O futebol-arte na literatura

Resenha do romance "O drible", de Sérgio Rodrigues
Sérgio Rodrigues, autor de “O drible”
01/12/2013

(Um esclarecimento prévio talvez seja necessário: este resenhista não entende bulhufas de futebol, mas é brasileiro. Seu coração torce por um time, só não lhe perguntem qual é a escalação. Não freqüenta estádios nem assiste a jogos pela televisão, exceto quando o Brasil participa da Copa do Mundo a cada quatro anos, e aí vira expert. Nessas ocasiões seu entusiasmo consegue até explicar, a quem for ainda mais ignorante no assunto, a complexa regra do impedimento. Não vê nenhum sentido nessa agitação geral em torno da Copa do próximo ano. Contudo, dentre as lembranças mais marcantes de sua tímida carreira de torcedor estão a do jogo em que o Brasil ganhou da Inglaterra por sofridos um a zero na famosa Copa de 1970, gol de Jairzinho no segundo tempo, e a da festa da vitória sobre a Itália que nos levou ao Tri em plena vigência da ditadura militar. Não há mesmo como ficar indiferente ao futebol vivendo neste país. No entanto, ele gostaria de ter uma relação mais intensa com a maior das paixões nacionais. Não raro presencia algum apaixonado extrair de seu assunto preferido uma inaudita profundidade, e aí tem sempre a sensação de estar perdendo algo importante.)

Conflitos familiares
O pop não tem história, só revival. Esse mote, que dá título a um dos capítulos de O drible, pode ser lido como uma antítese ao argumento do magistral romance de Sérgio Rodrigues. Maxwell Smart, dono de um antiquário no Rio de Janeiro e parceiro de Murilo Neto na fracassada tentativa de formarem uma banda de rock nos anos 1980, tenta ajudar o protagonista a entender e superar o conflito do reencontro com o próprio pai, que está à beira da morte e chamou o filho, com quem estava rompido havia 26 anos, para fazê-lo participar de suas derradeiras preocupações. Murilo Filho é jornalista, escritor e cronista de futebol, um personagem com fama de garanhão e prestígio profissional no Rio de Janeiro dos anos 1960-70 que ainda não perdeu a pose nem o prazer em humilhar o filho. Este, por sua vez, não passa de um mero revisor de livros de auto-ajuda que só consegue se manter com dignidade por causa da herança deixada pela mãe, que se suicidou quando ele era ainda criança. Neto espera um pedido de desculpas pelo muito sofrimento que o pai lhe causou desde a infância até romperem relações.

Todo o domingo, o agora já quase cinqüentão deixa o Rio e vai visitar Murilo no sítio no Rocio, região serrana da Mata Atlântica próxima a Petrópolis, onde ele vive. Nesses encontros, compartilham os famosos croquetes da lanchonete Pavelka trazidos por Neto e as traíras assadas na brasa que os dois pescam numa represa da vizinhança. Assistem também a videoteipes de lances de futebol, sobre os quais o pai tece comentários misteriosos e impenetráveis. A cada tentativa de abordar o que de fato interessa ao filho, a velha e ardilosa raposa desconversa e, como num disco riscado, volta sempre ao futebol. Neto acaba por concluir que o pai está gagá e já se apronta para fazer alguma concessão piedosa a quem sempre lhe tratou com inexplicável crueldade. Mas Smart não deixa Neto se esquecer da vilania de Murilo, e traz à tona inclusive sua pecha de ter sido dedo-duro durante o governo militar. Quanto à menina dos olhos do velho, o amigo é implacável. Para ele, a popularidade que conquistou o esporte idealizado pelos aristocráticos ingleses é um fenômeno pop, e o pop não passa de lixo. Smart vai além ao sustentar que tanto o amigo quanto o pai tentam enxergar história onde há apenas lixo.

Neto é um aficionado dos anos 1970 e do estilo futurista típico daquela época. Seu carro é um Maverick 1977 preto, apelidado muito apropriadamente de Batmóvel; compõem a decoração de sua casa um sofá de zebra, uma eletrola de pés-palitos, um aparelho de tevê redondo de astronauta, dentre outros itens retrôs. Neto só toca vinis antigos e refere a todo momento programas televisivos como o do ratinho Topo Gigio e seu inseparável Agildo Ribeiro, os desenhos de Hanna Barbera e seriados como Perdidos no espaço, Jornada nas estrelas, O túnel do tempo. Tudo lixo, segundo Smart. Mas isso é história, tenta argumentar Neto. O pop não tem história, só revival.

Pode o leitor concordar ou não com o raciocínio do personagem, mas seu brilho é inegável. E vai se tornar essencial para a completa compreensão da história, porque só na superfície o livro trata de futebol — e da forma mais luxuosa possível, diga-se de passagem —, enquanto sob ela faz rastejar como um verme sujo seu verdadeiro conflito, algo cabeludo e digno de outro Rodrigues ilustre, Nelson, que dá as caras no romance como personagem secundário.

O drible alterna duas vozes narrativas. A principal, em terceira pessoa, é focada em Neto e suas angústias de filho desprezado (nos momentos finais do livro, contudo, o autor constrói uma bela transição da terceira para a primeira pessoa que faz lembrar Clarice). A outra é a do próprio Murilo num livro que ele escreve para ser seu canto de cisne e que traz a trajetória do fictício jogador Peralvo, seu conterrâneo de Merequendu, pequena cidade do interior mineiro, que veio jogar como profissional no Rio. Contemporâneo de Pelé e dotado de poderes paranormais, Peralvo foi fruto de um relacionamento inusitado de mãe de santo com marinheiro norueguês, conjunção de fatores que responderia, por alguma razão obscura, pelo talento do rapaz, tão especial que poderia ter roubado do Rei a fama e o título, não fosse por um acontecimento trágico no início de sua carreira. Esse é outro movimento importante do romance: Murilo quer explicar o Brasil através do futebol. O quanto e como esse esporte participa na formação de nossa identidade é de resto uma questão já dissecada por estudiosos ilustres, alguns citados no romance. Peralvo, um mestiço feio, desengonçado e pobre, deveu a rápida ascensão social unicamente a sua habilidade com a bola. Numa rara demonstração de confiança no filho, Murilo quer que Neto revise os originais de seu livro, transcritos em dois capítulos de O drible, antes de encaminhá-los para publicação, mas sua verdadeira intenção é outra. As duas histórias são costuradas sutilmente por um fio que só vai ser revelado no surpreendente final.

Promessa cumprida
A reconstrução de um período estranhíssimo de nosso passado recente, mais do que impecável, é saborosa. O tempo presente do romance está fixado nos dias atuais, enquanto o principal da história é relatado em flashback. Essa opção é responsável por um toque saudosista que combina à perfeição com os vínculos que os personagens mantêm hoje com aquele passado. Murilo conquistou seu prestígio numa sociedade que viveu o nascimento da Bossa Nova, a ascensão e queda de João Goulart, o golpe militar, os anos de chumbo, o ufanismo do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, a conquista do Tricampeonato no México, os reclames enganosos de que o país caminhava a passos largos para um futuro “abençoado por Deus e bonito por natureza”. Personagens reais daqueles tempos, como Nara Leão, Armando Nogueira, Mário Filho, o já citado Nelson Rodrigues, dentre outros, convivem com tipos que só existem na imaginação do autor. Nas conversas com Neto, Murilo refere inevitavelmente a grandes craques da época de ouro do futebol: Didi, Heleno de Freitas, Tostão, Rivelino.

As descrições minuciosas dos lances gravados que a tevê “trambolhuda” de Murilo não cansa de reprisar respondem por outros belos momentos. Mesmo para quem não tenha o mínimo de intimidade com o assunto será difícil não se envolver com a narração de dez segundos emblemáticos da história do futebol que abre o romance. No dia 17 de junho de 1970 (mesma data em que a mãe de Neto cometia o suicídio), o Brasil jogava contra o Uruguai na semifinal da Copa. Depois de ter driblado o goleiro uruguaio de uma forma desconcertante, Pelé chuta a bola para o lado oposto ao esperado e perde um gol que já se contava como feito. Essa jogada deve sua fama ao que poderia ter sido, mas acabou não sendo. Segundo a análise de Murilo: “Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais que a humanidade dormia tranqüila”.

Sérgio Rodrigues tem um domínio exemplar da linguagem. O discurso aproxima o coloquial do literário com uma competência rara nos dias de hoje, mantendo a naturalidade enquanto convida o leitor a refletir diante das muitas sutilezas estilísticas que irá encontrar pelo caminho. O poeta Mário Quintana dizia que o poema precisava ser reescrito várias vezes para que parecesse ter sido escrito uma única vez. Por trás da aparente simplicidade, há sempre um esforço de construção que mais bem sucedido será quanto menos ficar à mostra.

O drible pode ser desfrutado como um memorável jogo de futebol, daqueles com lances espetaculares, muitos de tirar o fôlego, a tensão mantida o tempo todo, a arbitragem correta, o resultado imprevisível. Uma exibição do brasileiríssimo futebol-arte que entrega ao torcedor tudo o que promete, e um pouco mais. Um jogaço!

Opa: um livraço!

Sérgio Rodrigues
Nasceu em Muriaé (MG), em 1962, e vive no Rio de Janeiro desde 1980. Escritor, jornalista e crítico literário, publicou o romance Elza, a garota e as coletâneas de contos O homem que matou o escritor e Sobrescritos, dentre outros livros. Criou em 2006 o blog Todoprosa, dedicado à crítica literária e que foi incorporado desde 2010 ao portal Veja.com. Mereceu, em 2011, o prêmio Cultura do Governo do Estado do Rio pelo conjunto de sua obra.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho