O grande inimigo

Na obra de Raduan Nassar, a passagem do tempo é vista sempre como deformação e degradação do corpo, do sexo, dos sentimentos
Ilustração: Raduan Nassar por Fábio Abreu
28/01/2017

Contemporâneo de Raduan Nassar, Caetano Veloso conta como, preso pelos militares numa solitária e assustado com seu próprio torpor no momento de submissão máxima ao horror do regime, buscou confiar no sêmen ou nas lágrimas como única possibilidade de mobilizar o corpo contra a opressão. Tentou masturbar-se, mas não conseguiu sequer uma ereção: “Parecia-me que eu seria salvo do horror a que fora submetido se sentisse jorrar de mim esses líquidos que parecem materializar-se a partir de uma intensificação momentânea mas demasiada da vida do espírito”.[1]

O cerne da experiência descrita acima parece coincidir em muito com o que move as personagens na obra de Raduan Nassar: a atuação política só teria sentido se amalgamada à lubricidade e ao misticismo. Sob os tempos tenebrosos da ditadura, trata-se da liberdade radical de um corpo que não se deixa enquadrar por nenhuma espécie de proselitismo. E, ainda, de uma relação sinuosa, indireta e repleta de pontos de indeterminação de uma obra com as reivindicações políticas, sociais, econômicas, culturais, estéticas e comportamentais da época. É esse o tipo de diálogo que as narrativas de Raduan entretêm com o contexto de sua produção.

Algumas figuras obsessivamente retomadas nos textos do autor ajudam a verificar como esse diálogo se dá. Em Menina a caminho, conto que abre o volume de mesmo nome, as molduras desempenham um papel fundamental: são elas que contêm o desejo nos limites do controle social e, ao mesmo tempo, conferem-lhe destaque, atraindo para ele todos os olhares. Algumas vezes, denotativamente, elas dão contornos visíveis a espelhos e gravuras presos às paredes. Noutras, à guisa de moldura de uma ação há objetos como batentes de portas ou janelas ou partes do corpo de um animal: “[…] um dos meninos vê a menina acocorada, observando-os por sob a barriga abaulada de um cavalo […]”.

Retratadas nas molduras de Menina a caminho, há cenas de forte conteúdo sexual, que a menina consome sem perceber, durante seu trajeto pela cidade, até ser ela própria inserida no interior de um quadro.

Enquadrar o outro é o que fazem algumas personagens de Raduan por meio de seu erotismo viril. O verbo contém duas faces, uma positiva, outra negativa. Nas molduras há uma tensão, e toda forma é determinada por seus limites. Retratadas nas molduras de Menina a caminho, há cenas de forte conteúdo sexual, que a menina consome sem perceber, durante seu trajeto pela cidade, até ser ela própria inserida no interior de um quadro. O elemento que arremessa a menina no interior da moldura é a palavra performativa de seu Américo, o dono do armazém. “Puxa daqui, puxa já daqui, sua cadelinha encardida, já agora senão te enfio essa garrafa com fogo e tudo na bocetinha, e também na puta da tua mãe, e na puta daquela tua mãe…”. Estar na moldura significa tornar-se narrativa do outro e ser dotada de um corpo erótico.

Resquício obscuro
Em O velho, um dos textos inéditos em português presentes na Obra completa, o dono da pensão é limitado pela arquitetura: “Do alto da escada que leva ao jardim embaixo, enquadrado pelas duas alas do alpendre, corre atentamente os olhos pelas folhagens que acobertam a estridência dos grilos”. Enquanto isso, há outras coações ocorrendo na pensão. Nas ameaças de morte feitas ao jovem pensionista por antagonistas corruptos e incomodados com sua honestidade, o enquadramento se dá a ver em seu aspecto negativo.

Esse conto tem algumas semelhanças importantes com Menina a caminho. Além de serem narrados em terceira pessoa, ambos têm como elemento central o rumor, aquilo que não pode ser dito, as elipses relacionadas ao excesso e ao perigo. O que não pode ser dito, porém, é reiterado o tempo todo por vias indiretas, seja pelas personagens, seja pela narração: “Andam dizendo coisas por aí, Nita”. Nesse sentido, é digna de nota a quantidade de diálogos que, interrompidos por reticências, restam inacabados e deixam algum resquício obscuro pairando no ar.

Esse tipo de enquadramento que impõe limites é o praticado pelos narradores-personagens masculinos, como o chacareiro de Um copo de cólera e André de Lavoura arcaica. Eles pretendem disciplinar seus interlocutores e submetê-los à sua potência em colapso, na intenção de resgatá-la por meio da regressão a um paraíso infantil onde a sexualidade possa ser vivida sem ameaças.

Ao contar como reagiu, em 1967, ao filme Terra em transe, de Glauber Rocha, Caetano dá um exemplo de enquadramento em sua acepção positiva: “O golpe no populismo de esquerda libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica, mística, formalista e moral com que nem se sonhavam”.[2] Como nessa afirmação do compositor, para os narradores de Raduan enquadrar significa explicitar que toda observação é delimitada por contornos, mesmo aquela que aparenta não o ser. A partir desse gesto, e também da dubiedade do verbo em questão, é possível denunciar a ficção da Verdade e revelar que só o que existe são diferentes pontos de vista ou perspectivas. Nessa denúncia se apoia a filiação desses personagens às fileiras da desordem na luta contra uma ordem falsa, que naturaliza a dominação e impede a diferença.

Em Lavoura arcaica, o elemento-chave relacionado ao enquadramento e à moldura são os avatares da forma geométrica perfeita: o círculo. Ele está por toda parte. Na ciranda maculada por Ana na cena da dança, em cujo centro estão as frutas esféricas, elas também partidas. No círculo familiar que só é rompido em dias de festa. Nos olhos, por meio dos quais os personagens do romance explicitam sua filiação a um dos galhos da família: “a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo, e que se eles eram bons era porque o corpo tinha luz, e se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um corpo tenebroso”. Também no sol da cosmogonia inaugurada por André, que por ser incendiário e sanguíneo, provoca efeitos lúbricos, e no círculo da repetição, que impossibilita a novidade e mantém a lavoura em seu estado arcaico.

A deformação desses círculos pode instaurar, no entender de André, um tempo sinuoso, de limites maleáveis e capazes de incorporar a diferença imposta por sua libido, que se satisfaz na transgressão. Ao encontrar na perfeição do círculo fechado uma rachadura — a ideia de que dentro dos limites da propriedade há todo o alimento necessário, como pregam os sermões paternos —, André logra concluir que a autofagia, isto é, o incesto, desencadeadora da demolição da casa, também se encaixa na geometria da família. A falha do círculo reside, assim, em sua própria circularidade.

O gozo da narração
O confronto entre os modos de enunciar e de interpretar de André e do pai gira em torno da imposição violenta de um único ponto de vista. O filho reage ao modo do pai: mais do que substituir a ordem paterna, pretende nela fazer caber a libido, cuja ausência está no centro de sua queixa. À violência asséptica do patriarca, André contrapõe a sua, na qual o lugar de fala tem papel determinante: na narração a posteriori, e por isso livre do jugo paterno, que constitui o romance, André pode incorporar aos enunciados a maneira como gostaria que tudo tivesse se passado no momento em que aconteceram os fatos. Durante a narração, o desejo experimentado outrora contamina as orações, de modo que a união sexual com a irmã, não mais possível por ela estar morta, pode se realizar outra vez. Para o gozo é imprescindível, pois, o privilégio da narração, uma vez que o gozo se manifesta não de forma direta, mas na linguagem e pela linguagem:

misturando no caldo deste fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de Ana, retirando da fímbria das palavras ternas o sumo do meu punhal, me exaltando de carne estremecida na volúpia urgente de uma confissão (que tremores, quantos sóis, que estertores!) até que meu corpo lasso num momento tombasse docemente de exaustão.

Para André, há um gozo no remate das palavras ternas. Do pênis metaforizado em punhal jorra o sumo que se mistura num caldo ao nome da irmã, salgado, porquanto é condenado a não gerar frutos, como as terras amaldiçoadas na Bíblia ou a mulher de Ló transformada em estátua. A narração a posteriori atualiza o gozo, e a “volúpia urgente de uma confissão” ressuscita na fala de André os eventos do passado, de maneira a provocar na linguagem os “tremores” e os “estertores” do orgasmo. Assim, o lugar que o narrador reivindica na mesa da família é um lugar a partir do qual seu desejo possa ser enunciado, e que ele enfim ocupa quando narra ao irmão o que se passou com Ana. Ter realizado seu desejo é ter obtido o alimento de que necessitava, ao mesmo tempo subvertendo e atendendo os preceitos do pai no interior do fechado círculo familiar.

É por as palavras serem “soluções imprestáveis”, segundo o chacareiro de Um copo de cólera, que, sintomática e obsessivamente, as narrativas de Raduan vão recorrer à retórica, ao léxico do fingimento, do jogo, do teatro, aos sofistas e à crítica de toda filosofia dogmática: é possível apropriar-se de qualquer modo de dizer e reverter qualquer discurso contra o próprio emissor. A ênfase recai sempre sobre os efeitos. Se o que importa é o efeito de verdade e os discursos se equivalem, é legítimo usar a fala de outrem como se fosse a própria, inclusive para afirmar o oposto do que ela afirmara em seu contexto original.

A linguagem confirma, desse modo, sua vocação de veneno e remédio: coloca em risco a virilidade ao mesmo tempo em que liberta a potência destrutiva por meio da qual essa mesma virilidade pode se afirmar. Ainda em Um copo de cólera, ao dizer, sobre o desempenho sexual do chacareiro, “eu não tive o bastante, mas tive o suficiente”, a mulher reúne habilmente, numa única sentença, pelo uso da sinonímia, as duas vocações da palavra, pois nega e afirma, ao mesmo tempo, sua satisfação erótica.

A iconoclastia verborrágica dos narradores constitui um paradoxo, pois agrupa numa mesma figura os papéis de crítico da autoridade e de detentor incontestável da palavra.

As frequentes citações sem aspas e a incorporação de outros textos filosóficos e literários na obra de Raduan, sem explicitação das fontes, também trabalham nesse sentido, bem como seu caráter onívoro: convivem referências à mitologia e à literatura gregas, a diversos autores da filosofia ocidental, aos textos sagrados das grandes religiões monoteístas, aos conhecimentos da tradição hermético-alquímica, às origens ibéricas de algumas personagens, ao contexto histórico, estético, político, social e cultural das obras, a autores de diferentes épocas, literaturas e gêneros.

Como em toda arte digna do nome, porém, nesse perspectivismo obsessivo esconde-se uma rachadura que faz esfarelar qualquer possibilidade de simplificação: enquanto se esforçam para demolir todo e qualquer edifício da Verdade, os narradores raramente cedem o privilégio da narração. No capítulo final de Um copo de cólera, por exemplo, o homem, depois da queda em posição fetal, parece abrir mão da posição de narrador para delegá-la à mulher, num arremedo da condição da criança que, antes da aquisição da linguagem, só existe no plano do discurso enquanto narração da mãe. O que acontece, porém, é que impedida de ter voz própria, ao obter o privilégio de narrar, a mulher só pode fazê-lo com a voz do amante. Antes acusada de ser o ventríloquo que fala pelo povo, numa inversão de papéis ela se transforma no boneco manipulado. Ou no travesti de carnaval, imagem requisitada mais de uma vez na novela e que reúne o masculino e o feminino sem apagar as características distintivas dos gêneros. No travesti, como no narrador desse último capítulo, a aparência exterior de mulher oculta e deixa ver um homem. As figuras do ventríloquo e do travesti são símbolos de um conflito que é discursivo e sexual, de linguagem e de gênero, e de um desejo de falar pelo outro, de impor sua fala ao outro: sob o corpo da mulher que fala esconde-se um homem.

O ocaso do erotismo viril
A iconoclastia verborrágica dos narradores constitui um paradoxo, pois agrupa numa mesma figura os papéis de crítico da autoridade e de detentor incontestável da palavra. Nessa tensão reside a afirmação de um erotismo viril, realizada na maior parte das vezes de forma violenta pelos narradores. A virilidade à beira do colapso aparece em Menina a caminho nas personagens que, sob risco de segregação, desconfiança ou loucura, recusam-se a participar do teatro do excesso: dona Engrácia tem pele seca e peito chupado, seu Giovanni é caduco, seu Tio-Nilo tem o coto, símbolo fálico, corretamente vestido e embrulhado, o pinguço é todo feito de signos da secura, de palha. Também em seu Américo, que submete à menina, obriga-a a amadurecer e a reconhecer o próprio corpo como erótico, no interior da moldura do espelho do pai, após a (má) digestão das fartas doses de sexo ocultas nas cenas anteriores. Ainda em Zeca Cigano, chamado de “corno” pela esposa, a quem agride e acusa de ter algum tipo de relacionamento com o dono do armazém.

O conto O ventre seco e seu desdobramento, Um copo de cólera, têm em seu centro a virilidade ameaçada pela fala da mulher e manifestada por meio de agressão discursiva. No conto, os oximoros, como o próprio título ou “semente senil”, reúnem de forma engenhosa potência e ruína, fertilidade e esterilidade, satisfação e fracasso. Na novela, o mesmo sentido é expresso, por exemplo, no epíteto “biscateiro graduado”, conferido pela mulher ao narrador. A violência é, portanto, catalisadora do desejo, e a linguagem coloca em risco a virilidade ao mesmo tempo em que liberta a potência destrutiva por meio da qual essa mesma virilidade pode se afirmar.

Em Hoje de madrugada, a ruína da masculinidade resulta em um narrador que rejeita até o menor contato — voz e ouvido — com o corpo da mulher. Um mínimo diálogo só pode ser estabelecido quando mediado, nesse caso pelos lacônicos bilhetes.

Em O velho, às tentativas do protagonista de compartilhar os rumores a esposa responde sempre com rispidez, no limiar entre o interesse e o desprezo. O substrato político se anuncia por meio de uma disputa de corpos, o da mulher ativa e que dita ordens e o do marido marcado pela senilidade e pela decrepitude: “Todo os dias a mesma coisa, Nita, você não me respeita, nunca me respeitou, eu não vou pedir respeito pras crianças da rua”. É justamente o ocaso do corpo que o impede de ter participação política, de reagir à angústia causada pelo que acontece ao jovem inquilino: o velho cochila na poltrona, não vê e não ouve bem.

O funcionário público tem feições de menino, portanto ainda não foi corrompido pela deformação que a passagem do tempo impõe. O destino do jovem está prenunciado no velho, e não à toa o conto se abre com a sentença de uma pena capital: “A claridade da cozinha vai morrendo com a tarde”. Apesar de o funcionário ter frescor infantil e ser imberbe, a corrupção inerente à passagem do tempo não tarda a acontecer. Se não pela via da política, pelo menos pela via do corpo e mais provavelmente por ambas, pois nessa obra política e erotismo sempre se misturam. A descrição do ambiente, repleta de símbolos fálicos, antecipa o que vai se provar inevitável: “o cipreste romano se ergue ereto e soturno, no centro, com o ponteiro acima da cumeeira da casa, quase indevassável à escassa luz que já se expande do poste mais próximo” (grifos nossos).

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Os personagens masculinos de Raduan almejam, em geral, o retorno a um tempo anterior aos interditos, de delimitações genuínas e precisas, em que os papéis claramente definidos permitem uma possibilidade maior de domínio absoluto.

Pouco depois, o velho vê, intrigado, a luz do quarto do pensionista se acender antes mesmo de a soleira ser ultrapassada: “certa mão desenvolta surge pelo vão da porta e, alongando-se um braço obscenamente branco de mulher enlaça por trás a cintura do moço, puxando-o pra dentro. E a mesma mão, sinuosa, fecha a porta, trancando-a à chave”. Nesse instante, a ameaça política ganha um corpo erótico na figura da mulher misteriosa.

O cheiro de perfume que o velho crê sentir na casa, e que ele parece associar às mulheres que rondam o lugar, pode ser também o das flores de um enterro. Na cozinha para o jantar, “parece até que ele assiste a uma missa fúnebre enquanto observa o ritual do moço desdobrar o guardanapo”. O que ele pensa ser a missa do jovem a quem querem matar pode ser, também, a própria missa. Mais tarde, ao observar o movimento na calçada, uma senhora que porta um missal e uma mantilha preta o cumprimenta — por quem será o luto que o conto não cessa de reiterar?

Logo após esse encontro, a esposa o encontra “mole, distenso”, esticado na cadeira sobre a qual adormeceu depois de murmurar uma única palavra: “Farras”. A ordem que ela lhe comunica é categórica, se pensarmos na importância que tem a imagem dos pés como repositório de força erótica, política, ética e moral no sistema metafórico da obra de Raduan. Ela diz apenas: “Recolha os pés”.

As flores que dão nome ao conto Monsenhores, conhecidas como crisântemos, são relacionadas ao amor, mas também são fúnebres. A narradora, Ermínia, observa a vizinha e comadre Lucila “colhendo sem pressa, haste por haste”, os monsenhores. Eles representam, em sua ambiguidade, o erotismo e a morte contidos no possível incesto entre mãe e filho, do mesmo modo que o cheiro de flores em O velho corresponde tanto ao jovem politicamente morto quanto ao velho eroticamente arruinado. Convocada com urgência à casa vizinha, Ermínia logo nota que “as flores se encontravam murchas, talvez podres, exalando mau cheiro”.

