Ruy Espinheira Filho, 63 anos, um dos grandes poetas brasileiros da atualidade, acaba de lançar Forma & alumbramento – Poética e poesia em Manuel Bandeira. Como se sabe, Bandeira (1886-1968) fez crítica literária, musical e de artes plásticas para vários jornais e revistas. Mas não só. Foi ainda articulista, ensaísta, professor, correspondente, organizou antologias de poesia e escreveu uma biografia de Gonçalves Dias. O mais interessante é que Ruy segue num caminho também próximo na diversidade de funções. Em seu caso, deve-se somar sua experiência de poeta, às de cronista, ficcionista, professor universitário, jornalista e também ensaísta. Como cronista, escreveu durante doze anos para o jornal Tribuna da Bahia, e, entre 1983-93, para o Jornal da Bahia.
O seu primeiro livro de ficção foi editado por Ênio Silveira. Em 1974, Ruy enviou Heléboro, seu livro de estréia, ao diretor editorial da Civilização Brasileira, Mário Brito. Ao enviar os originais das crônicas, Ênio Silveira respondeu que já conhecia sua poesia, emprestada por Mário, e que se sua prosa fosse tão boa quanto ela, editaria o livro. Meses depois saiu então o livro de crônicas Sob o último sol de fevereiro. Assim, sua primeira publicação numa grande editora deve-se a um pequeno livro de poemas editado na Bahia. Hoje, sua ficção encontra-se esgotada: Os romances Ângelo Sobral desce aos infernos (2º lugar do Prêmio Rio de Literatura, em 1985) e o livro de contos O vento no tamarindeiro, assim como as novelas O rei Artur vai à guerra, O fantasma da delegacia e Os quatro mosqueteiros eram três.
Quanto a sua poesia, um dos seus últimos títulos, Memória da chuva (Nova Fronteira) já se encontra na terceira edição. Poesia reunida e inéditos (Record, 1998) se encontra na segunda edição. Nos últimos anos, sua poesia tem sido objeto de teses acadêmicas, como a de Alex Simões. Defendida no Curso de Letras da UFBA com o título O que ler no poema: crítica e criação literária em Ruy Espinheira Filho, a dissertação de Alex discute autores que também pensam a literatura, ministram aulas, fazem crítica e exercitam a teoria, como é o caso de Ruy. Segundo Alex, Ruy é o poeta por excelência da memória. Seus poemas são habitados por sonhos e rememorações da infância.
Agora, Ruy Espinheira começa também a se firmar como ensaísta. Sua tese de doutorado defendida na UFBA, Tumulto de amor e outros tumultos — criação e arte em Mário de Andrade, publicada em 2001 pela Record, trata-se de um estudo em torno da estética de Mário de Andrade, extraída da leitura de centenas de cartas que o poeta escreveu. No livro, Ruy utilizou parte dessa correspondência, além de artigos, críticas, ensaios, polêmicas, etc. Sua intenção é discutir o pensamento de Mário a respeito do seu processo de criação, ressaltando seus conceitos a respeito da arte, não apenas da poética ou literária, já que ele escreveu sobre artes plásticas, música e folclore.
Neste segundo grande ensaio, em que se volta para a poesia de Manuel Bandeira, Ruy dá continuidade ao livro anterior sobre Mário. Naquele, o pensamento estético do Mário; neste, o de Bandeira. O livro reverencia o poeta (que, ao lado de Carlos Drummond de Andrade, influenciou gerações inteiras) e se junta a títulos que têm saído acerca da poesia de Bandeira, após um certo silêncio que se seguiu a sua morte. Como exemplos, podemos citar Humildade, paixão e morte, de Davi Arrigucci; Manuel Bandeira: uma poesia da ausência, de Yudith Rosenbaum; Roteiro de Leitura: poesia de Manuel Bandeira, de José Carlos Garbuglio, e Manuel Bandeira, de Murilo Marcondes de Moura (série Folha explica).
O livro de Ruy não se chama Forma & alumbramento por acaso. Segundo ele, “Manuel Bandeira foi o poeta brasileiro mais lírico e límpido do século XX. Seu lirismo está presente desde os primeiros poemas — e às vezes de maneira tão espontânea e solta que Mário de Andrade (que queria o poema com intencionalidade, ou seja, elaborado, não apenas recolhimento de impulso lírico), chegava a reclamar. Mas Bandeira está muito longe de ser apenas um registrador de impulsos líricos. Por isso o título deste trabalho — porque o poeta era tanto o mestre da técnica, o cultor da forma, como o iluminado de alumbramentos, de epifanias”. (p. 15). Assim, seu livro vem ressaltar a grandeza de Bandeira, às vezes tido como um poeta menor: “Num país em que o individualismo e o subjetivismo costumam ser atacados como exemplos de inferioridade, Bandeira conseguiu ser aclamado como um dos nossos maiores.” (p. 19). De menor, claro, Bandeira não tinha nada. Ruy ressalta a admiração de Drummond pela sua poesia, um poeta que: “Talvez tenha igualado Bandeira, na consagração de público. Mas Carlos Drummond de Andrade admirava, no Brasil, acima de todos, um poeta: Manuel Bandeira. Esta admiração ele proclamava inúmeras vezes, não aceitando ser comparado ao amigo mais velho, o qual tinha na condição de ‘mestre’”. (p. 20).
Uma das imagens mais repetidas sobre Bandeira e que o tornaram célebre foi a sua suposta “condenação” devido a seu diagnóstico de tuberculoso e ter se internado no sanatório suíço de Clavadel. Tudo isso, entretanto, reforça mais um mito que o seu estado real, devido aos cuidados que o poeta tomou a vida toda, mas decerto Bandeira influenciou essa imagem do poeta doente e soturno (escreveu diversos poemas utilizando-se do tema). Ruy contesta a idéia do homem frágil, assim como rebate o crítico português Adolfo Casais Monteiro, que afirmou que o livro O ritmo dissoluto lhe causou mal-estar, por não aprovar a adoção do verso livre e linguagem mais coloquial e moderna do poeta (p. 109).
Autor de A cinza das horas, Libertinagem, Estrela da manhã, Mafuá do malungo e Itinerário de Pasárgada, a poesia e os temas recorrentes de Manuel Bandeira parecem ficar ainda mais claros pelas deduções críticas e pela acuidade irretocável de Ruy ao analisar sua obra, daí Forma & alumbramento poder ser lido também como uma biografia crítica por acompanhar as andanças, as inquietações, os tormentos d’alma do poeta, sempre tendo em vista as questões suscitadas pela sua poesia. Nesse sentido, um ponto alto do livro é o capítulo em que Ruy trata das cartas trocadas entre ele e Mário de Andrade, já publicadas pela Edusp/IEB. Bandeira, aos 36 anos; e Mário, aos 29 anos: “eram artistas em plena formação quando iniciaram a troca de cartas. E temos que levar em conta que eram artistas de um novo tempo, ou seja, criadores de uma nova estética, de novos valores, de um novo olhar sobre o mundo, a vida, a nação brasileira… Uma condição, pois, bastante delicada, como ocorre nas situações, digamos, inaugurais. E em tarefas em tais condições há sempre — além das mil e uma dificuldades que sempre assaltam os que abrem caminho — muita, muitíssima solidão” (p. 140).
Forma & alumbramento, como bem afirma André Seffrin, é “um livro no qual os poetas conversam”. Com esse livro, Ruy parece ainda mais fluente, embora mantenha o mesmo rigor e visada crítica do livro sobre Mário, mas que agora soa ainda mais coloquial, talvez porque o livro anterior tenha sido originariamente sua tese de doutorado. De fato, o legado deixado por Bandeira para a literatura brasileira é imenso e parece ainda maior quando resgatado por Ruy: “Foram 82 anos de uma existência sempre agitada, participante. A mínima provocação o encontrava disposto às mais duras batalhas… Em tudo ele deu o máximo de si, produzindo sempre obras do mais alto nível. O que então concluir? O óbvio: que sem Manuel Bandeira a alma nacional seria muito mais pobre”. (p. 222). Para fechar suas análises, Ruy Espinheira Filho não poderia deixar de fora outro grande poeta que decerto forma uma trinca ao lado de Mário e Bandeira: Seu próximo livro tentará decifrar o (claro) enigma Carlos Drummond de Andrade.