Em que medida nossas lembranças são delírios? E em qual medida nossos delírios mais profundos fazem nascer as melhores lembranças, aquelas que insistem em voltar? Sobre esses questionamentos é que o romance O dia em que eu deveria ter morrido, de Javier Arancibia Contreras, se erige, ágil, verossímil e incrivelmente sedutor.
O esquema narrativo é até bastante simples: João Carlos Lins da Silva, herdeiro de um grande jornal paulista é o único sobrevivente de um atentado terrorista em Istambul, na Turquia, às margens do Mármara, para onde fugira após cansar-se de seu cotidiano repetitivo e intenso à frente da redação.
Mas, lembrando da advertência de Clarice Lispector, “que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”. E Javier trabalha muito bem, num enredo sem pontas soltas e com uma linguagem deliciosamente elaborada. A primeira parte do livro é “um factóide particular”.
Ajoelhado como se rezasse, e em breves trechos, como alguém que respira fundo e pausadamente, João Carlos, o protagonista, reconstrói sua infância, recupera a imagem das mulheres que o marcaram, resgata as memórias de sua orfandade precoce, a falta devastadora da mãe, a asma, o seu descuido com as vidas que dependiam de sua diligência, o casamento com a bela Lorena e sua vida de poderoso magnata em São Paulo.
Com a escuridão à sua volta e mergulhado em um silêncio que pulsa por dentro de seu corpo, João segue lembrando-se que em um restaurante-bar de Istambul reconhecera em Sabina Ramanovich algo de sua ex-mulher. Depois de alguns poucos minutos, Sabina se despediu dele e daquele único e intenso encontro, para nunca mais. Sabina, assim como Lorena, desaparece estranha e subitamente da vida de João, mote para que ele continue sua eterna busca.
Em vão ele a procura por 21 dias, carregando em si o desespero de uma saudade antiga. Como despedida dessa busca, almoça pela última vez no restaurante em que haviam se encontrado, quando enfim escuta o estrondo, “gutural, seco”, para depois perceber tudo ruir à sua volta, enquanto uma nuvem de poeira toma conta do lugar. Após a certeza do fim, João está sozinho, ajoelhado, sufocando sob os escombros, tentando respirar e encontrar “o feixe de luz, o risco leitoso e empoeirado que (…) faz enxergar tudo o que acontecera com clareza e é como se a volta ao sentido fosse uma droga prazerosa”.
Javier sabe o que está fazendo. Leva o leitor a uma viagem interminável para dentro das lembranças cíclicas de João que, de volta ao Brasil, aproveita-se do lampejo de fama como o único sobrevivente de um atentado na Turquia — aliás, a parte mais divertida do livro.
O protagonista deixa de ser um sobrevivente acidental, para escrever uma história factível por trás do acontecimento, justificando a continuidade de sua busca por Sabina. Em sua lucidez, torna-se atração mundial, conhecido, fotografado, premiado, assim satisfazendo o desejo de milhares e milhares de leitores de todo o mundo.
Mas será essa a história verdadeira do livro? Não há registro da existência de Sabina, exceto a referência deixada pelo próprio João no imaginário de todos, taxistas, policiais, e até mesmo de seu assistente, Borges.
Aliás, interessante que Borges seja o assistente do protagonista. “Diplomático, todos gostavam dele”, “uma raposa, que fique bem dito” e “o rei da cascata”: Borges vive para bajular e inventa a trama de apimentar a versão de João sobre a viagem a Istambul: “vamos deixar o mundo inteiro com a pulga atrás da orelha!”.
Retorno ao início
É então que começa o segundo capítulo, quase uma contradança, a pôr o leitor novamente no ponto inicial do livro. João volta ao seu ponto de partida, de joelhos, quase rezando, sob escombros, tentando respirar. “Respire, respire, respire, devagar, devagar, devagar, fundo, fundo, fundo, fica calmo, calmo, calmo.” Ou, na verdade, estaria João de joelhos apenas para olhar através de um buraco de fechadura, tentando desvendar os labirintos secretos de uma mulher, durante o curto período das férias de verão? Ou, ainda, continuava absorto e mudo a contemplar Rita, a sobrinha da cozinheira que trabalhara durante um mês nos serviços do refeitório do colégio?
Aqui Javier se aproveita dos duplos, paralelos e desdobramentos. Não é só Lorena que se desdobra em Sabina, em Helena, Rita, ou Hannah. Doutor Saulo se reflete em padre Aurélio. Rustim, Iassim e Amadeu também se assemelham. As cidades e os espaços se multiplicam a partir de um só referencial. O acidente da explosão da bomba se emparelha com um possível acidente de carro, enquanto João supostamente desafiava sua própria mortalidade. Ele agora pode estar em Istambul, como na cidade empoeirada, como talvez em São Paulo. Em seu flat urbano, na hospedaria simples da cidade sem nome, no hotel de luxo turco. Sempre se deparando com situações-limite e com sua eterna falta de fôlego.
Procuro alguma saída para o labirinto de Javier entre as explicações lúcidas de Adriana Falcão, que sabe bem explicar que “saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue” e “lembrança é quando, mesmo sem autorização, o seu pensamento reapresenta um capítulo”. É assim que João, num misto de insanidade, memória e lucidez, lembrança e delírio, loucura e saudade, segue reapresentando os capítulos cruciais de sua vida que voltam à realidade sem autorização. As imagens são tão fortes que fogem da lembrança para acontecerem de novo.
