À primeira vista, Espiões, o premiado livro do romancista e dramaturgo inglês Michael Frayn (ganhou o Whitebread de Literatura em 2002), é uma obra de ação, mais precisamente um thriller, uma vez que o título sugere — bem como a apresentação, na orelha do livro — um certo ar de mistério. E é correto afirmar que esse clima de mistério ganha força logo que o leitor descobre que a trama se passa durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, esse mesmo teor enigmático cede lugar a um tom nostálgico a partir do momento em que o protagonista surge, ainda nas primeiras linhas, para explicar o que se verá dali para frente. Além disso, chama a atenção a maneira pela qual ele se refere aos acontecimentos no passado. Poderia ser uma cicatriz, poderia ser um artefato, poderia ser um bilhete, poderia ser, enfim, um objeto qualquer, ou até mesmo a imagem. Em vez disso, o sentido que dá motor ao romance é outro: o olfato.
Pois é pelo cheiro (“É algo completamente rude e vulgar. Cheira mal. E me balança por dentro, como sempre”) que o narrador é tragado para um passado que, por mais absurdo que pareça, ainda não fugiu, uma lembrança que insiste em resistir, a exemplo de uma prestação de contas. E essa aparente mescla de perspectivas, a princípio confusa, atinge os leitores não pelo seu aparente mistério, mas por sua revelação menos óbvia.
A partir dessas sensações, o leitor é levado para o verdadeiro debut do romance. E a história pertence, aprende-se, a Stephen Wheatley, um menino sem muita confiança, cuja fraqueza de espírito é acentuada quando colocado frente a frente com Keyth Hayward, o melhor amigo. É este último que detém as iniciativas, as tomadas de decisão sobre as próximas brincadeiras, sobre quais serão as novas traquinagens. Nesse momento, Stephen mostra-se como coadjuvante, mesmo sendo ele o narrador da história. Assim, é do melhor amigo que ele ouve o indício-acusação: “Minha mãe é uma espiã alemã”. A suspeita é alimentada graças à incursão que ambos fazem pelo quarto da Sra. Hayward. Lá, abrem uma agenda e obtêm algo que seria a amostra da traição da mãe de Keith. Com isso, a brincadeira é deixada de lado e os dois passam a perseguir a sra. Hayward, chegando inclusive a montar um esconderijo para isso.
Ocorre que essa primeira impressão, aos poucos, fica em segundo plano à medida que os garotos não conseguem avançar em suas suspeitas. Ou, melhor dizendo, cada nova pista os leva a um caminho mais turvo, sem que nada se prove de fato.
É então que o clima de desconfiança passa a ser fustigado, abrindo perspectiva para outras teorias. Sai de cena a conspiração política, entra em questão a dúvida acerca do eventual envolvimento da mãe de Keith com outro homem. Qual das suspeitas é a verdadeira? A sombra da dúvida só é desvendada no final.
A despeito desse plot, Michael Frayn assina um romance em que o estilo se impõe de maneira tal que influencia o desenrolar da história. A forma, nesse caso, é parte integrante do enredo, em virtude dos inúmeros artifícios (técnicas) utilizados pelo autor para amarrar os fios de sua trama. Em contrapartida, ao passo que o livro avança, o leitor desvenda não apenas eventuais segredos escondidos a sete chaves, mas, sobretudo, uma densidade ímpar nas relações entre os personagens. Nada de muito evidente, claro; há uma espécie de acordo tácito de cavalheiros, tal qual num jogo, segundo o qual não é permitido transcender determinadas regras, e a primeira delas (aqui quem arrisca é este resenhista) é a subtração de reviravoltas, de atropelos. Em síntese, não há gestos espalhafatosos, muito menos palavras desperdiçadas; antes, abundam a concisão e a busca da palavra exata.
