O herói do meio

György Lukács mostra que o romance histórico se impôs a partir de certos condicionamentos histórico-sociais
Ilustração: Tereza Yamashita
01/11/2011

O romance histórico clássico teve como principal representante Walter Scott. Antes do século 19, segundo György Lukács, houve romances que exploraram a temática histórica — mas sem uma representação artística que penetrasse na essência de um período histórico concreto. Seriam precursores do romance histórico as narrativas da história antiga, os mitos da Idade Média; antigos relatos chineses e indianos. Os romances históricos do século 17 só na aparência seriam históricos, uma vez que os costumes e a psicologia dos personagens remeteriam mais à própria época do romancista do que a tempos passados, havendo também nele o interesse do escritor pelo curioso e excêntrico do ambiente que ele descreve. Por sua vez, o grande romance realista do século 18, embora com uma forte penetração na realidade do seu tempo, e tendo mesmo revolucionado a literatura universal, teria cometido o pecado de tomar o presente como algo dado. O romancista do século 18 ainda não se perguntaria, como Scott, sobre as causas ou as raízes do presente. E isto, no entender de Lukács, seria uma elaboração abstrata do tempo histórico. Esse mesmo tipo de elaboração abstrata, em certos escritores, se daria também em relação ao espaço:

Swift, Voltaire y aun Diderot hacen desarrollarse sus novelas satíricas en un lugar y tiempo indeterminados que, sin embargo, reflejan fielmente los principales rasgos de la Inglaterra y Francia de sus días. O sea que estos escritores plasman las características esenciales de su época con un realismo audaz y penetrante. Pero no saben ver lo específico de su propia época desde un ángulo histórico.

Faltaria ao romance anterior a Scott um olhar sobre a realidade social como um produto da história. É a idéia de que cada momento na vida de um grupo ou de uma nação é condicionado por um passado. A filosofia da história de Lukács tem o passado como uma “pré-história” do presente; o presente como efeito do passado. E é justamente penetrando nas crises da história da Inglaterra (“crises revolucionárias”, como quer o próprio Lukács, pois trouxeram mudanças no cotidiano das pessoas) que Scott vai em busca da identidade de seu país; vai em busca de entender o contexto em que ele vivia romanceando o passado de sua sociedade.

Lukács mostra, por outro lado, que a forma clássica do romance histórico (a forma do romance de Scott) se impôs a partir de certos condicionamentos histórico-sociais. O primeiro fator que contribuiu para o surgimento desse romance foi o “sentido de história” que aparece com a Revolução Francesa. É neste contexto que teria se consolidado, pela primeira vez, a idéia de história como “experiência de massas”. Ou seja, história como processo que termina por “intervir” no cotidiano de cada indivíduo. Junte-se a isto a historiografia do período da Ilustração que, fazendo uma representação negativa da sociedade feudal, tida como “irracional”, funda as bases ideológicas para a criação de uma sociedade e um Estado “racionais”. O segundo fator diz respeito à posição da Inglaterra no século 18. É aqui que se formam as bases para a Revolução Industrial:

La Inglaterra del siglo XVIII se encuentra ciertamente en medio de un gigantesco proceso de transformación económica, en el período en que se crean las condiciones económico-sociales de la Revolución Industrial, pero en el aspecto político es ya un país posrevolucionario. En el dominio teórico y crítico de la sociedad burguesa, en la elaboración de los principios de la economía política desempeña un papel más importante que en Francia la plasmación concreta de la historia en cuanto historia.

Daí o sentido de história, que já domina a teoria econômica da época (a de Adam Smith bem menos que a de James Steuart, que aponta “el problema de la economía capitalista en una forma mucho más histórica”, investigando “el proceso de la formación del capital”), atingir também a literatura. Atinge sem que os escritores tenham “consciência” desse sentido histórico de suas obras, pois “la peculiaridad histórica del presente inmediato instintivamente observada con toda precisión” é o que caracterizaria o romance social inglês do século 18. A este “instinto realista” dos escritores do período — instinto capaz de ler “com precisão” a realidade presente — Scott adiciona uma “visión clara de la historia como proceso, de la historia como condición previa, concreta, del momento presente”. Esta seria, em síntese, a diferença entre o autor de Ivanhoé e o grande romance realista do século 18.

Um terceiro fator é a “intensificação do historicismo” na Alemanha, nos momentos finais da Ilustração. A ação política revolucionária — apoiada nos ideais da Revolução Francesa, mas vivendo problemas de “adaptação”, para a realidade nacional, da ideologia ilustrada — se depara, na Alemanha, com uma nação esfacelada política e economicamente. Algo diferente do que ocorrera na França e na Inglaterra, já que nestes países “la preparación y realización económica, política e ideológica de la revolución burguesa y la constitución de los estados nacionales constituyen un solo proceso”. Daí a busca pelos intelectuais e artistas do passado da nação alemã, o retorno à história como forma de identificar a decadência e sobretudo a grandeza do país em outros tempos, para assim apostar no seu futuro:

La esperanza de un renacimiento nacional toma sus fuerzas parcialmente de la resurrección de la pasada grandeza nacional. La lucha por esta grandeza nacional exige la investigación y representación artística de las causas históricas de la decadencia y ruina de Alemania. En los siglos precedentes, Alemania había sido un mero objeto de transformaciones históricas, pero ahora hace en ella su aparición la historización del arte antes y con mayor radicalidad que en el resto de los países occidentales, más desarrollados tanto en lo económico como en lo político.

O Sturm und Drang, preconizando, entre outras coisas, um retorno às autênticas raízes germânicas, é um movimento com bastante consciência do problema da representação da história na literatura. Com Goethe há um reflorecimento do drama histórico, do qual Scott receberá forte influência.

O quarto fator importante dessa consciência da historicidade que marca o contexto em que viveu e começa a produzir Walter Scott é o “sentimento nacionalista” decorrente de um maior conhecimento, pelos indivíduos dos países europeus, da história da nação. Este sentimento/consciência nacionalista é um produto sobretudo das conquistas da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. No período que vai de 1789 a 1814, chama a atenção Lukács, “cada una de las naciones europeas atravesó por un mayor número de revoluciones que las sufridas en siglos”. Neste contexto o sentido da guerra se torna bem diferente daquele anterior, da época dos estados absolutistas. As guerras, nos estados absolutistas, eram realizadas por exércitos profissionais, sendo que a população ficava afastada dos conflitos. Mas esta situação é alterada com a Revolução Francesa: “En su lucha de defensa contra la coalición de las monarquías absolutas, la República Francesa se vio forzada a crear ejércitos de masas. Y la diferencia entre un ejército mercenario y uno de masas es precisamente cualitativa en lo que respecta a la relación con las masas de la población”. A guerra, assim, passa a ser explicada às massas através da propaganda. E a propaganda leva em conta o fato de que a guerra diz respeito à vida do país, à experiência de cada indivíduo: “La propaganda no puede de ningún modo limitarse a una guerra única y aislada. Tiene que develar el contenido social y las condiciones y circunstancias históricas de la lucha; tiene que establecer un nexo entre la guerra y toda la vida, entre la guerra y las posibilidades de desenvolvimiento de la nación”. Este novo sentido da guerra, portanto, contribuirá fortemente para o sentimento de nacionalidade, o qual envolverá necessariamente, como dizíamos, um resgate do passado do país.

Por último, a consciência da historicidade terá seu ponto culminante, conforme Lukács, com o período posterior à queda de Napoleão — o da Restauração. Aqui, embora o princípio de historicidade que predomina seja reacionário, até mesmo “pseudo-histórico”, prevalecerá uma profunda percepção da história como fonte de entendimento do presente e como uma construção que serve para fortalecer determinadas concepções da realidade em detrimento de outras.

[Na época da Restauração] nace un pseudohistoricismo, una ideología de la inmovilidad, del retorno a la Edad Media; y esta tendencia crece bajo la bandera del historicismo, de la polémica contra el espíritu “abstracto” y “no histórico” de la Ilustración. La evolución histórica se acomoda sin escrúpulos a los intereses de estos objetivos políticos reaccionarios, y la mentira interna de la ideología reaccionaria alcanza alturas aún mayores por el hecho de que en Francia la Restauración se ve forzada económicamente a aceptar socialmente al capitalismo, que para entonces ya había llegado a ser adulto; inclusive se vio en la necesidad de apoyarse en él parcialmente, tanto en el aspecto económico como en el político. […] Y es sobre esta base sobre la que se ha de escribir de nuevo la historia. Chateaubriand se esfuerza en revisar la historia antigua y rebajar con ello históricamente el viejo modelo revolucionario del periodo jacobino y napoleónico. Tanto él como otros pseudohistoriadores de la reacción crean una engañosa imagen idílica de la insuperada sociedad armoniosa de la Edad Media. Esta concepción histórica del Medievo será decisiva para la plasmación de la época feudal en la novela romántica de la Restauración.

Aí, portanto, o solo em que foram construídas as bases para o surgimento do romance histórico clássico.

Por outro lado, o historicismo romântico, com seu firme interesse em interpretar particularidades de povos e indivíduos no decorrer do tempo, terá no romance histórico uma forma privilegiada. Mas Lukács entende que há uma diferença fundamental entre os romances que exploram a temática histórica e o romance histórico clássico. No primeiro caso, a historicidade não é penetrante, sendo que os fatos serão apreciados apenas na sua superfície. No caso do romance histórico clássico — o romance que se inicia com Scott e terá como seus seguidores mais importantes, entre alguns outros, Manzoni, Pushkin, Gogol, Stendhal, Balzac e Tolstói —, há a tematização de um período histórico efetivo, visto sobretudo a partir da sua essência, das crises decorrentes dos conflitos de classes.

Características básicas
Walter Scott, diz Lukács, toma a história da Inglaterra como uma série de crises. Seriam “crises revolucionárias” porque, ao final, o cotidiano da população sofre alterações. A crise decorre do próprio processo histórico, que é “pleno de contradições” (as classes sociais em confronto). Assim, no romance de Scott, há primeiro a pintura da época — a penetração na sua essência (as forças sociais em disputa), no cotidiano das pessoas, nas dificuldades sobretudo do homem dos extratos médios da sociedade. Depois, no decorrer da narrativa, há o exame de ações que caracterizam o forte vínculo entre o herói e o grupo social que ele representa.

O interesse de Scott, na construção dos seus personagens, seria sobretudo o da “vivificación humana de tipos histórico-sociales” ou o resgate de traços humanos “en que se manifiestan abiertamente las grandes corrientes históricas”. A tipicidade — o papel social que o indivíduo desempenha — não será crua em Scott, pois se aliam às justificativas dos fatos as descrições dos “misterios del corazón humano, cuyos movimientos descuidan los historiadores”. Os personagens de Scott, assim, terão essa marca — são tipos históricos que se deixam mostrar interiormente, nos seus sentimentos, angústias, emoções; nas suas debilidades e poder de decisão. A humanidade do personagem será sempre resgatada no romance histórico de Scott.

Por outro lado, após mostrar o sentido da crise, a razão de ser dela, Scott faria aparecer o seu herói “mediano e prosaico”. Mediano porque decorre dos fundamentos da filosofia da história de Scott — que avaliará a grandeza da Inglaterra como resultado da solução de suas crises “pelo caminho médio”, ou seja, sem o triunfo esmagador de um dos extremos da sociedade (ricos e pobres). E prosaico porque é um herói que virá dos combates cotidianos, do próprio terreno histórico — do meio social em que vive. E será em defesa desse meio, em defesa da transformação da vida das pessoas, que o herói atuará. Diferentemente dos romancistas românticos da Restauração — em especial, Alfred de Vigny —, que fariam uma “sublimação” do herói, um culto ao mesmo, explicando, a partir dele, toda uma época, Scott faz surgir seus heróis “da essência mesma da época”. É a crise/dificuldade que força o aparecimento do herói scottiano. Ele está associado de tal forma à situação que o torna herói que, em certos casos, passado o momento da necessidade do seu heroísmo, volta a ser o que era antes — um simples cidadão. O herói scottiano, em síntese, terá como qualidades mais marcantes a simplicidade, o poder de decisão, a firmeza dos atos, além de uma certa “inteligência prática”. E isso se justifica pelo fato de Scott ter em mente o resgate da força/“grandeza humana” latente em certos indivíduos do povo: “El gran objetivo poético de Walter Scott en la plasmación de las crisis históricas en la vida del pueblo consiste en mostrar la grandeza humana que, sobre la base de una conmoción de toda la vida popular, se libera en sus representantes más significativos”.

Já a questão da fidelidade histórica nos romances de Scott se apresenta primeiro, como avalia Lukács, na própria psicologia dos personagens. Os personagens scottianos retratariam “pessoas que atuam sob determinadas circunstâncias”. Haveria, assim, uma “verdade da psicologia histórica” dos personagens de Scott pelo fato de o escritor conseguir ser fiel à realidade do tempo sobre o qual se debruça, elaborando com maestria as motivações psicológicas que justificam a atuação dos personagens. A construção literária de Scott, neste caso, é bem diferente da de Chateaubriand e dos românticos alemães, que fariam uma “modernização psicológica” postiça dos seres da Idade Média. Outro fator importante da fidelidade histórica em Scott é o que diz respeito ao trato da linguagem e à caracterização dos costumes do passado. A posição do escritor é a de equilíbrio em trazer o passado para o presente. Assim, para Scott, não há que ter, no romance histórico, uma “perfeita precisão” na representação da linguagem e dos costumes. O escritor não deve permanecer nos limites do período retratado. Deve, sim, “traduzir” para a linguagem e os costumes do momento em que escreve a linguagem e os costumes anteriores. Mas essa tradução terá os seus limites — já que o autor não deverá pôr nada que não se ajuste aos hábitos do período anterior.

A forma clássica do romance histórico, na proposta de Lukács, teria, em síntese, quatro características básicas:

1) o romance histórico autêntico — cujo modelo é Walter Scott — narra a história como crise, penetrando na essência da época (as forças sociais em disputa);

2) os personagens são construídos como tipos histórico-sociais, havendo sempre um resgate da humanidade dos mesmos;

3) o herói surge a partir da crise, da essência mesma dos acontecimentos;

4) a fidelidade histórica é fator importante nesse romance.

Mas a teoria de Lukács sobre o romance histórico, embora muito bem fundamentada, não deixa de ser alvo de críticas.

Questionando Lukács
No número dedicado ao romance histórico da Revue d’histoire littéraire de la France, de 1975, há pelo menos dois longos artigos que se opõem às idéias de Lukács. No primeiro, Qu’est-ce que le roman historique?, de Jean Molino, há uma condenação à filosofia da história de Scott (considerada por Lukács como um modelo de leitura da História enquanto conflito de classes). Segundo Molino, o romance histórico romântico tem o passado como algo que continua no presente. O passado, para esse romance, é um “monumento que é mantido”, apesar das transformações e destruições que sofreu. Para o historiador e o romancista românticos a “lição do passado” se inscreve na “textura mesma do presente”. Scott, assim, cultivaria uma imaginação retrógrada e a sua lição da história, sendo de continuidade do passado no presente, seria conservadora. Lukács, deste modo, “traveste totalmente a inspiração profunda de Walter Scott”, cuja produção se situa “no quadro de uma filosofia da história, senão reacionária, pelo menos tradicionalista”. A história, continua Molino, não é “um tribunal, nem a luta de duas classes eternamente em combate”. Molino diz também que Lukács recorre, para formular a sua teoria do romance histórico, a escritores que ele, Lukács, admira (como Goethe, Balzac, Pushkin, Stendhal, além do próprio Scott) e deliberadamente esquece outros autores. Molino, enfim, cita o abade Bremond, para quem em Scott o passado efetivamente “sobrevive no presente”; ou seja, Scott tem a sua época como uma “continuidade benfazeja da história”.

No segundo artigo, L’illusion historique: l’enseignement des préfaces, Claude Duchet observa que, na França, entre 1815 e 1832, o romance histórico tem como protagonistas, de um lado, personagens reais “de segunda ordem” e, de outro, personagens fictícios que atuam mais ou menos misturados aos grandes acontecimentos históricos. Considera que a idéia do “herói mediano” de Lukács não dá conta do romance histórico francês, uma vez que os desclassificados sociais (marginais, loucos, prostitutas, etc.) aparecem com freqüência nesse romance em papéis fundamentais. Mesmo assim, percebe num conjunto de romances que a idéia da “grande figura” da História como protagonista do gênero também não rende muito no caso francês.

De qualquer modo, o texto de Lukács sobre o romance histórico se tornou, já há algum tempo, uma grande referência teórica. E ainda pode render muito para a identificação de determinadas marcas do romance histórico do passado no romance histórico contemporâneo.

O romance histórico
György Lukács
Trad.: Rubens Enderle
Boitempo
439 págs.
György Lukács
Nasceu em 1885, em Budapeste, Hungria. É um dos mais influentes filósofos marxistas do século 20. Doutorou-se em Ciências Jurídicas e depois em Filosofia pela Universidade de Budapeste. No final de 1918, influenciado por Béla Kun, aderiu ao Partido Comunista e no ano seguinte foi designado vice-comissário do Povo para a Cultura e a Educação. Em 1930, mudou-se para Moscou, onde desenvolveu intensa atividade intelectual. O ano de 1945 foi marcado pelo retorno à Hungria, quando assumiu a cátedra de Estética e Filosofia da Cultura na Universidade de Budapeste. Estética, considerada sua obra mais completa, foi publicada em 1963 pela editora Luchterhand. Já seus estudos sobre a noção de ontologia em Marx, que resultariam oito anos depois na Ontologia do ser social, iniciaram-se em 1960. Faleceu em sua cidade natal, em 4 de junho de 1971.
Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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