A matéria-prima da literatura de Michel Houellebecq é exatamente a mesma que pontuou toda a obra, literária e cinematográfica, de Pasolini: a condição humana. Em um de seus poemas, Versos finos como traços de chuva, o polemista italiano parece resumir tudo o que o colega francês produziu até agora: “É preciso condenar/ severamente quem/ crê nos bons sentimentos/ e na inocência”. Quando publicou, em 2015, Submissão, Houellebecq maximizou a sua experiência de subversão. O romance, que narra uma França governada pelo radicalismo islâmico, cuja ascensão aconteceu em 2022, seria a chave para o atentado contra os jornalistas do semanário satírico Charlie Hebdo naquele ano e que resultou na morte de 12 pessoas. Era Houellebecq quem estampava a capa do periódico em 7 de janeiro.
Aniquilar, a investida mais recente do escritor, guarda algumas semelhanças com seu irmão mais famoso: ambos tratam da França à beira de um ataque de nervos. Aqui, não é mais um estado absolutista e teocrático, mas um governo imbecilizado pelas redes sociais e pelo radicalismo de uma direita midiatizada. Desta vez, o anti-herói de Houellebecq é Paul Raison, um funcionário do alto escalão do Ministério da Economia, um homem em um estado metaforicamente vegetativo, vivendo em um vazio existencial. Seu casamento com Prudence está na corda bamba — na verdade, apenas existe burocraticamente —, seu pai está perto da morte — o único motivo pelo qual a família volta a se reunir — e os irmãos Cécile e Aurélien — uma católica fervorosa e eleitora da Marine Le Pen, e um restaurador de tapeçaria enfiado em um casamento, no mínimo, abusivo —, e, enquanto tenta equacionar toda essa confusão pessoal, Raison precisa lidar o surgimento de um comediante de televisão capaz de assumir a liderança na corrida eleitoral contra o ministro Bruno Juge, chefe direto do protagonista, e tentar neutralizar um grupo terrorista.
Em Aniquilar, Houellebecq cria um ambiente niilista e sensível, observando cuidadosamente a dissolução do mundo que conhecemos. Raison, assim como Florent-Claude Labrouste, o depressivo e impotente de Serotonina, é o estereótipo do pequeno-burguês e do sujeito líquido. As suas identidades estão diluídas naquilo que consomem: o primeiro, a sua vaidade, e o segundo, uma quantidade assombrosa de remédios. Os dois, portanto, não estão longe de Michel Renault, de Plataforma, que também trabalha para o governo francês e embarca para a Tailândia em busca de turismo sexual, ou de Jed Martin, o artista de O mapa e o território.
Houellebecq não está interessado nas questões postas, mas na maneira como aquilo que conhecemos, como mundo e literatura, se dissolve à medida que ser moderno significa abrir mão da identidade e do lugar social. O próprio escritor não acredita em nacionalidade. Sob seu ponto de vista, o que realmente importa é a individualidade e, por isso, o esgotamento do caráter identitário é tão presente.
Não-lugar
O esfacelamento dos corpos, que em muitos dos livros de Houellebecq são o ápice das histórias, em Aniquilar é uma retórica metafórica, porém, não menos forte ou contundente. Raison, como seu sobrenome presume, está chegando à idade da razão de Sartre, entretanto, com duas décadas de atraso. Esse é o propulsor do seu deslocamento no tempo e no espaço, habitando um lugar, um não-lugar, com o qual não tem qualquer pertencimento.
Não é ao acaso que o centro dramático do livro passe de Paris para o interior — o mesmo movimento que Labrouste executa em Serotonina —, em uma região idílica, onde a arrazoada família viveu por muitos anos, um cenário parecido com o que Wim Wenders cria em Os belos dias de Aranjuez. Lá, cara a cara com seu próprio passado, Raison não se reconhece nos pôsteres do quarto, nos discos e livros que ainda estão como havia deixado. Nesse museu de si mesmo, o protagonista aprofunda as diferenças com Cécile e Aurélien.
De alguma maneira, ele é como Roland, o personagem principal de Lições, o mais recente romance de Ian McEwan. Tanto um quanto o outro são homens flutuantes, em busca de algum entendimento de sua missão na Terra — se é que existe. Nos dois romances, ao passo em que a trama avança, seus protagonistas se tornam ainda mais perdidos, distantes do ponto inicial. Quando Raison reata com a esposa, depois de uma década vivendo como estranhos na mesa casa, há uma espécie de retomada e reencontro com o homem que já foi, o que não é suficiente para mantê-lo no prumo — algo que McEwan também usaria em Solar e Na praia, obras sobre homens partidos ao meio.
Surpresa apocalíptica
Albert Camus em uma das passagens de L’homme révolté diz que o tal homem revoltado é aquele que aprende a dizer não. Raison é esse homem, porém, covarde. Todas as suas negativas são, na realidade, travestidas de afirmações. Mesmo desprezando o trabalho e a família, Paul é incapaz de exteriorizar as suas reais intenções de rompimento com tudo o que o cerca, algo que Fanshawe, de Paul Auster, consegue perpetrar com naturalidade, em Trilogia de Nova York.
Houellebecq retrata com sobriedade o ocidente preso em obrigações e convenções. Essas amarras sociais dão a liga de Aniquilar: são elas que permitem que peças tão díspares se colem em uma narrativa tão crua sobre a decadência iminente do sistema capitalista. O livro não se pretende profético — embora Plataforma e Submissão também não e acabaram por ser —, no entanto, o olhar aguçado do escritor talvez enxergue o que a maioria de seus leitores não possa. E é aí que reside o grande trunfo do autor, a surpresa apocalíptica, devastadora.
Aniquilar é menos catastrófico, porém, não deixa de ser catártico e impressionista. Naquele que pode ser o último livro de Michel Houellebecq — ao menos é o que deixa a entender os agradecimentos —, o mundo parece não ter mais solução. Tudo o que havia sido ensaiado ao longo de sua obra chega ao ápice da impossibilidade de solução. E porque — como dizia Pasolini: “Que tudo isso seja banal/ nem lhe passa de longe pela mente:/ com efeito, que seja assim ou assado/ não lhe dá nenhum proveito” — o ser humano não aprendeu a enxergar a sua própria ruína.