Esse detalhe se torna visível no modo como o autor se refere às passagens mais delicadas de Stephen, cuja participação logo passa a ser majoritária na obra. Cabe ao garoto frágil e de orelhas de abano, como ele mesmo se define, a difícil tarefa de domar o ar zombeteiro dos outros diante de suas atitudes indecisas, diante de sua aparente falta de traquejo ao resolver questões práticas, assim como o fato de não conseguir se fazer respeitar junto àqueles que o cercam (a saber, pai, irmão e o próprio Keith). E, no entanto, ele se torna o protagonista dos momentos mais interessantes. Tanto é assim que seu melhor amigo o deixa de lado, e vai aparecendo bem menos do que no início da obra. Ademais, como tudo se trata de lembranças e o autor se recorda com alguma dificuldade das cenas e dos fatos que descreve, isso faz com que o leitor de Espiões aguarde, por um período maior, pelo desenvolvimento e pelo desfecho de certos trechos do livro.
É então que Frayn investe na descrição dos cenários que envolvem o lugarejo habitado por Stephen. A decoração da casa, as ruas, o clima cinzento (“A foggy day”, como cantaria Frank Sinatra), os galhos, a grama, as plantas, sem mencionar, num aspecto mais micro, as feições das pessoas, caracterizadas em alta definição, como se as palavras do autor pudessem examinar a alma das personagens com uma sonda, da mesma maneira que mostram suas faces com a precisão de uma lupa. Engana-se, no entanto, quem pensar que o livro se perde em devaneios prolixos, num exercício de vaidade do escritor inglês. Talvez seja até mesmo uma peripécia que a escola inglesa não permita. Assim, todo esse detalhamento concorre para uma melhor tradução das sensações tanto quanto das impressões.
Nesse sentido, nota-se um outro elemento na escrita de Frayn: a relação com as lembranças que ele impõe às personagens. Stephen, no início do livro, é apenas um senhor que se sente incomodado a partir de um cheiro que sempre lhe vem à mente na mesma época do ano. Com efeito, ao voltar para o lugar onde passou a infância, são esses mesmos odores, nem sempre agradáveis, que provocam de maneira constante e incômoda todo o reativamento de suas lembranças, naquilo que o escritor francês Marcel Proust chamou de “memória involuntária”, proveniente das sensações. Não se pretende dizer aqui que as duas obras, Em busca do tempo perdido e Espiões, são semelhantes. No entanto, seria um descuido não reconhecer essa relação — uma homenagem, quem sabe? — existente no livro de Frayn.
Há que se reparar, ainda, em como o protagonista, mesmo não sendo um modelo de herói, apresenta uma conduta exemplar, extravasando, a partir de suas dúvidas, seus dilemas morais, suas desconfianças e seus dramas. Ao mesmo tempo em que se sente abandonado, mostra coragem para encarar situações que jamais enfrentaria (como quando bate de frente com o pai de Keith); além disso, em que pese sua timidez, ele consegue definir a sua condição, e a de muitos outros da mesma idade: “Tantas coisas na vida se parecem com testes, com um tipo de prova qualquer. Vinte vezes por dia, você é um menino e tem esperanças de ser um homem, é chamado para ter coragem, para fazer um esforço ainda maior, para mostrar uma força que ainda não tem.” Em seguida, ele conclui: “Dez vezes por dia você morre de medo de mostrar sua fraqueza, sua covardia, sua falta geral de caráter e sua inadequação para ser um homem”.
Espiões pode ser analisado como um fracasso caso seja lido sob a perspectiva dos romances de ação, espionagem e perseguição. Os leitores podem, inclusive, sentir-se enganados se comprarem o livro com o objetivo de apreciar algo do gênero. Em contrapartida, não vão faltar pessoas surpresas com a perspicácia de Michael Frayn em transformar, com ironia e elegância, aparentes banalidades em um drama com tamanha profundidade. Assim, se a trama é simples, o estilo do autor mantém o livro num certo patamar. Aliás, vale a pena mencionar as palavras da mãe de Keith, num dos trechos fundamentais do romance: “Ah, a vida pode ser tão cruel. Parece fácil à primeira vista. E depois…” Tal como o livro, que depois se mostra por demais complexo para expectativas mais ingênuas.