Encontrar o macho em ruínas surpreende Ermínia. Assim ela descreve Luca, marido de Lucila e pai de Dinho, os dois protagonistas da transgressão: “a cara sem a vitalidade de costume, parecia até que ele estava se mostrando pelo avesso”; “a voz mais sumida que eu jamais pudesse conceber aquele homem vigoroso e enérgico fosse capaz”; “quando poderia imaginar, esse homem que despertava fantasias em tantas mulheres… é bem verdade que corriam comentários maliciosos, que nem quero falar deles”.

Causa estranheza, a Ermínia, conceber a masculinidade em xeque, uma vez que ela admite sem problemas e até com certo regozijo ter se submetido à imposição das vontades do próprio marido em questões de ordem doméstica, política e sexual — também narrativas. Em seu discurso, já está naturalizada a ordem patriarcal, e assim, nessa única narradora feminina da obra de Raduan, ecoa como nos demais textos a voz do homem em queda. O fim de Lucila é muito semelhante ao da mulher de Hoje de madrugada: “tive a impressão de que Lucila tinha entrado irremediavelmente num túnel de onde não sairia nunca mais, se entregando a um fim sem volta”. A solidariedade entre Ermínia e Lucila, narradora e a comadre que pode ou não ter sofrido violência doméstica após um incesto, se dá numa única chave: “não passamos de umas mulheres menstruadas”.

Idade do ouro
Os personagens masculinos de Raduan almejam, em geral, o retorno a um tempo anterior aos interditos, de delimitações genuínas e precisas, em que os papéis claramente definidos permitem uma possibilidade maior de domínio absoluto. O velho idealiza o jovem como ainda não conspurcado pelo erotismo e pela corrupção. Na infância utópica, a comunhão homem-mulher se realiza na relação mãe-filho, e somente nela os narradores de Raduan poderiam atingir seu objetivo de prescindir das palavras. Esse tempo seria como o descrito pelo chacareiro de Um copo de cólera, depois de cair em posição fetal e prostrar-se:

tudo tão delimitado, tudo acontecendo num círculo de luz contraposto com rigor — sem áreas de penumbra — à zona escura dos pecados, sim-sim, não-não, vindo da parte do demônio toda mancha de imprecisão, era pois na infância (na minha), eu não tinha dúvidas, que se localizava o mundo das ideias, acabadas, perfeitas, incontestáveis.

Em Lavoura arcaica, a experiência sexual de André com Ana é eco do afeto desmesurado da mãe na infância, daí a associação do momento de lassidão e tranquilidade pós-coito com o do nascimento (“nu como vim ao mundo”) e com o da “hora em que as mães embalam os filhos, soprando-lhes ternas fantasias”, ternas como as palavras das quais André extrai o sumo.

Porém, são mito essa comunhão na infância e esse tempo de “tudo tão delimitado”. O tempo só é reversível e manipulável na narração e, por isso, essa comunhão só pode ser atualizada como rito erótico-discursivo. A linguagem é manipulável, as palavras são a matéria-prima do fingimento, do teatro, da retórica, do jogo, da poesia, da prosa, daí a desconfiança dos narradores. Por ser erótico-discursivo e capaz de se realizar apenas na memória, o processo que engendra as metamorfoses necessárias à reconquista da unidade resulta sempre em fracasso. A obra de Raduan encena esse regresso ao útero, mas ele é meramente encenado, portanto falso e impossível. Um retorno cujo fracasso é sempre denunciado na narração.

A protagonista de Menina a caminho retorna a casa para tornar-se mulher, emancipada da mãe, e ela própria mãe em potência, já que descobre seu sexo emoldurado no espelho do pai — as figuras de linguagem, os brinquedos, as guloseimas da infância, com as quais até pouco antes ela descrevia o mundo, são deixadas para trás no trecho final do conto.

Para permanecer na memória da mãe, o narrador de O ventre seco separa-se da amante, culpando-a justamente por ela ter esse papel, ou seja, por ser amante, emancipada e não mãe submetida aos desejos do filho. Essa permanência na memória materna, porém, é frustrada. A quem lhe pergunta do filho, a mãe sempre responde: “não conheço esse senhor”.

Em Hoje de madrugada, a ruína da masculinidade resulta em um narrador que rejeita até o menor contato — voz e ouvido — com o corpo da mulher.

