O inevitável desencanto com o mundo

Fábio Campana utiliza a ditadura e a desilusão para apresentar um contundente olhar sobre o drama humano
Fábio Campana: implacáveis e precisas observações sobre as elites e suas manias
01/04/2003

O guardador de fantasmas, romance de Fábio Campana, apresenta a trajetória de um personagem, do ponto de vista dele mesmo, depois de ter vivido tudo que será narrado. O autor inicia borgianamente, dando a entender que não sabe exatamente do que está tratando, mas sinaliza, com sutileza, o que será revelado ao longo do texto. O protagonista Carlos vai conhecer o mundo, e, a cada nova descoberta, uma nova decepção. De ilusão em ilusão, se frustra com o sistema educacional, com os adultos, com a justiça, com a religião, enfim, com as pessoas e com o mecanismo social de sua cidade, Foz do Iguaçu. Paralelamente, o protagonista tem um grande conflito com seu pai: a figura e a presença paterna representam um não para tudo. Se em um primeiro momento foi possível refugiar-se na imaginação, com o tempo, teve de mudar. De casa e de cidade.

Carlos era ninguém em Curitiba, nem sobrenome tinha. E será por meio da condição do protagonista — que representa um olhar estrangeiro — e da voz de outros personagens, que o autor fará sua leitura da capital paranaense. Fábio Campana mostra — em cenas, diálogos e reflexões — o conservadorismo que treme diante de qualquer sinal de mudança, a obsessão pela cópia, a tendência de esmagar e isolar todo e qualquer talento local, a autofagia, e outros costumes que caracterizam o curitibano. As descrições do centro da cidade são impecáveis. Assim como são implacáveis, e precisas, as observações sobre as elites e suas manias, farsas, simulações e delírios, como mitificar antepassados supostamente nobres que na realidade são oriundos das regiões mais carentes e atrasadas da Europa.

Da escola para a pensão. Da pensão para a escola. Esta era a rotina do protagonista — que incluía doses diárias de decepção. Se o povo vivia na ignorância, os professores, por sua vez, insistiam em propagar o equívoco. E foi por meio de um colega, Raul, que Carlos viu a possibilidade, a única, de mudança. A esperança estava na transformação da sociedade, que seria viabilizada pelas ações do Partido Comunista. A ingenuidade do personagem central e de seus amigos — e de toda a esquerda — era tamanha, que foi difícil assimilar a notícia do golpe de 64.

Nos primeiros anos depois da tomada do poder por aquilo que se chamava direita, Carlos decidiu ampliar de vez seus horizontes e a leitura sistemática, de obrigação, tornou-se hábito. O protagonista alimentava o sonho de mudar o mundo, tornando-o mais justo, e se envolveu ainda mais com o Partidão. Suas ações transgressoras credenciaram-no como um estorvo. Foi preso pelos militares.

As descrições do momento da prisão, do deslocamento até o cárcere e das sessões de tortura — praticadas pelos militares nos anos de chumbo — são de uma verossimilhança assustadora. Fábio Campana, que viveu a experiência, apenas traduziu as situações em imagens. Ele não está se fazendo de vítima, não está acusando ninguém, não está ressentido, e conseguiu não cair no panfletarismo — tentação irresistível para quem trata do assunto.

O guardador de fantasmas mostra um protagonista sendo conduzido pelos acontecimentos — aspecto característico e definidor de um romance. E todos os incidentes e personagens dão consistência a um enredo que traz um personagem central em progressivo desencanto com o mundo. Nada é gratuito no texto. Os capítulos em que há apenas reflexões e os capítulos poéticos tornam a narrativa ainda mais rica.

O estado de liberdade se revelou decepcionante. Os colegas não voltavam da prisão ou retornavam trazendo seqüelas irrecuperáveis. Os amigos do passado se acovardaram e estavam mortos em suas rotinas medíocres e sem perspectivas. Os parentes mantinham ainda mais distância. O pai morreu. Havia a mãe. E nada mais.

Ao final, Carlos está lambendo feridas. Nada deu certo. O conhecimento não lhe conduziu a um mundo melhor. Não foi possível transformar a sociedade. O conflito com o pai nunca se resolveu. Pior, transferiu-se para o regime militar — ambos castradores. Dos relacionamentos amorosos, sobraram apenas espinhos. Sua Marta amada não é esta que envelheceu, mas aquela do passado, daquele momento em que tudo seria possível. Os fantasmas estão rondando. Voltarão sempre.

Por tratar com maturidade e distanciamento de um momento histórico complexo, O guardador de fantasmas figura como o mais contundente romance escrito sobre a ditadura militar brasileira. E, por apresentar um enredo bem resolvido, personagens complexos, densidade psicológica e um texto extremamente ágil, O guardador de fantasmas pode ser apontado como um dos mais significativos romances dos últimos anos. É, acima de tudo, um olhar sobre o drama humano, possível somente após vivência, leitura e reflexão. Ou seja: é aquilo que chamam de literatura.

O guardador de fantasmas
Fábio Campana
Travessa dos Editores
334 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho