O homem oco

“O seminarista” comprova esvaziamento da fórmula de Rubem Fonseca
Rubem Fonseca por Osvalter
01/01/2010

Uma das melhores histórias de Rubem Fonseca é, sem dúvida, o conto Feliz ano novo, que dá título ao livro de 1975. O enredo, bastante conhecido, trata de um grupo de assaltantes que invade uma festa de réveillon em um bairro rico, onde torturam e assassinam vários convidados. O que mais chocava (e ainda choca) o leitor não era apenas a violência em si, mas o modo como era apresentada: através do ponto de vista dos criminosos, sem uma voz que julgasse e condenasse as atrocidades ali descritas. Era um texto amoral. A censura achava o mesmo, e proibiu a circulação do livro.

O conto promove uma discussão antiga, mas ainda relevante, pois trata de aspectos sensíveis à própria natureza da ficção, como a (im)possibilidade de se representar fielmente a realidade e a suposta obrigatoriedade de o escritor marcar um posicionamento ético frente ao universo que descreve. Fonseca foi duplamente bem sucedido, porque conseguiu consolidar uma linguagem nova, seca, que não disfarçava ou romantizava a violência, e isso sem um distanciamento que julgasse e, conseqüentemente, propusesse uma leitura moralizante dos fatos narrados.

Foi assim desde seu livro de estréia, Os prisioneiros (1963), e ninguém pode negar que seus contos dos anos 60 e 70 continham um vigor poucas vezes igualado até hoje. Com o passar dos anos, porém, a literatura de Rubem Fonseca foi perdendo o impacto dos primeiros livros, embora tenha conquistado cada vez mais leitores. Bom entretenimento, A grande arte e Bufo & Spallanzani, por exemplo, dialogam de maneira nada ingênua com a tradição dos romances policiais, e se tornaram best-sellers para os padrões do mercado editorial brasileiro. Mas livros como O selvagem da ópera, e, mais recentemente, Mandrake — a Bíblia e a bengala demonstram um evidente desgaste de temas e fórmulas narrativas. Talvez Fonseca tenha se acomodado ao mercado; talvez, como defendem alguns, ele esteja desenvolvendo uma obra coerente que faz da repetição, da auto-referência e da intertextualidade seus principais procedimentos. São questões levantadas também por seu último romance, O seminarista, o primeiro lançado pela editora Agir.

Esgotamento
A história não é nada original: matador de aluguel tenta se aposentar, mas o passado o persegue, e a violência foge a seu controle. A apresentação do narrador é sucinta e objetiva: “Sou conhecido como O Especialista, contratado para serviços específicos. O Despachante diz quem é o freguês, me dá as coordenadas e eu faço o serviço”. Tais serviços são executados com a eficiência e objetividade reproduzidos no texto, em períodos curtos e diretos. Como o comum dos personagens de Fonseca, porém, o narrador é também um homem culto, apreciador de poesia e afeito a uma variada gama de citações latinas, conhecimento herdado do tempo de seminarista:

Aut amat, aut odit mulier; nihil est tertium. A mulher ama ou odeia, não há outra escolha, como dizia um poeta latino cujo nome não recordo. Se Kirsten me abandonasse eu iria me sentir, como no poema de Eliot, um homem oco, empalhado, dessecado, uma fôrma sem forma, sem cor, força paralisada, gesto sem vigor.

Repete-se aqui o que já foi exaustivamente dito a respeito de outros livros de Rubem Fonseca: o acúmulo de citações literárias e digressões (que podem ser a respeito de um vinho, do preparo de certo tipo de bacalhau, ou sobre a batalha de Alcácer-Quibir, na qual morreu D. Sebastião) terminam por depor contra a coerência e a unidade do livro.

Seria possível argumentar que um dos principais procedimentos da ficção de Fonseca é precisamente o de acumular, em um mesmo tecido narrativo, elementos aparentemente desconexos, como o enredo policial (esvaziado do interesse investigativo comum ao gênero) e as digressões cultas. Tais digressões são aparentemente incompatíveis com o universo marginal descrito nas histórias (afinal, quantos assassinos profissionais citam Sêneca?), mas possuem um papel fundamental na caracterização dos personagens, criando aquelas idiossincrasias que fizeram de Mandrake — o advogado criminal especializado em facas, charutos e mulheres — uma figura tão carismática. Além disso, as digressões também “atrasam” o desenvolvimento do enredo, dispersando sua unidade de efeito. Essa aparente incongruência seria, então, deliberada: um modo de operar criticamente sobre as convenções literárias (da literatura policial, principalmente), desautorizando os modelos narrativos tradicionais e criando, assim, uma literatura que, ao mesmo tempo, entretém o leitor e instiga sua reflexão.

Provavelmente, isso é verdade para grande parte dos livros de Rubem Fonseca, e tem fornecido material para interessantes e competentes estudos sobre sua obra (e é preciso dizer que Fonseca é um grande escritor, merecedor do interesse que desperta, tanto nos meios acadêmicos quanto junto ao público leitor). O seminarista, porém, é uma das provas do esgotamento dessa fórmula.

A começar pelo próprio narrador. Sabemos que a literatura e o cinema estão cheios de bandidos carismáticos, pelos quais o espectador torce, ainda quando sua perdição é inevitável. E está claro que Fonseca pretende trabalhar sobre esse lugar-comum, negando as saídas fáceis dos filmes mais populares. O Especialista, porém, não possui qualquer apelo: seu conhecimento literário não basta para criar empatia, e seu envolvimento amoroso é tão frio quanto sua rotina profissional. Não o salvam sequer seus arroubos de ternura, como ler Rilke na cama, com a amada. O mesmo pode-se dizer sobre o que poderia ser um enredo investigativo em torno de sua tentativa de aposentadoria: um cadáver sucede o outro sem muita distinção, de modo que faz pouca diferença quem seja, ao final, o verdadeiro “vilão” da história. E a promissora hipótese de que o narrador seria um doente mental, por exemplo, não é desenvolvida para além de uma vaga sugestão. Ou seja, O seminarista não funciona como uma narrativa policial de puro entretenimento.

Sendo assim, talvez devêssemos ler o romance com um olhar mais crítico, buscando a elaboração literária de questões como a banalidade da violência, o artificialismo das relações afetivas, o vazio ideológico, a diluição das fronteiras entre o bem e o mal, e o questionamento da percepção da realidade, posta em dúvida, no caso deste romance especificamente, por uma deliberada incoerência da narrativa (mais precisamente, o fato de um mesmo personagem ser morto duas vezes). Tudo isso está no romance, é certo. Por que, então, O seminarista não é um bom livro? O que o afasta de histórias poderosas como os contos Feliz ano novo ou O cobrador?

Um produto vazio
A hipótese mais óbvia ainda é a mais coerente: a repetição da fórmula provoca seu esvaziamento. Se a obra de Rubem Fonseca sempre questionou os limites entre a arte e o mercado cultural, talvez tenha se tornado ela própria um produto vazio, quando não conseguiu mais se reinventar. Todas as questões citadas acima, desenvolvidas continuamente em seus livros, tornaram-se lugares-comuns, e vêm sendo trabalhadas à exaustão não apenas pela literatura, mas pela mídia informativa e pela cultura de massa. Caberia ao escritor ir além, conferindo um novo sentido a esses temas, e não apenas reencenar suas próprias obsessões.

Ainda há o que se celebrar na republicação da obra de Rubem Fonseca. Entretanto, mais vale reler os outros títulos recém-lançados pela Agir, os volumes de contos Os prisioneiros e Lúcia McCartney; ou, ainda, o conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, publicado anteriormente no volume Romance negro, mas que agora acompanha O seminarista em uma bela edição-brinde, ilustrada com fotos de Zeca Fonseca. Afinal, Rubem Fonseca é um autor a ser relido. E do qual nós, seus leitores fiéis, ainda aguardamos o próximo passo.

O seminarista
Rubem Fonseca
Agir
181 págs.
Os prisioneiros
Rubem Fonseca
Agir
173 págs.
Rubem Fonseca
Nascido em 1925, Rubem Fonseca é autor de romances, contos e roteiros cinematográficos. Estreou na literatura com os contos de Os prisioneiros, de 1963, ao que se seguiram livros como A coleira do cão (1965), O caso Morel (1973), Feliz ano novo (1975), O cobrador (1979) e Romance negro e outras histórias (1992), Foi agraciado, em 2003, com o prêmio Camões de literatura.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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