Em Um copo de cólera há o retorno no texto ao corpo da mulher/mãe no último capítulo, quando a mulher é a narradora. Trata-se, porém, de um falso sucesso, pois no fundo é o homem adulto, o macho viril em perigo, que continua a dominar o discurso.

Em Monsenhores, único texto do autor narrado por uma mulher, o retorno se dá numa chave terrível: o filho literalmente retorna ao ventre da mãe, mas por meio do incesto.

O único útero possível no fluxo real do tempo é o da morte? Em Lavoura arcaica, a tentativa de André de reviver com a irmã o paraíso infantil do afeto e ternura desmesurados da mãe termina em tragédia. A morte é ainda para onde aponta Hoje de madrugada, seu quarto de trabalho isolado pela escuridão e o erotismo vivido em sua fase decadente, no caminho da dissolução. O que é excessiva — e, portanto, erótica — nesse conto é a ausência de desejo do homem pela mulher. Por isso, o narrador não se abala “com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara.” Daí a inutilidade dos esforços lúbricos da mulher. No fim, o que resta é “a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória”, e ela deixa “o quarto feito sonâmbula”. Na moldura do conto, como na janela do quarto de trabalho do narrador, o buraco negro do tempo passado condenou-os ao sono da morte e tragou o desejo.

A irrupção de um desejo que demanda controle, destacado pela moldura mas impossível de ser por ela contido, acarreta mal-estar, náusea ou angústia. Essas consequências indesejáveis do desejo manifestado em público apesar dos mecanismos de repressão aparecem invariavelmente na forma de uma excreção: escapa aquilo que há no interior dos corpos dos seres tocados pelo desejo, dos objetos a eles pertencentes ou de suas vestimentas. Em Lavoura arcaica, André percebe: “estava por romper-se o fruto que me crescia na garganta”. Em Um copo de cólera, o chacareiro se dá conta: “a merda que me enchia a boca já escorria pelos cantos”. Em O velho, uma pensionista, à mesa de jantar, consome política sem querer ou perceber, negando-o inclusive, disfarçando-o sob lubricidade, e quando a política vem à tona (pelo desabafo do jovem), ela “engasga e tosse sem parar”. Em Menina a caminho, uma das elipses relacionadas a um episódio de cunho sexual faz os sacos carregados pelos meninos terminarem “vomitando palha pela boca aberta, como se tivessem levado um murro violento na barriga”.

Dar forma é, em última instância, condenar à imutabilidade. Uma cruzada antitaxonômica e antimorfológica — batalha contra categorias e formas — é encenada na obra de Raduan Nassar, conforme tangencia Augusto Massi ao afirmar: “a obra de Raduan sugere um estrangulamento do espaço que tem início numa cidade (Menina a caminho), restringe-se à família (Lavoura arcaica) e fecha o foco num casal (Um copo de cólera). Há uma poderosa correspondência entre esse processo de afunilamento e as diferentes fases da vida (infância, adolescência e maturidade)”.[3]

Nesse afunilamento, paralelo à caminhada rumo ao passado que conduz a um abismo, o grande inimigo é o tempo. Se nessa obra há uma geometria específica que determina todos os seus aspectos, é porque a passagem do tempo é vista sempre como deformação: degradação da forma original — infantil, mítica, distensa, plena. Por isso, o que é consumido durante o amadurecimento acaba por ser excretado, expulso do corpo.

Leia ensaio sobre as paixões na obra de Raduan Nassar.

NOTAS

[1] Verdade tropical, Companhia das Letras, 1997, p. 355.
[2] Idem, p. 100.
[3] “As recusas de Raduan” in: Folha de S. Paulo, 14/03/1997.

 

Obra completa
Raduan Nassar
Companhia das Letras
464 págs.
Estevão Azevedo

Nasceu em Natal (RN). Formado em jornalismo e letras, é editor e escritor. Publicou seus primeiros livros de contos, O terceiro dia (2004) e O som da nada acontecendo (2005), pelo coletivo Edições K. Seu primeiro romance, Nunca o nome do menino (Terceiro Nome, 2008), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Tem contos publicados em revistas e na antologia de escritores brasileiros Popcorn unterm Zuckerhut – Junge brasilianische Literatur, publicada na Alemanha pela Verlag Klaus Wagenbach. Tempo de espalhar pedras será publicado em breve pela Cosac Naify.

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