Nessa Jornada ao avesso dos fatos, a segunda parte do livro, João — que ali se apresenta como José Carlos — chega a um restaurante-bar e a uma pensão da cidade estranha do interior, onde todos “sobrevivem do trabalho no campo”, para encontrar Lorena, após 20 anos. Um passado distante que volta, e volta, e volta repetidas vezes, interminável, como se tudo estivesse em cada pedaço de seu corpo desde o dia em que deveria ter morrido. Mas não morreu: está vivo e continua voltando. Ininterruptamente. Até que uma bomba exploda. Até que se aperte o botão stop no gravador.
E, seja na poltrona de seu pai, seja no hospital psiquiátrico, em seus sonhos, onde for, o protagonista — o jornalista, o narrador, o paciente? — sente-se como seu pai e segue escrevendo um livro de confissões. João continua falando ao gravador até “faltarem as palavras, até Sabina ou Lorena ou as duas resolverem aparecer e me explicar o que está acontecendo. Ou mesmo até o fim”.
Assim, Javier deixa aberta uma porta para o leitor: em qual momento a explosão acontece? Em que momento ele se põe de joelhos, curvado para a frente, sem ar e com ânsias de vômito? Quando ele precisa respirar pela boca, com parcimônia, para tentar não desmaiar? Depois de um acidente de carro, da explosão em Istambul, do sumiço de Lorena? Ante a porta fechada de Helena, ou após o afastamento forçado de Rita? Essas perguntas fazem o leitor querer avançar para além do livro, e voltar também nas páginas repetidas vezes, perguntando a Javier quem é realmente João, e quando sua história começa a se repetir, feito gravador que toca a mesma música tantas vezes quantas seja acionado.
Na narrativa de Javier, não há cenas desnecessárias, ou palavras em excesso. As histórias se superpõem e se complementam até o desfecho final. O único e breve incômodo, onde reside um dos pontos fracos do livro de Javier, é de certo modo lembrar a estrutura de filmes como O sexto sentido ou o mais recente Ilha do medo, que também viajam na estrutura mental do protagonista, e que acabam por enfraquecer a inovação do enredo labiríntico criado pelo escritor desde o primeiro capítulo, ao transformar a história em uma dupla ficção, com várias histórias dentro da história: qual delas é a real?, numa pergunta para a qual não há respostas.
Pergunto-me qual seria o fim. Qual deve ser o ponto final para uma história de amor tão grande? Uma história de amor cujo fim se assemelha à loucura, ou a um atentado terrorista. Mario Quintana dá uma pista sobre como pode ser o fim para uma história dessas: “Eu, agora — que desfecho!/ Já nem penso mais em ti…/ Mas será que nunca deixo/ De lembrar que te esqueci?”.
3 Perguntas – Javier Arancibia Contreras
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
Não tenho lembrança de nenhum livro infantil que tenha me marcado nos primeiros anos da minha vida. Acho que a grande virada se deu quando minha família foi viver no Iraque devido ao trabalho do meu pai. Isso aconteceu em 1985. Durante três anos — dos nove aos doze — vivi uma fase de muita introspecção devido à timidez, mas também, e talvez principalmente, pelo fato de estar vivendo do outro lado do mundo, em um país estranho e misterioso em plena guerra. Esse conjunto de situações me fez freqüentar a biblioteca do acampamento onde vivíamos. Lá, comecei a ler os primeiros clássicos de aventura como As aventuras de Tom Sawyer e Moby Dick. Depois me entreguei aos romances policiais de Conan Doyle e Dashiell Hammet, entre outros. Quando voltamos ao Brasil, a literatura se consolidou em minha vida, de certa forma, naturalmente. Me formei jornalista, conheci Plínio Marcos e escrevi um livro-reportagem sobre o grande dramaturgo, trabalhei como repórter policial durante anos, publiquei meu primeiro romance em 2008, acabo de publicar o segundo romance e atualmente sou livreiro.
• O que você pretende com sua escrita, o que espera alcançar?
Descobri na adolescência que escrever era a minha válvula de escape, a minha maneira de pensar sobre o mundo e de buscar o meu próprio entendimento. Depois, quando passei a mostrar aos amigos o que escrevia, compreendi que esse podia também ser o caminho de me expressar com os outros. Acho que é somente isso o que eu, enquanto escritor, preciso alcançar. O que pode vir depois — publicação, leitores, críticas, reconhecimento — é conseqüência de uma série de fatores que não me dizem respeito. Afinal, o escritor é tão somente responsável pela sua obra. Todo o resto será lido, compreendido, avaliado ou julgado por pessoas alheias a você.
• Por que a escolha do romance como gênero literário a ser encarado em seu trabalho de criação?
Não foi por acaso. Foi por exclusão. Primeiro, depois de tantos versos escritos durante a juventude, cheguei à conclusão de que sou um poeta medíocre. Os primeiros contos que escrevi também não me satisfizeram enquanto literatura. Aí um amigo exigiu que eu lesse O estrangeiro, de Camus. E esse livro mudou a minha vida. A prosa longa foi se formando durante os anos em que trabalhei em Imóbile. Foi uma fase importante, de idas e vindas, de descobertas narrativas, de imersão psicológica nos personagens, de decepções com o resultado que duraram meses, de sentimentos de euforia e de fracasso. Foi num período em que fiquei desempregado, quando resolvi jogar tudo para o alto, que entendi que o romance enquanto gênero poderia ser exatamente tudo aquilo, uma profusão de sentimentos, de possibilidades, de becos sem saída, mas também uma oportunidade de não-ser, de fugir de sua realidade, se ser amoral, cruel, cínico ou mesmo infeliz e indiferente. Foi aí, enfim, que me descobri escritor.