O fio da navalha

Nos reunião de contos de "Jogos de azar", José Cardoso Pires reflete sobre a sociedade e seus desocupados
José Cardoso Pires, autor de “Jogos de azar”
01/09/2011

Relatos de desocupados e uma escritura que se coloca num entre lugar, entre surrealismo e neo-realismo, caracterizam os contos do volume Jogos de azar, de José Cardoso Pires, um dos maiores escritores da literatura portuguesa da segunda metade do século 20, que acaba de ser publicado pela Bertrand Brasil. Relações de poder, desumanização nas relações sociais, censura, falta de liberdade e o vazio são todas temáticas da potente escrita cardosiana, que se inscreve no cenário da ditadura de Salazar, em Portugal.

Um estilo marcado por precisão e leveza, que re-semantiza o real e desnuda a realidade, mas não como um todo uniforme. Imaginação e realidade formam o sintagma bipolar no qual se move o escritor e que potencializa a sua escrita como na última frase do primeiro conto que abre Jogos de azar: “Assim como uma criança acaricia uma boneca perdida, assim fazia ele à navalha aberta na palma da mão”.

Jogos de azar, publicado pela primeira vez em 1963, reúne os primeiros dois livros de Cardoso Pires: Os caminhoneiros e outros contos, de 1949, e Histórias de amor, de 1952. É preciso dizer que de cada obra ele descartou um conto para a nova configuração: Salão de vintém, do livro de 1949, e Romance com data, do de 1952. Nessas coletâneas já é possível identificar um realismo reinventado, fruto também de leituras de Poe, Faulkner, Caldwell, Melville e, não poderia faltar, Hemingway. Pela sua força de expressão, algumas de suas obras foram adaptadas para o cinema, entre elas dois contos dessa coletânea: A rapariga dos fósforos em 1978, por Luis Galvão Teles, e Ritual dos pequenos vampiros em 1984, por Eduardo Geada.

São, portanto, as primeiras experiências do autor que contêm, como aponta José Castello no texto-prefácio O caçador banal, os “fundamentos de uma escrita”. Com efeito, Visita à oficina é a expressão utilizada pelo próprio Cardoso Pires, quando em 1963, revê e relê esses experimentos literários, e reafirma o espaço laboratorial do escritor com a definição “artesanato do escritor”, que nos remete a um trabalho manual, genuíno, cuja matéria-prima está ali à disposição, é o “seu tempo”.

Experiência vivida e experiência literária (no sentido de escritura) caminham lado a lado para o autor português. Num ensaio de 1945, A experiência da criação literária, ele irá defender a tese de que a obra é indissociável da experiência do vivido de quem a escreve. Essa é uma característica emblemática da obra cardosiana. Todavia essa relação com as experiências e, por conseguinte, com o real, não é um fator limitador, ao contrário, lhe dá a oportunidade de criar um leque de imagens que lêem o momento do presente da escrita, o passado e, contemporaneamente, podem apontar para um futuro. Um tempo, então, composto de várias temporalidades. A esse respeito é emblemático o fragmento retirado do texto do autor que introduz Jogos de azar: “penso que elas (a vida primária e as desigualdades primárias) dispõem de dimensões morais, isto é, literárias, que as ampliam de significado e as não limitam a uma mera patologia social. A fome não é apenas um problema de sobrevivência, é uma questão de impossibilidade do exercício das capacidades do homem e seu rendimento como tal.”.

Charrua abandonada
Tal introdução é centrada na imagem de uma charrua (instrumento para lavrar a terra) abandonada na costa e descoberta por um pescador. A primeira pergunta que nos vem é: o que estaria fazendo uma charrua, objeto do campo, perto do mar? O objeto reconhecido como uma charrua, depois de anos ali, está desconfigurado, corroído pelo tempo, pelo sol, pela chuva, uma parte enterrado e outra à vista. Uma charrua que aos olhos de Cardoso Pires, em 1950, parece mais um objeto pertencente ao campo semântico do lugar: um barco abandonado, corroído pela ferrugem; uma haste de madeira poderia ser um mastro ou um remo. Diz o autor: “(…) tudo estava sepultado pelos ventos do areal e se resumia, como disse, a um eco, memória do homem”. Uma memória que, por sua vez, também tenta sobreviver. A imagem da charrua destituída de suas características, na verdade, corresponde à imagem da “amputação do homem”. Isto é, um testemunho da corrosão que se sofre não enquanto indivíduo, mas como indivíduo que é “vítima” da conseqüência dos instrumentos, diz Cardoso Pires, poderíamos dizer hoje, com as palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben, dispositivos, que rodeiam e “modelam” gestos e manifestações que nos tornam menos “homens” (Homens e não, para lembrar o título de um romance de Elio Vittorini). É a partir de um tom cortante com pinceladas de realismo mágico que Cardoso Pires explora com um olhar clínico a realidade da sociedade portuguesa sob a égide do Estado Novo de Salazar, no intuito de radiografá-la.

Jogos de azar, um título-convite ao leitor? Como um jogador, só e atento às suas cartas, o escritor silenciosamente vai traçando e perfilando a sua narrativa com a exposição de casos que falam de uma sociedade de aparências, clivada por inúmeras ausências e fomes, mas unida e harmoniosa aos olhos oficiais. Título ambíguo e convidativo. Por um lado, está claro o acaso ligado à sorte ou ao azar no jogo, de outro, estão claras as regras e a ética, que deveria ser preservada. Um jogo que chama para o centro narrador e para seus personagens; cabe ao primeiro estabelecer estratégias e mecanismos para tratar dos desocupados, formas de existência sujeitas a imposições externas: “São em grande parte histórias de desocupados — não no sentido naturalista do termo, espero —, de criaturas privadas de meios de realização, num plano objetivo em que as crepuscularidades da angústia não desempenham, mea-culpa, o papel tantas vezes conveniente ao gosto preocupado dos espectadores”. Histórias, portanto, daqueles que não estão próximos ao poder, de oprimidos, homens, mulheres, deficientes, ou de indivíduos que chegam à sua periferia, como é o caso dos soldados e cabos que acompanham presos desertores.

Carta a Garcia, Amanhã, se Deus quiser, Os caminhoneiros, Dom Quixote, as velhas viúvas e a rapariga dos fósforos, Uma simples flor nos teus cabelos claros, Ritual dos pequenos vampiros, Estrada 43, Week-End, A semente cresce oculta são os contos vorazes reunidos desse volume. Com diferentes tipologias de personagens, Cardoso Pires fotografa ângulos da sociedade portuguesa: os soldados já mencionados do primeiro conto, uma família cujo pai é ferroviário, a filha costureira, o filho à procura de emprego, em Amanhã, se Deus quiser, um cego e seus companheiros, em Os caminhoneiros, uma velha cega e sua neta, em Dom Quixote, as velhas viúvas e a rapariga dos fósforos, operários na construção civil, em Estrada 43, um casal de amantes, em Week-end, um grupo de rapazes e uma menina de 15 anos que sofre em suas mãos, em Ritual dos pequenos vampiros, um casal, em Uma simples flor nos teus cabelos claros, e, finalmente, a avó e a neta grávida, uma que pensa na alma e a outra na vida, em A semente cresce oculta.

Assim, em Jogos de azar não interessa a José Cardoso Pires a simples denúncia da miséria e da injustiça social, o que ele se propõe, como escritor e leitor atento de sua sociedade, é refletir sobre essa mesma sociedade por meio das imagens que a literatura lhe oferece e possibilita. O delfim e A balada da praia dos cães são dois romances, também publicados pela Bertrand Brasil, nos quais seu estilo, que transita entre o real e o simbólico, emerge com a genialidade do grande escritor. As imagens cardosianas são construídas e perfiladas sob o fio da navalha, fragmentos, estilhaços e pedaços dispersos da sociedade portuguesa que seu olhar clínico captura. Um espaço lacunar promovido por anos de censura e de controle, no qual a literatura de Cardoso se insere com precisão e força imagética.

Jogos de azar
José Cardoso Pires
Bertrand Brasil
240 págs.
José Cardoso Pires
É um dos maiores escritores da literatura portuguesa do século 20. Suas obras possuem uma robusta veia contemporânea e vão desde contos a teatro, passando pelo romance, gênero que o consagra. Sua escrita tem uma marca clara de implicação social, com implicações neo-realistas e existencialistas, e caracterizam-se por uma linguagem seca e enxuta. Ganhou o Prémio Internacional União Latina (Roma, 1991), o Astrolábio de Ouro do Prémio Internacional Ultimo Novecento (Pisa, 1992) e o Grande Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (1998).
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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