em nada. Seja o burocrata que não vê saídas no labirinto em que está enredado, preso e engessado. Seja o escritor em crise de criação e de relacionamento. A falta de sentido é elemento comum entre esses e os demais personagens caronianos.

E a falta de sentido dos personagens caronianos estabelece conexões com o nonsense dessa obra inacabada que é a vida de qualquer personagem. Afinal, nenhum Moisés pisa na terra prometida, nenhum Jamil Snege desfruta de aplauso e glória por uma produção genial, nenhum Newton Sampaio é profeta em sua terra. Antes, as teclas do piano são de borracha, onde queres revólver há coqueiros, o próximo passo não passa de precipício — e o sonho se confunde com realidade, e a realidade se traduz em inescapável pesadelo.

Então, casualmente, um interlocutor sintoniza a FM ficção Modesto Carone e a freqüência induz, seduz a um estado de estar e ser que desestabiliza por soar próximo e desestrutura qualquer certeza por ruir todo solo presente e qualquer futuro. Um personagem tem os pêlos do corpo a crescer e a única surpresa é que não há nem haverá salvação, redenção nenhuma, apenas o deixar estar, ruir, perecer, falir.

E assim a ficção de Carone insinua uma contraposição ao real, parecendo inventar absurdos, mas o que é mais absurdo que a realidade real, tão próxima de qualquer pulsante ser?

O processo
E se um dia você, que paga todos os impostos, você, que jamais furou o sinal vermelho, você, que acredita nos eleitos pelo processo democrático, você, que tem esperança na realização dos projetos governamentais anunciados para melhorar a educação do povo brasileiro, você, que honra todos os compromissos, então, um dia, você recebe na porta da sua casa, por meio de uma voz oficial, a notícia de que não tem mais o direito de ir-e-vir e se entrega sem questionar mesmo sabendo que nada fez para receber tal sentença: o inesperado chegou e o processo está instalado.

Supostos absurdos inesperados estão distribuídos em meio às páginas de Por trás dos vidros, mas surpresas imprevisíveis e fatais acontecem desde sempre e desde muito, e não foi assim com aqueles que embarcaram em caravelas navegando em águas nunca antes navegadas? E quem poderia prever que tempos, tempos, tempos depois iria surgir uma meridional cidade chamada Sorocaba, onde em 1937 nasceria um sujeito que se chamaria e se chamou e é chamado Modesto Carone? (E então surgiriam textos, escritos, reescritos e no século 21 uma editora paulista publicaria alguns desses textos num livro que, como um todo, trata de supostos absurdos inesperados).

E se um personagem faz anos que passa os dias agachado, é possível a frase “o olho me espia e sua carne é violeta”. E se outro personagem abandona o apartamento apenas depois que um corpo entrou em decomposição, também é viável a imagem: “As paredes úmidas absorvem toda sombra de luz; imagino que é assim que alimentam os cogumelos à noite”. E se o mundo continua o mesmo apesar de tudo e de tanto e de tanta ação, inação, desação, é bem possível que um livro como Por trás dos vidros tenha ido até as mãos e órbita de um sujeito que a vida também transformou em resenhista e que este sujeito, de repente, apesar de tantos outros livros ao redor, tenha lido o livro e, numa coincidência inacreditável, o resenhista, que poderia ter feito e mesmo estar fazendo tantas outras ações, quem sabe, escreveu um texto sobre o livro que trata literariamente da falta de sentido em tudo, e — quem sabe? — o Rascunho ainda publique a tal resenha.

LEIA ENTREVISTA COM MODESTO CARONE

Por trás dos vidros
Modesto Carone
Companhia das Letras
201 págs.
Modesto Carone
Nasceu em Sorocaba (SP), em 1937. Já atuou como jornalista. Também lecionou literatura em diversas universidades, no Brasil e exterior. Escreveu dois livros de ensaios, três de contos e o romance Resumo de Ana. A coletânea Por trás dos vidros reúne contos publicados nos livros As marcas do real (1979), Aos pés de Matilda (1980) e Dias melhores (1984) e textos editados em revistas e jornais. Carone é o tradutor da obra de Franz Kafka no Brasil.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho