A literatura é um processo íntimo de investigação, investigação de quem escreve, mas, principalmente, um desafio feito ao leitor e que explora os limites até onde esse mesmo leitor é capaz de chegar. Os contos de Não aceite caramelos de estranhos, da chilena Andrea Jeftanovic, refletem com perfeição essa espécie de duelo, um convite ao confronto que toca o que há de mais delicado: as relações familiares e as frágeis peças que formam o quebra-cabeça de nossas identidades. Os relatos costuram as fragilidades dos abismos cotidianos, tão intrínsecos a uma sociedade que se esfarela em valores cada vez mais radicais e pueris.
Jeftanovic, à guisa do também chileno José Donoso ou do peruano Vargas Llosa dos primeiros livros — ainda mais preocupados em fazer literatura que política —, busca nas contradições a matéria-prima para uma literatura ora visceral, ora perturbadora. Seus personagens e seus pontos de vista sobre a vida e sobre o espaço urbano — e, portanto, a respeito também das relações — são, justamente, o reflexo de um mundo em descompasso.
Atrás de uma prosa delicada, escrita deliberadamente para enredar o leitor, a autora apresenta o assombro em situações que demonstram, com perfeição, a capacidade de descrever aquilo que, para muitos, é invisível. E, como na obra plástica de Nuno Ramos ou na cinematografia de Lars Von Trier, é nessas brechas que a literatura de Andrea Jeftanovic se constrói.
Árvore genealógica, o conto de abertura, mexe em um vespeiro. Revisita e amplia aquilo que Nabokov trouxe em seu Lolita. Se na obra maestra do russo é Humbert Humbert — um homem em vertigem constante e inescrupuloso — quem se aproveita da falsa falta de inocência da jovem Dolores, no texto de Jeftanovic é uma filha, pouco mais velha que a menina de Nabokov, que ardilosamente seduz o pai, um viúvo que, de início, rejeita as investidas diárias. Em um espelhamento magistral, a chilena usa dos mesmos artifícios — literários e de provocação — que trouxeram atenção e polêmica a Lolita para inverter papéis e romper com a ideia de inocência.
Narrado pelo pai, ao mesmo tempo vítima e réu, o conto é uma confissão sobre fraqueza e liberdade, honra e desonra. Jeftanovic joga as pistas do delito como se alimentasse a um faminto:
Não sei quando comecei a me interessar por nádegas de crianças.
(…)
Já faz um tempo que Teresa espreita com um brilho diferente meu olhar cansado. Capricha mais na comida e decidiu que a pessoa que cuida dela não vai mais ficar para dormir.
(…)
Agora, quando eu convidava uma amiga para tomar um café, ela ficava rondando e fazendo barulhos estranhos atrás das paredes.
Em Marejadas, o relato seguinte, mais uma vez a noção de família é dinamitada, colocada abaixo através de uma conduta cínica e imprecisa. Andrea cria um retrato espantoso de um colapso íntimo, revelado aos poucos. A narradora, uma mulher que flutua entre a lucidez forçada e o delírio acalentador, se vê contra a parede à medida que o filho hospitalizado parece salvar-se apenas por um milagre e o marido revela a sua indiferença por tudo que, contra a sua vontade, o joga nessa realidade abissal.
Jeftanovic faz do conto um pequeno ensaio sobre a ausência, física e metafísica, daquilo que é alicerce, como se alijasse aquela família de suas próprias identidades — sensação que o escritor brasileiro Tiago Ferro experimentou na própria carne e transfigurou em O pai da menina morta. Entre a salvação e o calvário, Marejadas é uma contemplação da dor ou, quem sabe, uma radiografia da perda iminente da razão e dos sentidos.
Faça-me um filho, sentenciei. Não vê como avança a mancha no mapa cerebral. Um rosto difuso apoiado sobre a almofada. Sim, eu sei, a maré sobe e inunda cavidade e tecidos. É um mar de vasos sanguíneos que não retrocede.
Entre tantas singularidades, não resta outra alternativa senão lutar contra a ressaca que vem com as fortes ondas da verdade.
Laços de família
Nesses laços que se constroem e se rompem a todo instante, Não aceite caramelos de estranhos lida com o estranhamento escondido sob uma normalidade sombria e implicada a fórceps. Citando o conto Amor, de Clarice Lispector, como epígrafe, Primogênito é uma ode ao assassínio desejo de um irmão sobre a bebê que acaba de chegar à casa e tirar-lhe o trono.
A escritora navega nessas águas complexas como poucos conseguiriam. A partir do olhar do menino sobre tudo o que deixou de ser seu, é possível notar a natureza primitiva que ainda habita o homem, seja na busca por território ou seja na tentativa, quase sempre frustrada, de escapar às armadilhas impostas pela simples condição de estar vivo. As existências fraturadas, que tão bem se encaixam na perspectiva da autora, são as mesmas que geram as neuroses e as inversões que levam às pequenas bancarrotas diárias.
E essa equação é a gênese de Meu corpo para fora navegando pelas janelas, uma fábula a respeito do desmantelamento grotesco de um casamento fracassado. Como boa parte dos textos de Não aceite caramelos de estranhos, o conto reflete o vazio que precisa, de alguma forma, ser preenchido e que leva a uma urgência implacável. Partindo da jornada de um casal já (de) formado pelos anos, Jeftanovic mergulha no tédio e numa rede de fetiches. Enquanto o marido se comporta como uma massa amorfa, tentando refletir sobre como a vida conjugal degringolou, a esposa vive uma rotina de flertes e amantes — como um escape consciente e planejado. Tanto assim é que, em casa outra vez, consola o marido traído com um singelo: “Estou aqui”.
A perversão não é o que afasta o casal, mas é o elo que permite que ele ainda permaneça junto, ainda que em um processo de autocombustão. É uma solução similar à qual o diretor norte-americano Stanley Kubrick impôs aos seus personagens em De olhos bem fechados. Sob esse prisma do bizarro, Jeftanovic e Kubrick são capazes de produzir um inventário de sombras, um grande catálogo de perdas e, mais uma vez, ausências.
Essa busca pelo nefasto — por cisões entre o padrão e a podridão — forma o corpo do livro, percorrendo todos os relatos. Questões de identidade, culpa, disfuncionalidades diversas são itinerários comuns entre os contos. Em A necessidade de ser filho, a autora brinca com a ideia de destino, o mesmo destino que sela as semelhanças dos futuros de pais e filhos. A narrativa se debruça sobre os múltiplos abandonos: de um filho deixado de lado pelos progenitores guerrilheiros e de um continente que parece orbitar entre paralelos insondáveis.
A necessidade de ser filho é uma viagem ao ressentimento, uma jornada pessoal e incapaz de ser repetida. Como em seu livro de crônicas Destinos errantes, ainda inédito no Brasil, Jeftanovic trata da solidão como uma possível explicação às reações mais exacerbadas de homens e mulheres. É no estar solitário que se consuma a noção de mundo e do indivíduo.
Ao voltar de sua longa viagem russa, que durou quase quarenta anos, mamãe apareceu casada com o vizinho. Vestia-se de um jeito diferente, usava um gorro de pele e lenços de seda. Eu não sabia se devia recebê-la com um beijo frio ou me atirar nos braços daquela mulher tão bonita. Foi difícil simular que éramos uma família com um homem que sempre me entrara atravessado.
Longe dos seus, ao narrador lhe parece difícil saber quem é.
Terra devastada
A literatura de Jeftanovic tem algo de excêntrico e excelente, um capricho que só revela na sutileza que a escritora cria conflitos. O hitchcockiano O incômodo de sermos anônimos expõe as relações ambíguas entre vizinhos desconhecidos. Ao contrário do filme Janela indiscreta, porém, o extraordinário está na banalidade, na capacidade de dar voz a tudo que parece apagado e sem vida. Em paralelo, o conto finca raízes na paranoia e no voyeurismo, deixando latente a mesma sensação de perigo e ameaça que o diretor inglês emprega em seu clássico. A ideia do narrador voyeur — mais que onisciente e onipresente —, por sinal, percorre todo o livro, oferecendo impressões que, não raras vezes, esbarram nas regras de conduta.
Não aceite caramelos de estranhos escancara as pulsões negativas e os desejos sublimados, coloca à vista o absurdo e o cruel, jogando luz sobre a ambiguidade do ser humano. Em Na praia, as crianças… há um prazer escamoteado no perigo que o litoral oferece aos pequenos — presas fáceis no meio de tanta gente. Enquanto costura esse olhar sádico, Jeftanovic atenta ao terror da mãe que, diante da catástrofe, “abre caminho como se esse oceano fosse o Mar Vermelho”. As relações aqui são sempre como uma terra devastada, uma experiência última entre o trauma e o gozo, uma perfeita assimetria dos sentidos e da razão.
E essa dissolução entre realidade e fantasia dá o tom de Amanhã estaremos nas manchetes, uma história de amor obsessivo e perdição. Como uma fábula absurda sobre o abandono, o relato elabora uma colcha de retalhos de causas e consequências, ações e reações. Ao descobrir um caso do marido, a esposa se aproxima da amante e, como numa ida ao Hades, transforma vinho em água. É interessante pensar que, em certo sentido, a escritora chilena se deita sobre os mesmos tempos e situações que Elena Ferrante, mas consegue extrair uma potência que a narrativa elegante da italiana não consegue contemplar.
E isso fica muito claro no conto que dá título à coletânea. Não aceite caramelos de estranhos, em suas dez páginas, extrai de si — e dos seus personagens — uma radiografia singular da dor. O tal mapa da ausência de que já falamos antes e que ganha uma potência elevadíssima: uma filha perdida que leva a mãe ao desespero e ao colapso constante. Frente ao abismo e à culpa, o que cabe à mãe — que ora se percebe como relapsa, ora como uma vítima das circunstâncias — é saber que o conselho foi dado: “Não aceite caramelos de estranhos”. Mesmo que essa frase solta na memória se configure somente como um placebo barato e com data de validade vencida.
Em Santiago, muitas crianças desaparecem todos os dias, dobra-se a esquina e não se sabe mais delas, saem caminhando para a escola e nunca mais voltam, cruzam a casa do vizinho e se perdem no trajeto. (…) Em Santiago, procuram as crianças perdidas com fotos em caixinhas de leite, a idade, a data do extravio e a legenda: “ALGUÉM VIU?”. Não me contento em esperar ligações, providências da polícia: saio à procura da minha menina.
Em todos os relatos há uma voluntariedade à catarse — como se fosse fundamental se perder para que seja possível seguir em frente. Miopia retoma as relações contrastantes entre pais e filhos e coloca diante do leitor a descrição sutil do abuso. É um texto cuja força se esconde no não dito. São entrelinhas que flutuam entre o choque e a anestesia. Com ousadia e coragem, o conto investiga os abalos de um passado que volta e meia se repete como ação e como memória — dois elementos fundamentais para entender a narrativa que encerra o livro, Até que se apaguem as estrelas, uma jornada pela história de pai e filha, mas também de um país que ainda precisa entender suas próprias feridas.
Sob um teto, metaforicamente, prestes a desabar, os protagonistas revisitam suas lembranças e conflitos, as visões discordantes sobre Allende e o regime bárbaro de Pinochet. No meio de tantas lendas — em que se constrói a história de um povo — e discordâncias — em que se reafirmam os laços familiares —, pai e filha se unem da única maneira possível: pelo sangue que compartilham.
Sem qualquer pudor, subvertendo papéis e trazendo à tona questões silenciadas, Andrea Jeftanovic usa Não aceite caramelos de estranhos como retrato das contradições e das angústias que moldam as famílias e as relações, ao mesmo tempo em que tenta entender a identidade do país em uma busca visceral pela verdade.