Entre uma coca-cola e uma pepsi, a garota prefere a primeira. Ela lembra do sabor, está com sede e escolhe a versão light. Toma um gole pequeno para conferir a temperatura e está tudo perfeito. A garota é uma consumidora satisfeita. Na próxima vez que sentir sede do tipo que não se mata com água, ela sabe qual refrigerante vai tomar.
Agora ela vai para a livraria. Não sabe exatamente o que procura, mas se interessa pelo novo livro de Nick Hornby, Uma longa queda. Ela leu Alta fidelidade e achou legal. Não quis ler Febre de bola porque não tem gosto por futebol, mas achou Um grande garoto bem bacana. Dos filmes feitos a partir dos romances, gostou de todos. Pode até ser considerada uma fã de Hornby.
O livro tem uma capa bem sacada. O título e o nome do autor estão escritos com uma fonte que lembra aquela do seriado Jennie é um gênio. Existem quatro pessoas, uma delas está no alto de uma escada e se apóia no que parece ser um muro. Na contracapa, a garota lê: “Véspera de Ano-Novo no Toppers’ House, prédio conhecido como o local preferido dos suicidas, localizado no norte de Londres. Quatro estranhos estão prestes a descobrir que se matar não é exatamente um ato que proporciona a privacidade que esperavam e que, juntos, podem perceber que a vida ainda tem muito a lhes reservar”. Está claro que é uma história edificante — a última oração, muito mal escrita, é bastante direta. Eles querem se matar, mas “a vida ainda tem muito a lhes reservar”. Quer dizer que a vida não reserva nada por ora, mas no futuro deve reservar muito. Enfim, o melhor é não discutir a droga da contracapa, que mal-e-mal vende o conteúdo do livro.
Quando lê sobre os suicidas, a garota acha que aquele título poderia ser diferente dos outros de Hornby. O tema é difícil e sugere elucubrações sobre vida, morte e falta de sentido das coisas. Fascinada pela possibilidade de descobrir algo que ainda não sabe sobre a existência, a garota compra o livro. Mas não demora a entender que a narrativa está longe de qualquer discussão profunda sobre o ser e o não ser. Na verdade, ao fim do primeiro parágrafo, ela começa a abandonar suas expectativas.
Vale dizer que Hornby é ótimo para criar personagens e o faz dando voz a eles. É interessante como cada um fala de forma a tornar possível um retrato mental — sem que se precise citar características físicas. Descrições não interessam. Pelo menos três quartos do romance são de diálogos. Parece um roteiro cinematográfico pronto para ser filmado. O que de fato deve acontecer logo, já que os direitos de adaptação foram vendidos antes até do lançamento do livro.
Os quatro personagens se encontram no topo do tal edifício — que não existe fora do papel —, com a intenção de cometer suicídio. Desse momento em diante, eles se intercalam como vozes narrativas. A história começa com Martin, apresentador de tevê com um fraco por meninas menores de idade (o motivo de sua derrocada). Depois de sair da cadeia, obrigou-se a trabalhar em um canal de tevê a cabo obscuro, o único que o aceitou como empregado. Para piorar, a ex-mulher o impede de ver as filhas. Ele foi ao Toppers’ House levando escada e alicate para cortar a cerca que deveria impedir os suicidas de saltarem. Martin está sentado no parapeito do prédio quando entra na história Jess, adolescente tapada e mimada que quer morrer porque o namorado a ignora. Não muito original, é verdade.
Na seqüência, chegam Maureen e J. J. Ela, mãe de um garoto chamado Matty que é pouco mais que uma planta. Encerrado numa cama, ele nunca se comunicou nem moveu qualquer parte do seu corpo desde o nascimento, há 19 anos. Sem dinheiro, Maureen se obriga a cuidar do filho 24 horas por dia. Não faz nada além disso. Vive com uma pensão irrisória e jamais teve férias. Decidiu se suicidar.
J. J. é a parte americana da ação que se passa em Londres. Ele fazia parte de uma banda e tinha uma namorada. O fim de uma levou ao fim da outra. Sem perspectivas de conseguir emprego como músico e nem de arranjar mulheres, perdeu o interesse pela vida. Entre passar o resto dos seus dias fritando hambúrguer ou se jogar do topo de um edifício, preferiu o segundo (com certeza uma escolha mais difícil do que “coca-cola ou pepsi”).
Encontro decisivo
Sem a privacidade necessária para levar a cabo suas intenções, os quatro não têm dificuldade de convencer uns aos outros a não morrer e a descer do prédio. O acordo é esperar até o dia dos namorados, dali a seis semanas. Se, depois desse intervalo, eles ainda quiserem se matar, tudo bem. Combinam de se ver eventualmente até o dia do encontro decisivo.
