O horror do espetáculo

Didi-Huberman apresenta o rigor de Bertolt Brecht e seu pensamento acerca da guerra, história e política
Georges Didi-Huberman, autor de “Quando as imagens tomam posição”
29/10/2018

Quando as imagens tomam posição, com subtítulo O olho da história I, é um texto fundamentado em duas obras de Bertolt Brecht: l’Arbeitsjournal (Diário de trabalho), escrito em seus anos de exílio, 1933-1948, e Kriegsfibel (ABC da guerra), que começou a escreve no início da guerra e terminou com uma publicação um tanto confusa devido à censura alemã, em Berlim durante o ano de 1955. O leitor encontrará o que de comum existe entre esses dois períodos testemunhado por imagens retiradas de jornais, em sua maior parte legendadas, acrescidas de textos.

Importante salientar o destaque de ABC da guerra na composição de Quando as imagens tomam posição. ABC combina poesia e a reverberação de acontecimentos históricos. Brecht recorta as fotografias dos jornais, utiliza quadras (versos) como legendas, e as classifica segundo critérios avessos à cronologia ou qualquer ordem. O leitor poderá analisá-las pelo viés estético, ético, político e artístico. Convenhamos, não é pouco.

Didi-Huberman analisa criticamente o ABC da guerra, o que não torna Quando as imagens tomam posição um texto técnico, destinado aos especialistas em Brecht ou em fotografia (embora a fotografia seja tema central), e poesia. O leitor entra em contato com uma obra original e, acima de tudo, bastante reveladora acerca de práticas artísticas e a percepção de imagens que nos cercam. E por falar em imagem e fotografia, vale destacar, à página 37:

Em 1927, com efeito, Moholy-Nagy (crítico, fotógrafo, pintor, de origem húngara) escrevia, na sequência de Malerei Fotofrafie Film, que “o analfabeto do futuro não será o iletrado, mas o ignorante em matéria de fotografia”.

Ao abordar a arte fotográfica, impossível não contrapor o mito da caverna. Imagens e sombras, estas como realidade para os acorrentados estáticos. Um prisioneiro consegue se libertar, experimenta imagens, luzes cores, eufórico retorna à caverna e oferece a boa nova aos companheiros de infortúnio que, diante do exposto, o consideraram louco. Para evitar a propagação de sua descoberta, os prisioneiros matam o arauto de uma nova realidade.

Uma das propriedades da fotografia é transmitir a impressão de um extremo poder capaz de guardar o mundo, a realidade, desde que em pedacinhos. Não deixa de ser também uma das atividades onde a ética mais seja aviltada. Vale tudo em nome de uma foto, um momento perpetuado que pode render fama e dinheiro. O capitalismo costuma justificar suas atrocidades com a instabilidade da palavra profissionalismo e nesse caso a vítima é por demais sabida, o humanismo. O capitalismo impõe uma caverna com ar condicionado e tevê sempre ligada.

Quando as imagens tomam posição exige do leitor a reflexão diante das fotos, o que levou Brecht a escolher esta ou aquela foto — foi movido por um interesse íntimo ou um interesse geral?

Georges Didi-Huberman mostra como Brecht transitava entre arte e política, como as imagens tomam posição, quer política, quer historicamente. Nesse sentido, apresenta um recorte que evidencia tanto o rigor brechtiano quanto o dogmatismo do dramaturgo e seu pensamento acerca da guerra, da história e da política.

Trata-se de um documento. Sendo documento, salta ao primeiro plano a memória. Conforme Kossoy, a fotografia é memória e com ela se confunde. Ao mesmo tempo, consegue criar realidades. Segundo Brecht, as emoções são históricas, e sendo assim estão limitadas ao passado. Estarão? Prefiro dizer que se tornam passado, no entanto, não ficam circunscritas ao passado. Tomo como exemplo a figura 26, página 156. Uma mulher, sustentada por um homem para evitar a queda, abre os braços diante do cadáver do filho. Antígona e Pietá, na legenda:

E chamo mentirosa, oh mulher, toda piedade/ Que não se transforma em cólera rubra/ Não se detendo antes que seja arrancado/ Esse velho espinho da carne da humanidade.

O leitor percebe a relação corpo/fotografia, o que permite refazer aquela cena, recriar o passado; a experiência com o passado, que, a partir da fenomenologia (objeto intencional/objeto físico), Barthes, referindo-se à fotografia outorga-lhe o noema Isso foi, justificado por essa propriedade de “inacessível”.

Na figura 26, vemos a relação corpo-fotografia/ temporalidade aliada à subjetividade. O que podemos depreender do gesto desesperado da mãe diante do cadáver do filho, da posição do pai, que também sofre, mas precisa oferecer/ser o apoio?

Da imagem citada, ainda podemos imaginar o lugar, a relação entre aquele pai e aquela mãe, deles com o filho, conceder-lhes um estilo de vida anterior à guerra e um próximo emoldurado pela dor da perda. Logo, a fotografia extrapola a temporalidade, segundo Susan Sontag: “Nos Estados Unidos, o fotógrafo não é simplesmente a pessoa que registra o passado, mas aquela que o inventa”.

Atualmente, segundo Guy Debord, em nossa sociedade do espetáculo nos deparamos com uma infinidade de fotografias, os celulares também servem para isso, geralmente frutos de mentes educadas pela imprensa, pela publicidade, onde o importante é o pôr do sol trabalhado pelos filtros dos iphone. Caro leitor, não considere este parágrafo como uma crítica, uma oposição, à democratização deste meio artístico, mas ao despreparo que culmina com a exacerbação do “mais do mesmo”. Qual a razão para tanta fotografia de pôr do sol no Instagram? O importante é a fotografia ou o nome do autor associado? A sociedade do espetáculo bem que podia ser um pouco exigente.

O que nos leva a concluir que tanto a época das fotos recortadas por Brecht quanto nossa atualidade refletem o aprimoramento do desarranjo da sociedade. Um espetáculo cada vez mais horroroso.

Quando as imagens tomam posição
Georges Didi-Huberman
Trad.: Cleonice Paes Barreto Mourão
UFMG
280 págs.
Georges Didi-Huberman
Nasceu na França, em 1953. É professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Entre seus trabalhos mais importantes destacam-se La peinture incarnée (1985) e Devant l’image: question posée aux fins d’une histoire de l’art.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho