O gosto do vinho

Romance inacabado de Juan José Saer, “O grande”, explicita ainda mais a arbitrariedade de qualquer fim
Juan José Saer, autor de “O grande”
01/04/2011

O primeiro romance de Juan José Saer que me chegou às mãos foi A pesquisa. Interessado que estava nos romances policiais, li aquela breve e instigante história em duas assentadas. Como enredo policial, é brilhante: as motivações do criminoso, sua identidade, o processo de investigação são postos em dúvida e reelaborados em novas versões possíveis, rompendo assim as amarras de um gênero que supõe, no mais comum das vezes, o exame lógico da realidade, exame que nos leva à solução de um enigma. Em A pesquisa, porém, prevalece a ficção, e a noção de que, bem reelaborada, a verdade pode ter muitas versões possíveis. Mas não era só isso: a trama policial (que se passa na França) era objeto de discussão de um grupo de amigos argentinos — Pinchón, Tomatis, Soldi — envolvidos eles próprios em suas próprias investigações filosófico-literárias. A sem-cerimônia com que esses personagens eram apresentados sugeria uma intimidade da qual eu, leitor de primeira viagem, não compartilhava. A trama policial era um detalhe dentro de um contexto maior que, aliás, parecia ir além dos limites daquele romance.

Tal contexto é o conjunto da obra de Saer. De livro a livro, repetem-se temas, personagens e cenários (a província de Santa Fé, as ilhas insulares do rio Paraná), que o leitor contumaz passa a habitar familiarmente. Tal recorrência pode sugerir que estejamos lendo sempre o mesmo livro, com diferentes nuances e matizes. Há quem diga, aliás, que esse é o irremediável destino de todo escritor, o de reescrever o mesmo material. Tal argumento é discutível, e pode soar pejorativo, descrevendo livros de autores limitados que se repetem ad nauseam. No caso de Saer, é mais correto afirmar que estamos sempre lendo as pequenas partes de um grande romance. Partes que compõem um quadro insuspeitamente heterogêneo: flertando com o romance policial (A pesquisa), o romance histórico (O enteado), o nouveau roman (Ninguém nada nunca), Saer não se submete a nenhum desses gêneros; antes, parece discutir em cada uma de suas realizações os limites de cada forma, utilizando-as na elaboração de suas próprias questões narrativas. O grande, romance deixado inconcluso e publicado postumamente, sintetiza algumas dessas questões.

Dizer que a trama de O grande é “construída com elementos do romance policial” (como nos avisa a quarta capa do livro) pode nos dar a impressão de uma leitura ágil, ou de ser este mais um dos muitos romances contemporâneos que parodiam os tiques das tramas policiais. Mas não é bem isso. O grande trata da volta de Willi Gutiérrez a sua cidade natal, Rincón, após 30 anos desaparecido. Ninguém sabe ao certo os motivos que o levaram a abandonar a cidade, misteriosamente, sem despedidas; tampouco sabe-se muito bem o que ele teria feito durante esses anos, passados na Europa, onde (especula-se) Gutiérrez teria enriquecido como roteirista de cinema. Sua fala, porém, nunca esclarece os países em que viveu ou os filmes em que trabalhou: “Se virei roteirista de cinema”, diz, “foi para desaparecer melhor como artista, porque o roteirista não tem existência própria; e para desaparecer também como indivíduo utilizei um pseudônimo que, exceto meu produtor, ninguém conhece”.

Mas a trama não se concentra apenas no passado de Gutierrez. Longe da agilidade dos policiais, a trama é lenta, repleta de digressões, e se divide em muitos pontos de vista. Protagonista, se há, é Nula, vendedor de vinhos e filósofo amador, bastante propenso a reflexões sobre, por exemplo, as ilusões de nossa percepção do mundo ou a relatividade do tempo.

Um tema
Na verdade, pode-se dizer que um dos temas mais importantes do romance é precisamente o tempo. Mas o tempo não se escreve, não se submete às palavras. É como o gosto do vinho. Nula sabe que explicar para um freguês as nuances de paladar de um bom vinho é impossível: “as sensações”, reflete, “considerando do ponto de vista filosófico, são incomunicáveis”, de modo que só lhe restam metáforas e comparações. Talvez pudéssemos dizer o mesmo sobre o tempo. Saer não busca defini-lo, mas o demonstra através de personagens complexos, imagens poderosas e uma escrita nunca menos que sofisticada.

Desde as primeiras páginas, o leitor percebe que não está lendo um romance exatamente linear. Nula e Gutierrez caminham juntos e se postam, lado a lado, para contemplar por instantes as águas do rio. Um instante que se desdobra em devaneios, memórias, reflexões, demonstrando que o tempo não transcorre apenas horizontalmente, mas também em sentido vertical, “sugerindo que inclusive o presente, apesar de sua fugacidade legendária, e mesmo em sua fímbria instável e finíssima, pode tornar-se infinito”.

Se não infinito, o tempo narrativo pode seguramente, sob o controle hábil de Saer, estender-se ou expandir-se. Os devaneios dos personagens permitem que em poucas páginas ouçamos diferentes vozes, vindas de tempos distintos, narrando diferentes eventos que se sucedem não fragmentariamente, de maneira truncada, mas em períodos longos e caudalosos, de um tecido narrativo bem urdido.

Essa urdidura faz do passado não uma sombra do presente, mas parte dele. O passado não se perde, e se faz notar em cada gesto, em cada diálogo: por exemplo, na culpa de um sobrevivente — Gutiérrez — ao se referir aos mortos da violenta ditadura argentina; na impotência de Tomátis ao recordar o improvável desaparecimento de Gato Garay e Elisa; nos motivos pessoais que levam Soldi e Gabriela a investigar o movimento literário de província conhecido como precisionismo; no rancor de Lucía contra seu pai legal, que a faz aceitar como uma forma de libertação a suposta paternidade de Willi Guttierrez.

O talento de Saer está na construção dessa urdidura, metaforizada na imagem do rio. A certa altura do livro, lemos uma interessante definição de romance:

Gabi recorda um caso contado por Tomatis, que um dia o ouviu de seu pai: estavam olhando a água correr, debruçados na guarda de ferro da ponte pênsil, e Barco teve a idéia de perguntar: Carlitos, na sua opinião, o que é um romance? E Carlitos, sem vacilar um segundo e sem nem mesmo desviar os olhos da água que corria, formando redemoinhos de encontro aos pilares da ponte vários metros abaixo, respondeu: O movimento contínuo decomposto.

Da mesma forma que somos muitas vezes tentados a considerar esse ou aquele personagem um alter ego de um determinado autor (em parte porque isso nos dá uma chave fácil de leitura), também somos tentados a localizar em declarações (metaficcionais?) como essa o “segredo” para a leitura do romance. Não chegarei a dizer que O grande seja a expressão exata desse movimento contínuo decomposto de que fala Carlitos. Afinal, é preciso ler os personagens com certo distanciamento, e consciente de que há muito ali de paródia do discurso filosófico. Não há dúvida, porém, de que a imagem do rio é bastante adequada para ilustrar a composição narrativa, um conjunto de pequenos redemoinhos concêntricos que se formam e se desmancham aleatoriamente, mas ainda assim compondo um todo aparentemente uniforme. Mas apenas aparente. Usando outra analogia, Nula sabe, por exemplo, que aquilo que alguns imbecis vêem como uma “dança harmoniosa” das borboletas, “não passa de uma sucessão, em escala diminuta, de cataclismos e catástrofes”.

Vão e patético
Essas e outras imagens fortes permeiam todo o romance, e impedem que o discurso filosófico se perca na pura abstração, mas se materialize em imagens insuspeitamente poéticas. Como o casal de amantes excitados não com o ato sexual iminente, mas com a multiplicação de suas imagens provocada por um jogo de espelhos, duplicando-os ao infinito. Essa ilusão de imortalidade é mais comovente na medida em que é sabida como ilusão. Tomatis, voltando de uma viagem de ônibus, contempla a movimentação de jovens contentes com a proximidade da noite de sábado. Mas o observador atento sabe que, “embora ainda pareçam ignorá-lo, e embora alguns, talvez, estejam fazendo de conta, todos já carregam a carga que abate e desespera”. Essa desesperança perpassa todo o livro, e embora haja personagens tentando recuperar o tempo ou agir como se os anos não tivessem passado, isso é tão vão quanto patético.

A questão maior está, talvez, na consciência da fatalidade, perceptível nas cenas mais banais. Porque o estranho, descobrimos, não está no insólito, mas no familiar; “basta um olhar externo, que às vezes pode vir de nós mesmos, por fugaz que seja, para revelar-nos esse fato”. E Saer, fugindo absolutamente dos lugares-comuns e das saídas fáceis de grande parte da metaficção contemporânea, incorpora formalmente tais questões. Talvez sua literatura promova exatamente esse “olhar externo” sobre as coisas. Em artigo publicado na revista Novos Estudos Cebrap (n.° 73, de novembro de 2005) Beatriz Sarlo afirma que, em Juan José Saer, “problemas filosóficos e estéticos e questões sobre a possibilidade da representação da realidade, antes que delineados ou transmitidos nos diálogos, aparecem como performance narrativa”, ou seja, “o problema do tempo e do real, Saer mostra em estado de ficção”.

O fato de o romance terminar abruptamente sugere uma irônica contribuição a essa performance narrativa. Em nota do editor argentino que providencialmente acompanha a edição da Companhia das Letras, é explicado que Saer não chegou a revisar o sexto capítulo, escrito em grande parte no hospital e diretamente no computador, ao contrário de seu conhecido hábito de escrever a mão. E que o sétimo capítulo — que hoje se resume a um brevíssimo período — deveria ser de fato bastante curto, como uma coda. Difícil imaginar como seria o desfecho do livro. Do jeito que está, porém, sugere de maneira mais contundente a arbitrariedade de qualquer fim.

O grande
Juan José Saer
Trad.: Heloísa Jahn
Companhia das Letras
416 págs.
Juan José Saer
Nascido na Argentina em 1937, Juan José Saer é um dos mais importantes escritores argentinos do século 20. No Brasil, foram lançados Ninguém nada nunca, A pesquisa, A ocasião e As nuvens, pela Companhia das Letras, e O enteado, pela Iluminuras. Professor universitário e radicado em Paris desde 1968, morreu na capital francesa, em 2005.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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