Porém, no meio do caminho, a imprensa aproveita o fato de Martin ser uma celebridade (ainda que decadente) e publica a história do quarteto, dando destaque ao apresentador. O “furo” se deve a Jess, que deu com a língua nos dentes em troca de um bom valor em dinheiro. A matéria inclui um detalhe insólito: eles teriam desistido do suicídio porque um anjo apareceu e os dissuadiu. A história é absurda, mas Jess dividiu com o grupo as cinco mil libras que conseguiu. A melhor idéia que tiveram para gastar o dinheiro foi acompanhar Maureen a Tenerife em suas primeiras férias em duas décadas.
Essa atmosfera nonsense que envolve a narrativa pode até ser proposital — uma forma de tratar o tema áspero —, mas acaba criando um efeito colateral. O livro funciona como uma comédia de situação (sitcom), igual àquelas que passam em canais de tevê a cabo. O grupo de amigos está no topo do prédio para morrer. Em seguida, estão numa festa atrás do namorado de Jess. Depois estão em uma praia de Tenerife e assim por diante, sempre trocando diálogos ora engraçados, ora irritantes. Mas quase sempre vazios. É claro que Hornby consegue ser mais complexo que Friends (dos seis amigos que vivem em um apartamento de Manhattan). Tarefa nada difícil, pois existem outdoors mais elaborados que o seriado.
O autor é bom na construção de diálogos, como os da página 85:
— Vocês estão namorando? — Jess perguntou a ela.
— Melhor perguntar para ele — respondeu Penny. — Ele é quem desapareceu no meio de um jantar.
— Vocês estão namorando? — Jess perguntou a ele.
— Sinto muito — disse Martin.
— Responda a pergunta — disse Penny. — Estou interessada.
— Este não é o momento para conversarmos sobre isso — disse Martin.
— Então claramente existem dúvidas — disse Penny. — O que pra mim é novidade.
— É complicado — disse Martin. — Você sabia disso.
— Não.
— Você sabia que eu não estava feliz.
— Sim, eu sabia que você não estava feliz. Mas não sabia que estava infeliz comigo.
— Eu não estava… não é… Podemos conversar mais tarde? Em particular?
Fora dos diálogos, alguns trechos do texto são previsíveis demais. De fato, não é fácil fazer uma analogia original com os Beatles. Na página 38:
O fato de o cara parecer um astro do rock, com aquele cabelo e a jaqueta de couro até que ajudou, mas o que senti não tinha nada a ver com música; só quis dizer que deu pra eu perceber que a gente precisava do JJ, e aí quando ele pintou por lá, pareceu certo. Mas ele não era o Ringo. Era mais como o Paul. Maureen era o Ringo, só que não era muito engraçada. Eu era o George, só que eu não era tímida nem espiritual. Martin era o John, só que não era talentoso nem descolado. Pensando bem, talvez a gente fosse mais como um outro grupo de quatro integrantes.
A abundância de travessões, mais a ausência de descrições dão ao texto a cara dos romances que os americanos classificam de fast pace, velozes, de leitura rápida. Essa velocidade trabalha a favor da sensação de superficialidade. O que não significa que o livro de Hornby não seja divertido. Ele entretém. É melhor que o romance anterior, Como ser legal, mas inferior aos outros três.
O britânico chega a ensaiar outras pretensões — como criticar George W. Bush, a guerra do Iraque e o primeiro-ministro Tony Blair. Na voz de um personagem, ele os chama de “pessoas estúpidas”. Nunca Hornby foi tão politizado, mas, no fim, ele só engrossa o coro dos descontentes.
O livro tem partes em que a falta de sentido do que é narrado desafia a boa vontade dos leitores mais solícitos, como quando Martin faz uma lista de afazeres e um dos tópicos é “Dar cabo da minha vida?”. Não é dramático nem engraçado. É chato. Pode não parecer aqui, fora de contexto. Mas acredite, é. Para um livro do gênero, “chato” deve ser a pior crítica possível.
Se este texto fosse se apropriar do esporte favorito de Hornby — o de fazer rankings —, daria para dizer que a página 275 é, de longe, a pior de todas as 304. Ela consegue reunir duas metáforas estapafúrdias, uma usa o velocista Carl Lewis e outra cita telefone. Ambas são estúpidas.
Se o conteúdo é raso e a forma, simples, sobra ser divertido. Na hipótese de o Rascunho usar o sistema de classificação por estrelas, sendo uma para bombas e cinco para obras-primas, Uma longa queda levaria duas. Quem escolhe ler Nick Hornby sabe bem o “gosto” que suas histórias têm.