A radicalidade da atitude poética seria o silêncio? O abandono da escrita por parte de um autor intriga ainda mais hoje, nesse tempo que leva a autoexposição ao paroxismo. Não estamos falando de Rimbaud, mas de uma poeta mineira que deixou de escrever há mais de 15 anos. Vencendo empedernida relutância, apenas em 2024, aos 86 anos, Maria do Carmo Ferreira permitiu que sua obra, inédita em livro até então, se tornasse conhecida após a surpreendente publicação da sua Poesia reunida [1966–2009]. A coletânea em três volumes, em sofisticado box com ilustrações e grafismos de Caio Borges, foi organizada por Silvana Guimarães e Fabrício Marques. Cognominato, poema-canção em que a poeta brinca com seu próprio nome e com personagens históricas chamadas “Carmen”, termina com o nome pelo qual parece querer ser chamada:
(…) se ainda viva (sozinha)
perguntarem de mim, direi
dirão: Carminha.
Em um jogo de palavras — “poeta reclusa, poeta da recusa” —, Carlos Ávila a comparou a Emily Dickinson, que morreu sem ser publicada em livro. Carminha fez questão de esclarecer: “Compartilho a postura ética de Emily Dickinson, sem imitá-la”. Contudo, chegou a traduzir Dickinson, bem como García Lorca, Pablo Neruda, W. B. Yeats, Paul Éluard, Stéphane Mallarmé, e muitos outros.
Os poemas de Maria do Carmo Ferreira chegaram a dar o ar da graça, porém, nos ousados periódicos frequentados pelos concretos, tais como o Suplemento Literário de Minas Gerais, do qual o editor era Murilo Rubião. Fascinado, ele a indicou a Décio Pignatari, que, por sua vez, a apresentou a Augusto de Campos. Ao ver seus poemas, o paulista a convidou a publicar o poema Meretrilho, segundo Augusto “ousadamente joyceano, concret (r ) ocadilho”, no quinto número da revista Invenção (1966-67), que fazia com Haroldo de Campos e Pignatari. Nesse poema, com um humor e rebeldia inauditos em seu tempo, Maria do Carmo traça uma diagonal no papel, como as fitas que amarram os cabelos das moças, com palavras valises que mesclam termos por vezes chulos, referidos aos corpos das mulheres:
(…) biscavobisca
Moscamenisca
Meningepubia
Vagipenisola
clitorisputa…
Carminha quis homenagear as prostitutas com uma litania e ficou ela mesma fascinada com a ressonância da expressão “qui tollis peccata mundi” no termo “clitorisputa”, que encerra seu poema. Essa familiaridade com o latim aparece nos títulos dos três livros que compõem a coletânea: Cave Carmen, Coram populo e Quantum satis. Quando a narradora fala da família, ou das frustrações com o amor, explode uma força humana e visceral, uma oralidade espontânea, que parece submersa nos poemas mais experimentais. Esses poemas “biográficos” encontram-se sobretudo no primeiro livro, Cave Carmen, em que se materializam seu pai, a mãe e a falecida irmã, Celina, poeta que parece ter sido uma de suas principais interlocutoras. Não por acaso, a palavra Cave, em latim, se refere a oco ou cavidade, mas também é encontrada em inscrições como a de uma casa em Pompeia: “Cave Canem”, ou seja, “Cuidado com o cão”. ) Em Coram populo (literalmente “diante do povo”, ou “em público”) se encontram os poemas mais experimentais. Meus poemas favoritos são os de Cave Carmen, mas são potentes mesmo os mais convencionais, como os teológicos do último livro, Quantum satis, expressão que literalmente quer dizer “quanto basta” ou “a quantidade suficiente”, remetendo ao silêncio da poeta. Nesse livro também se encontram alguns em que a narradora fala de sua história:
Meu pai viu morte morrida.
Minha mãe, viva, se mata.
Eu vago ao sabor da vida.
Vida (noves fora) nada.
A trilogia, segundo os organizadores, “revela um intricado e complexo fazer poético, caracterizado pela experimentação com o verso e a palavra, o uso de metrificação e rima, paronomásias, jogos de palavras, lirismo, sátira desbragada, metáforas ousadas, neologismos, ‘stream of consciousness’, aproveitamento dos sinais ortográficos, corte de palavras, elipses e a adoção de diversas línguas no mesmo poema”. Essa tendência babélica pontifica no poema Cave Carmen, em que a autora homenageia pintores e poetas com versos bem-humorados:
e se eu tivesse via jato
torquato o teu Rocinante
em montes equidistantes?
(…)
se me tivesse com pacto
sob palavra portmanteau?
Godette attendant Godot?
De fato, os 231 poemas publicados nesses três livros formam um conjunto surpreendente, e a poeta sabia o que estava fazendo. A própria Maria do Carmo Ferreira analisa:
Meus poemas vão do mais ingênuo ao mais sofisticado, do mais hermético ao stream of consciousness (o que eu prefiro chamar de “passe livre”, por virem à tona de um jato, conquanto, internamente elaborados, simplesmente deixando fluir, como Deus quer), de poemas sofridos e retalhados, pesquisando palavras em suas aversões/atrações, até a contagem mínima de letras em cada verso. Tudo muito sincrético, nem sempre muito sintético, como deveria ser, hélas… faço o que posso e ouso o que faço. O resultado é sempre muito imprevisível.
Nessa entrevista, concedida a Fabrício Marques, em 1999, para o Suplemento Literário de Minas Gerais, reproduzida no terceiro volume da coletânea, ela cita o stream of consciousness, estilo narrativo que mimetiza a complexidade do pensamento: associações de ideias, lembranças, impressões momentâneas. De fato, esse processo, caracterizado por rupturas na sintaxe e na pontuação, surge em vários de seus poemas, como no impactante Desdobramento do nojo:
acordo e me apalpando estupefata colho em meus dedos roxos
hematomas que o tempo põe a nu e desenfaixa como uma peç
a única um quimono onde floresce o desamor ramagens na tat
uagem-túnica em que nua sob o escalpelo visto a paisagem qu
e vaso a vaso e nervo a nervo estua desde que a carne delirou
miragens e se lanhou o espírito no medo estraçalhando a culp
a urdindo o pânico embaraçando a insânia em meus cabelos até
me expor varada de vexame pejada em asco sacudida em pejo
Da mesma forma, os objetos arrolados no poema Contas gregorianas são um inventário de experimentalismos com a linguagem:
1 toalha pra banquete bem croshit
1 aparelho de jantasse se casasse
2 aptos pro beleléu com sol-i-déu
e ainda o q mais não coube
enfioforçou-se-lhe e coube
diplomas belle-époque 2 de letras
livros a sê-los alfarrábios sebos
1 quadro tup yara em flor nanquim
1 mestre noza havia sacra inteira
e ainda que mais me roubem
acabou-se o que hera sobre
Sua ironia foi ressaltada pelo poeta Guilherme Gontijo Flores, tradutor de Safo, Paul Celan e Rabelais, que destacou o trânsito da poeta, dos momentos líricos profundos e dolorosos, para um humor refinado, sem deixar de lado o experimentalismo técnico.

Artesania
A artesania poética é um dos temas prediletos de Maria do Carmo: (…) “Poesia pra mim/ é também pa’/ ludismo/ um -ismo atávico/ índico/ pacífico/ lusitano. /Produto brasileiro:/ copyright by mimesma”. O eu poético se define em Rimbaud et l’air, dedicado a Fabrício Marques: “Poeta sou,/ mas/ pelo avesso/ chegado ao extremo:/ não faço versos./ Verti ao olho/ & al dente/ uma estação no inferno./ Não vou nessa de Dante:/ é sem acompanhante/ que trafego/ pelas profundas de mim mesmo”.
Em Sensações, define a criação: “Não sei o que é/ o que me dá/ o que sinto/ se o mal-estar vem físico/ ou ab’sinto/ esse outro ser/ em coma-câncer/ :poema”. O poema pode ser, por exemplo, um corpo de mulher em pleno gozo: “Meu clitóris urge o verso/ de uma língua ao pé da letra./ Em meus grandes lábios vige/ a vulva em cada fonema./ Urde-se um ritmo-refrega/ que o corpo insuflado engendra./ E gozo o orgasmo à sorrelfa/ da carnadura do poema”. Ela tematiza as palavras em vários poemas que merecem ser lidos e relidos, tornando ainda mais difícil a tarefa de escolher apenas alguns, mas Limites é incontornável: “Poesia pura não há./ Literatura só/ se se amanhar/ com manhas/ & manias/ pirotecnias/ sem saber/ se vai dar./ Ir bordejando/ o flanco/ das palavras/ sem ruídos/ solavancos/ para não cair/ no vácuo/ de tantos/ negros/ buracos/ buscando sugar/ o espaço/ entre o falar/ e o calar.” Como domadora de um animal selvagem, adverte, em Perplexidade: “É necessário humildade/ para a tarefa tamanha/ de amanhar uma palavra/ e encontrar sua força estranha”. E proclama, no irreverente Os não poemas: “o poema abaixo a rima/ a métrica o ritmo/ o poema abaixo a periodização/ histórica/ a corrente literária/ abaixo os -ismos/ o poema abaixa-as-calças”. Em Cab’alho de trolha, ela parafraseia sem dó o poema Política literária, de Drummond, produzindo um resultado ainda mais jocoso e iconoclasta: “a poeta-moon (ici) pau/ dis(curte com ) a poeta, esta,dual, qual delas é (cá entre nós) paz de blá-blá-ter a poeta fede’r’alho”. E acaba por se perguntar, em Anexins & parábolas: “Um simples lance de dados/ vale uma nesga de luar?”, como se indagasse, afinal, sobre o sentido da escrita diante da vida.
A personagem que Carminha mais fustiga, em sua desbragada ironia, é ela própria, gestando pérolas, como no poema Um carma, um carme, um carmin em que, mais uma vez, brinca com seu nome: (…) “Carmelina, carmeei/ coita por coito e fiquei/ em penúria e mais coitada”. Nesse mesmo poema, surge, no refrão “Cataguá”, sua cidade natal, Cataguases, celeiro de artistas e poetas como os modernistas avant la lettre do Movimento Verde, evocados em Verdevários, por exemplo: “Verde vegetar fonemas/ Verdes desde que em cesário/ verde-lorca em vez de pablo/ rosa (verde) me separo”.
O amor
O amor é tema muito presente em sua poesia, sem deixar de lado a ironia, como no esplêndido Declaração de amor retido na fonte: “Primeiro o amor me conheceu num hall/ entre esbarrões, cartões e despedidas./ Depois o amor condescendeu a um carro/ entre sinais, faróis e velocímetros./ Enfim o amor se deu a ver num quarto/ pelo aparato: espelhos e cortinas./ Foi um desbunde à vera prima vista/ (…) Foi tudo tão perfeito que eu nem pude/ me dar ao luxo de divagações/ e desejar ao amor boa saúde/ paz e prosperidade na família/ em virtude da hora matinal/ e da razão social da companhia”.
O poeta Ricardo Domeneck reforça, em texto publicado no jornal Valor: “Ela demonstra como é possível escrever poemas com forte carga emocional sobre experiências como o amor e a separação, expressar sentimentos difíceis e muitas vezes contraditórios, sem descuidar da linguagem, sem cair na autoindulgência. É poesia lírica com precisão e sem preguiça”.
O crítico literário e ensaísta André Seffrin afirma que “em seu orgânico experimentalismo, lúdico, irônico e, por vezes até sarcástico, a poeta mineira Maria do Carmo Ferreira disfarça, e disfarça bem, um temperamento elegíaco”. Ele comenta: “Experimental e erudita, sim, mas uma poesia da intimidade cotidiana, do mais áspero lirismo amoroso, e da memória familiar, nesse particular, um pouco à maneira de Drummond de Boitempo, uma poesia do clã”. De fato, Carminha chegou a se corresponder com Drummond e transitou, por vezes, despercebida, entre os mais importantes poetas de seu tempo, além de Décio Pignatari e dos irmãos Campos, Ana Cristina Cesar, Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Seffrin observa que “sua poesia funciona num ritmo que tende ao enumerativo, deixando-se levar por ‘avalanche de letras’ de uma tão extrema lucidez que não raro nubla o sentimento”. Um exemplo curioso dessa tendência é o poema Coram populo, que abre o livro de mesmo nome: “isso é roçago sim é seda címbalo/ res postera e saltério donde vêm/ teus avatares de ava eva maligna/ dalila ou salomé sabe-se lá que/ que círculos ravéis cúmulo-cirro/ samira em sherazade mil e uma em/ fitas-kassete videogames signos/ consoante vocalise icone v (entre/ tripudians naja tripudiando diva/ no nheengatu de praxe nhenhenhém/ olas olás olés bis bravos bíceps/ hoje pulsar-quasar quase-que-vem/ com passos de pavlova radioativa/ cântaro ao cântico hosanas améns/ até estancar a sede dos convivas/ e outra cabeça rolar por ninguém”.
A carreira
Maria do Carmo Ferreira iniciou uma carreira acadêmica, graduação em Letras na UFMG, mestrado em Literatura Comparada pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Cosmopolita, viveu dois anos na Europa, e trabalhou por trinta anos na Rádio MEC, como criadora, tradutora, redatora e coordenadora de programas de literatura e música. Décio Pignatari refletiu que “ela aparecia e desaparecia, brincando de esconde-esconde com a poesia e com o público”. Porém, “cada palavra que escreve quer dizer alguma coisa”. Por isso é tão difícil escrever sobre sua inesgotável poesia.
Dentre as poucas fotos dela, se encontra uma bela jovem de cabelos curtos, lábios e orelhas bem desenhados, no rosto alongado. No olhar profundo e melancólico adivinha-se uma natureza vulcânica… Me pergunto como não a conheci, sendo que o poeta Guilherme Mansur, um dos meus melhores amigos, a editou no Poesia Livre e conviveu com ela nos anos 1990. Mansur afirma: “Ela é uma inventora, sua poesia reúne, ao mesmo tempo, a coisa erudita e comadresca, o sacro e o profano. Em sua artesania barroca entram colagens, neologismos, trocadilhos”. E conclui, com uma frase definitiva: “Maria do Carmo é um fabbro que usa todos os signos do teclado”.
No poema De uma corrente trifásica em meu pescoço, a poeta fala de seu duplo: “Dez anos de erosão nesta fisionomia/ terceira, que retenho./ Está perplexa./Alienou-se tanto da que fora/ e até da que não era/ que este é um retrato dos retratos dela”. Em Abracadabra, confirma sua face hieroglífica: “Me dolo em fechado jogo/ Meu corpo é um lance de dados” (…) “Por vias de quem responso/ Me esfinjo. Me enigmato”.
No poema Im-pro-vi-so, depois de contar a história de uma complicada infância, termina lançando um fragoroso convite. Aqueles que desejam conhecer o melhor da poesia brasileira atenderão, certamente: “Quem quer saber de mim, leia o que eu faço”.