O futuro é um arquivo

"Queimando livros," de Richard Ovenden, traça uma cronologia das grandes guerras do ponto de vista do ataque a bibliotecas e arquivos
Biblioteca Holland House, em Londres, destruída durante a Segunda Guerra.
01/05/2023

Existe uma fotografia emblemática da Segunda Guerra em que três homens, todos de chapéus e casacos pesados, estão diante de uma longa fileira de estantes, os únicos móveis aparentemente intactos no que restou de um salão totalmente destruído. Em meio aos escombros, eles parecem escolher, com muita paciência, a próxima leitura, analisando com concentração as lombadas das prateleiras organizadas e abarrotadas de livros que, a considerar o cenário, provaram ser milagrosamente indestrutíveis. O homem do segundo plano, aliás, segura um exemplar aberto, como quem ultrapassa a curiosidade da capa e se permite uma amostra do texto envolvido por ela — aquele segundo ato que todos nós nos permitimos antes de escolher a obra a que dedicaremos nosso parco tempo. O teto e a maioria das paredes não existem mais, estão ao chão, acumulados em pilhas de destroços que cobrem todo o piso, mas não impedem aqueles sujeitos de passear entre uma estante e outra. A fotografia, apesar da violência que retrata, transmite uma atmosfera silenciosa, solitária, mas potente, como a que costuma ocupar qualquer biblioteca do mundo.

A imagem a que me refiro é um registro anônimo do que restou da Biblioteca Holland House, em Londres, depois de ter sido bombardeada por aviões nazistas em outubro de 1940. Não é possível saber se se trata de um flagrante ou de uma cena montada — há uma suspeita de que tenha sido uma imagem encomendada pelos serviços de propaganda britânicos —, mas a imagem diz muito por si só. Amiúde ela é usada como metáfora da resistência da leitura e dos leitores, do caráter inabalável do conhecimento humano e da potência dos livros.

Todavia, o que Richard Ovenden nos propõe em Queimando livros: uma história sobre o ataque do conhecimento é analisar episódios como esse de uma perspectiva distinta: no lugar de comemorar o milagre da resistência dos livros e de seus leitores, ele traça uma cronologia das grandes guerras da humanidade do ponto de vista do ataque a esses edifícios e arquivos. Ovenden não comenta especificamente o ataque a Holland House, mas é possível inferir, considerando seus argumentos, que o bombardeio desse edifício, assim como de muitos outros, não foi um mero acidente ou um erro estratégico dos alemães. De sua detalhada pesquisa, depreendemos que a destruição e o saque de livros, monumentos e outros arquivos têm sido, desde os tempos da Alta Mesopotâmia, uma tática de guerra.

Uma batalha silenciosa
Um aspecto muito interessante do panorama histórico traçado por Ovenden nessa obra é a luz que ele joga à importância de uma função que, de maneira geral, passa despercebida: a dos organizadores e mantenedores dos livros e documentos, ou seja, os bibliotecários e arquivistas que, ele deixa isso evidente, tiveram um papel tão silencioso quanto heroico na batalha contra a extinção do conhecimento.

O próprio Richard Ovenden dedica-se exatamente a essa missão. Bibliotecário-chefe da Universidade de Oxford, na Inglaterra, Ovenden é o 25º na sucessão do título Bodley’s Librarian, ou bibliotecário de Bodley, cargo que vem sendo transferido desde 1599, quando o clérigo anglicano Thomas James ocupou o posto pela primeira vez. Aliás, há um capítulo inteiro sobre a fundação, a destruição e a reconstrução da biblioteca que hoje é comandada por Ovenden, e talvez possamos partir dessa história para ilustrar o modo como as narrativas desse livro evidenciam a importância de certas figuras na preservação de uma parte considerável de nossa memória coletiva.

A Biblioteca Bodleiana é o principal acervo de pesquisa da Universidade de Oxford e uma das bibliotecas mais antigas da Inglaterra. Ela recebeu esse nome porque foi fundada por sir Thomas Bodley, aristocrata e intelectual inglês que se empenhou na missão de recompor o antigo acervo da universidade, que tinha sido quase que completamente disperso e destruído no decorrer do século 16, durante o reinado de Henrique VIII.

Lembremos que Henrique VIII, contaminado pelo movimento reformista de outros cantos da Europa, e pessoalmente interessado em desobedecer determinados dogmas da igreja católica romana, rompeu com o Papa. O rei queria anular seu casamento com Catarina de Aragão e se casar com a cortesã Ana Bolena, mas o pedido foi negado. Sabemos que, por fim, ele acabou fundando sua própria igreja, a anglicana, que seria comandada por ele mesmo.

O que pouco sabemos é que parte da estratégia de dominação ideológica do monarca envolveu as bibliotecas de duas maneiras distintas: destruindo qualquer obra ou documento que aludisse à “velha religião” e seus dogmas, mas também recolhendo obras que pudessem provar que suas convicções e decisões pessoais estavam resguardadas teologicamente. Desse modo, houve quem tivesse sido enviado para destruir e saquear os acervos monásticos e outras bibliotecas no território sob seu domínio. Mas antes de a reforma anglicana ter sido consumada, a coroa inglesa financiou verdadeiras expedições empreendidas por pesquisadores e intelectuais que percorreram todas as bibliotecas conhecidas em busca dos argumentos para embasar a defesa do rei. Os registros e anotações desses pesquisadores são as únicas evidências daquilo que haveria de se perder para sempre.

A reforma, principalmente a britânica, resultou em um prejuízo imensurável: centenas de milhares de livros, manuscritos e documentos foram perdidos para sempre, dezenas de bibliotecas foram completamente saqueadas e destruídas, acervos inteiros desapareceram do mapa, entre os quais aquele que viria compor a coleção da Universidade de Oxford, iniciada ainda no século 12. Estima-se que mais de 90% desse acervo desapareceu completamente durante esse período.

É aí, já na virada do século 17, que sir Thomas Bodley entra em ação. Com o intuito de restabelecer a biblioteca à comunidade e aos estudantes da universidade, Bodley não apenas doou sua coleção particular à instituição, mas incentivou que outras pessoas de seu meio fizessem o mesmo. Aos poucos, a nova biblioteca foi ganhando corpo, os livros passaram a ser catalogados — era uma novidade — e uma série de procedimentos de conservação e segurança foi estipulada. Até hoje essa biblioteca é referência em conservação de manuscritos medievais e outros documentos raros.

E essa não é, de longe, a melhor história contada. Há casos de destruição de livros que são mais emblemáticos. Do mítico incêndio da biblioteca de Alexandria às fogueiras nazistas, Ovenden apresenta, em narrativas dignas dos romances medievalistas de Umberto Eco, aventuras realmente surpreendentes do empenho de cidadãos comuns na preservação de livros. Mas quero crer que foi justamente o contato diário com alguns desses exemplares inaugurais da bodleiana que o motivou a entender os motivos desse recorrente ataque às palavras impressas.

A solução de Henrique VIII para dar as costas ao Papa foi apagar todos os vestígios da velha religião de seu território. Foi um movimento violento de extirpação de memória e uma seleção impositiva daquilo que deveria ou não ser considerado sagrado, daquilo que deveria ou não ser digno de permanecer no futuro, uma curadoria às avessas, que transformou centenas de milhares de livros em combustível para fogueiras.

Futuro ancestral
Ailton Krenak, nosso filósofo originário, tem divulgado nos últimos tempos um conceito basilar de seu povo e de outras etnias indígenas: o futuro não existe, o futuro é ancestral: “Seguimos num contínuo/ No rastro dos nossos ancestrais”.

Essa ideia, e aqui correndo o risco de aproximar duas cosmogonias completamente opostas, me transpassou durante a leitura de Queimando livros. Isso porque conservar uma biblioteca não significa apenas manter a salvo o pensamento dos mortos, não se trata apenas de preservar a história da linguagem, as mudanças de visão de mundo ou o desenvolvimento das descobertas científicas. Não se trata apenas de salvar do desaparecimento a cultura de um povo dizimado ou as evidências que comprovam a autoria dessa violência. Uma biblioteca é também um oráculo, que podemos consultar para entender o presente, mas sobretudo para construir e prever o futuro, para que haja um futuro possível.

E sobre isso, Ovenden oferece dois exemplos que eu gostaria de destacar. O primeiro é o que restou da Biblioteca Real de Assurbanipal, que permaneceu preservada por mais de 20 séculos. Nessas tábuas de argila, os mais antigos antecessores do que hoje entendemos por livro, estavam gravados não apenas textos literários ou documentação burocrática, mas profecias e estudos oraculares, que orientavam decisões como a melhor época para entrar em guerra ou o melhor período para se casar. A Assurbanipal é a primeira biblioteca de que se tem notícia, e sabe-se que era um espaço de constantes disputas. Saquear o conhecimento acumulado do inimigo era enfraquecê-lo, era tirar de suas mãos um conhecimento precioso não apenas para a preservação do passado, mas para o desenvolvimento no futuro.

Falando dos nossos dias, e eis o outro exemplo que eu gostaria de evidenciar, Ovenden explica, por exemplo, que registros de colheitas e plantações, que podem parecer banais, mero controle contábil de determinado produtor ou região, têm sido usados por cientistas para criar métricas de análise da mudança climática. E porque houve um empenho no registro, na catalogação e na preservação desses documentos que hoje é possível recriar os cenários que nos antecederam, de maneira a entender o que se passa no presente e prever (e prevenir) o que nos espera no futuro.

Krenak diz que os povos indígenas conseguem ver na devastação a floresta que um dia foi. É um outro modo de dizer que a memória, a memória coletiva, cultural, ancestral é material de reconstrução daquilo que foi consumido pelo fogo.

Como descendentes de um povo colonizado, não aprendemos a guardar a floresta na memória. Pelo contrário. Arrisco dizer que grande parte do que sofremos hoje é fruto, também, de algumas noções que poderiam ter sido ignoradas, mas seguiram embasando violências, noções que seguiram preservadas nas bibliotecas das igrejas e dos gabinetes reais. Mas a memória não é feita apenas de boas lembranças: por vezes são os traumas, ou melhor, a lembrança desses traumas, que nos fazem seguir para um futuro melhor.

Numa época em que estamos consumidos por informações e em que as previsões apocalípticas nos condenam a fruir narrativas estéreis construídas por máquinas, o papel da curadoria, da seleção e da preservação do conhecimento humano torna-se ainda mais fundamental. E isso nenhuma inteligência a não ser a humana é capaz de manter.

Queimando livros
Richard Ovenden
Trad.: Santiago Nazarian
Globo
294 págs.
Richard Ovenden
Estudou na Universidade de Durham, no University College, em Londres, e no Balliol College. Desde 2014, é bibliotecário-chefe da Universidade de Oxford. Antes, trabalhou em outros arquivos consagrados, como os da Universidade de Durham, da Câmara dos Lordes, da Universidade de Edimburgo e a Biblioteca Nacional da Escócia.
Vanessa C. Rodrigues

É escritora, pesquisadora de literatura e editora.

Rascunho